Relacionado entre os principais contistas surgidos no país durante os anos 1990, João Batista Melo guarda vários prêmios nacionais importantes por seus livros e, para desenvolver a dissertação, somou a experiência como crítico de cinema e diretor de curtas-metragens. Ele informa que, desde 1908 até 2002, foram produzidos 3.415 longas-metragens brasileiros, mas apenas 2% (cerca de 70 filmes) destinaram-se ao público infantil. As duas primeiras produções para crianças são de 1956: O Saci, de Rodolfo Nani, inspirada na obra de Monteiro Lobato, e Sinfonia Amazônica, nosso primeiro desenho animado, que traz muitas influências de Walt Disney.
“No plano mundial, o cinema infantil nasceu como um descendente da literatura infantil, que por sua vez foi derivada das narrativas orais e dos contos de fadas. Antes do cinema e, mesmo depois do seu surgimento, o mundo infantil teve laços importantes com os livros de aventura e fantasia, as histórias em quadrinhos, as narrativas de professores, pais e avós”, observa João Batista. Segundo ele, a literatura infantil também foi a grande referência dos primeiros filmes nacionais, mas nas últimas décadas esta ligação deixou de existir e o espaço acabou dominado por atores e personagens da televisão. “Daqueles setenta filmes, a metade é dos Trapalhões”, constata.
Diante da total ausência de bibliografia específica mesmo no exterior, os livros abordando o cinema para crianças não passam de meia dúzia , João Batista Melo utilizou como ponto de partida os teóricos da literatura infantil. “Eu precisava conhecer melhor o destinatário desta produção cultural: quem é a criança, o que é ser infantil”, explica. Mencionando Philippe Ariès, considerado o grande historiador das atitudes, o escritor conta que na Idade Média a criança era vista como “um adulto em miniatura”, não havendo separação entre infância e maturidade. “A criança compartilhava os mesmos conhecimentos do adulto”, ilustra.
O escritor acrescenta que, em cima da tese de Philippe Ariès, o americano Neil Postman, estudioso das ciências da comunicação, viria a dizer que a criança começou a se separar do mundo adulto por causa da invenção da imprensa e da conseqüente imposição de códigos para se acessar o conhecimento e a informação; até que aprendesse os códigos, a criança ficava enclausurada no universo dos pequenos. Foi a televisão, ainda de acordo com Postman, que promoveu a reaproximação entre os dois mundos, dispensando conhecimentos específicos para que todos recebessem as informações por ela veiculadas. “Esta teoria, embora polêmica, serviu para embasar a pesquisa, já que eu buscava justamente as junções entre literatura, televisão e cinema”, observa João Batista.
Leitura imposta Na avaliação do escritor, o governo militar foi responsável por um período profícuo e de boa qualidade da literatura infantil brasileira, mas a disseminação se deu por meio de processo extremamente burocrático e impositivo que tornou a leitura obrigatória nas escolas. “Isso acabou criando uma distância entre criança e literatura”, observa. Ao mesmo tempo, a ditadura incentivou o fortalecimento da televisão como agente de divulgação da ideologia militar e da unificação nacional. Inevitavelmente, a televisão se encarregaria de reproduzir e transmitir também as ideologias do mercado econômico. “Os filmes ligados à tevê sempre trazem, explícita ou implicitamente, a mensagem de venda de um produto”, acrescenta.
Outro aspecto abordado por João Batista é o cinema enquanto produto de uma indústria cultural que acaba substituindo a cultura infantil tradicional, até então gerada em ambiente lúdico. “Antes, a criança criava e reproduzia sua própria cultura. A partir do momento em que a criança foi tirada das ruas, deixou de ser produtora para ser consumidora de produtos culturais”, compara. Por isso, sua concordância com a definição feita pelos pesquisadores ingleses Staples e Bazalgette, segundo os quais o filme infantil é aquele que traz um olhar infantil. “Esta é uma característica das produções nacionais não ligadas à televisão, em que a criança toma as decisões e define seu destino, ao passo que o adulto é um agente passivo, muitas vezes tratado como incompetente. Já em filmes como Xuxa e os duendes, o adulto permanece no centro da narrativa, e a criança tem um papel mais passivo, de subordinação ao adulto, por exemplo, quando a menina chora no ombro da protagonista porque o pai vendeu sua casa”, compara.
O escritor afirma que o ambiente rural e interiorano é um traço predominante de filmes como O Saci, O Cavalinho Azul, Meu Pé de Laranja Lima e Picapau Amarelo, mas que as produções mais recentes já travam um diálogo inevitável com o meio urbano, desenrolando-se nas grandes cidades. Ele cita A Dança dos Bonecos, em que a heroína parte do universo interiorano para recuperar seus brinquedos e percorre a metrópole capitalista para conhecer a frieza do mercado e dos meios de comunicação. E, em contraponto, Xuxa e os duendes e O Noviço Trapalhão, onde se vê na essência um compromisso com o lucro e a lógica do mercado, como industriais que aparecem como heróis ou amigos dos heróis.
Desprezados João Batista Melo reconhece em produtores como Xuxa e os Trapalhões, assim como em Mazzaropi, o mérito inegável de ajudarem a formar um espectador para o cinema nacional, num trabalho isolado e persistente. “Talvez, essas crianças sejam os adultos que hoje vêem Carandiru, Central do Brasil e Cidade de Deus”, prevê. Insiste, porém, que o cinema infantil poderia retomar o vínculo com a literatura, a exemplo de Europa e Estados Unidos com Harry Potter e O Senhor dos Anéis, apenas os fenômenos mais recentes do casamento entre as duas artes. “No Brasil, filmes baseados nas obras de Monteiro Lobato, José Mauro de Vasconcelos e Maria Clara Machado são honrosas exceções. Apesar da força da literatura infanto-juvenil no mercado editorial, o cinema vem desprezando autores como Ana Maria Machado, Lygia Bojunga, Ângela Lago, Tatiana Belinky, Lúcia Machado de Almeida e Ruth Rocha”, finaliza.