Obra mostra como mudanças estruturais
no Banco do Brasil se confundem com a história recente do país
Livro disseca plano de reestruturação de banco
MANUEL ALVES FILHO
O processo de liberalização da economia brasileira, iniciado no governo Fernando Collor de Mello e intensificado nas duas gestões de Fernando Henrique Cardoso, tem como marco uma experiência considerada exitosa pelos seus idealizadores e executores, mas que se mostrou traumática para milhares de trabalhadores. O plano de reestruturação do Banco do Brasil (BB), fundamentado principalmente no Programa de Desligamento Voluntário (PDV), transformou a imagem da instituição e fez emergir uma série de conflitos e interesses até então desconhecidos da sociedade. Em seu livro “Metáforas do Brasil Demissões Voluntárias, Crise e Rupturas no Banco do Brasil”, a antropóloga Lea Carvalho Rodrigues, que se doutorou pela Unicamp, faz uma análise minuciosa daqueles acontecimentos e os relaciona com as transformações ocorridas no próprio país na década de 90. “No meu trabalho, tento mostrar como a trajetória do banco se confunde com a trajetória do Brasil sob os pontos de vista histórico, econômico, político e social”, afirma.
Lea, que trabalhou por quase 20 anos no Banco do Brasil, diz que ao longo de décadas a instituição financeira foi considerada símbolo de identidade nacional e sinônimo de segurança e ascensão profissional para os seus funcionários. Entre suas atribuições estava, por exemplo, o papel de contribuir para o sucesso da política econômica e financeira do país. Em virtude dessa atuação, destaca a autora no livro, “há que se considerar a singularidade das relações do banco com os governos aos quais se reporta e que nele intervêm abertamente e as relações de interação com a própria sociedade brasileira”. A antropóloga concentra seus estudos no período que vai de 1995, ano em que o PDV foi lançado, a 2000. Ela própria valeu-se do programa para deixar o BB. “Como o meu projeto de abraçar a carreira acadêmica já estava consolidado, não foi difícil fazer a opção. Entretanto, a grande maioria dos funcionários viu-se pega de surpresa. Muitos vivenciaram dramas terríveis por conta da escolha que fizeram”, conta.
De acordo com a pesquisadora, a decisão de aderir ou não ao PDV foi tomada no afogadilho. Na prática, lembra, os trabalhadores tiveram apenas 11 dias para se definir. À época, o BB contava com 107 mil funcionários. Destes, 55 mil foram classificados pela empresa como “elegíveis”, ou seja, aptos a participarem do programa. Cerca de 13,5 mil pessoas aceitaram deixar o banco por meio dessa alternativa, o que representou 80% do universo pretendido inicialmente pela instituição financeira. “Isso fez com que o PDV do Banco do Brasil fosse considerado um sucesso mundial em programas dessa natureza. As experiências internacionais apontavam para um índice médio de adesão da ordem de 25%”, aponta Lea.
A medida foi acompanhada de outras ações, que acabaram por provocar, nas palavras da antropóloga, uma ruptura do Banco do Brasil com seus funcionários e com a própria sociedade brasileira. “O plano de reestruturação da empresa, que tinha por objetivos a redução de custo e a melhoria de resultados, para torná-la mais competitiva, tinha claras motivações neoliberais e vinha acompanhado do argumento da modernização. Ocorre, porém, que esta modernização alterou a missão do banco. De uma instituição que tinha como metas a concretização de objetivos sociais e a promoção do desenvolvimento nacional, ela passou a atuar nos moldes de uma organização privada, voltada apenas para o lucro”, analisa a autora.
A pesquisadora destaca, ainda, que a estabilidade proporcionada pelo BB aos seus servidores, que na prática não existia pois os contratos de trabalho regiam-se pela CLT, era considerada pela própria direção da instituição como um valor nacional. “De forma que, para o BB, ao romper com essa estabilidade, em nome de uma eventual empregabilidade, rompiam-se também valores da própria sociedade brasileira”. O que ocorreu no Banco do Brasil, nota Lea, também foi levado a efeito em outras instituições públicas e estatais. A experiência forneceu, por assim dizer, as bases para a Reforma do Estado e implantação das políticas de liberalização da economia na década de 90, que obedeciam à lógica da estabilidade proposta pelo Plano Real e aos ditames dos organismos internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial, que exigiam também a reestruturação do Sistema Financeiro Nacional, de acordo com a antropóloga.
Não por acaso, prossegue a pesquisadora, a reestruturação do BB aconteceu no momento em que o governo FHC discutia as reformas da Previdência e da Administração Pública. Para executá-las, diz, a quebra da estabilidade dos funcionários do banco teria sido estratégica na tentativa de facilitar o processo, dado que as medidas que estavam sendo gestadas certamente encontrariam muita resistência por parte do funcionalismo público e de segmentos importantes da sociedade, dificultando a sua aprovação no Congresso Nacional. “Por essas e outras razões considero o Banco do Brasil uma metáfora do país. O que ocorreu com a empresa, alvo das chamadas medidas de modernização, é condizente com o que aconteceu com o Brasil nos anos 90. Ambos foram submetidos a mudanças drásticas em vez de processuais, o que, no caso específico do BB, resultou numa profusão de conflitos e revelou que interesses governamentais estavam por trás do conjunto de ações”, sustenta Lea.