Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 263 - de 23 a 29 de agosto de 2004
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Artigo

Vargas e a herança populista



ARMANDO BOITO JR.

Getúlio Vargas suicidou-se há meio século, mas o populismo, numa nova versão, continua vivo entre nós.

O populismo é um fenômeno político particularmente forte nos países periféricos do sistema capitalista. Existiu em grande parte da América Latina entre as décadas de 1930 e 1960 e, no período neoliberal, retorna, mas com um conteúdo político novo. O conceito de populismo é muito discutido na ciência política. Aqui, não podendo apresentar essa discussão, diremos apenas que o populismo resulta da convergência entre, de um lado, uma insatisfação popular difusa e politicamente impotente e, de outro lado, uma ação deliberada de partidos políticos e do Estado de apoiar-se nessa insatisfação e dirigi-la para um objetivo político que é definido sem a participação popular. O Estado define uma direção política para essa insatisfação popular difusa, dirigindo “do alto” os trabalhadores desorganizados. A relação direta do político populista com a massa desorganizada é o aspecto formal mais saliente desse fenômeno político.

O varguismo foi um tipo de populismo. Hoje, diante do que assistimos no Brasil neoliberal, podemos ver com mais clareza que se tratou de um populismo progressista. Getúlio Vargas apoiou-se na insatisfação difusa que vigorava no seio de amplas camadas de trabalhadores urbanos para fazer a Revolução de 1930 e tocar adiante uma política de industrialização capitalista e de modernização da sociedade brasileira. Essa revolta difusa (sem programa definido) e inorgânica (sem organização) acumulara-se ao longo da República Velha. A revolta popular era motivada pela política econômica e social antipopular do grande capital cafeeiro e pelo regime político excludente da república das oligarquias – direitos civis precários, direitos políticos falseados pelo voto de cabresto e pela prática do bico de pena etc. Havia, de outra parte, todo um quadro político e social que dificultava a organização política dessa revolta e, portanto, a formação de uma alternativa que não fosse nem a passividade nem a solução populista. O campesinato brasileiro estava disperso e sua ação política era efêmera, assumindo a forma de insurreições religiosas. O operariado fabril, já então minimamente organizado, encontrava-se sob hegemonia anarco-sindicalista, o que o confinava a uma posição obreirista e economicista, já que fazia do abstencionismo em matéria política um valor doutrinário. Nesse quadro, os trabalhadores urbanos não organizados, tendiam a expressar sua revolta de maneira cega e inconsistente. O historiador Edgar Carone registrou a freqüência dos quebra-quebras ao longo de toda história da República Velha. Foi nessa revolta popular que a Revolução de 1930 buscou e obteve apoio.

O adversário do populismo varguista era, em primeiro lugar, a antiga classe dominante, representada pelo grande capital cafeeiro. Ao longo de todo o período aberto pela revolução de 1930 ela manteve-se firme na oposição. Já em 1932, organizou, através do PRP, a Frente Única Paulista, que desembocaria na guerra civil de 1932. Após 1945, essa grande burguesia tomou a iniciativa de organizar a antiga UDN – União Democrática Nacional -, partido com o qual articulou diversos golpes de Estado, inclusive o golpe de agosto de 1954 que depôs Getúlio Vargas. Essa “oligarquia” opunha-se à industrialização capitalista do Brasil. Tal processo exigia aArmando Boito Jr. é professor titular de Ciência Política e pesquisador do Centro de Estudos Marxistas (Cemarx-Unicamp). É autor do livro O golpe de 1954: a burguesia contra o populismo. São Paulo, Editora Brasiliense, 1982, Coleção Tudo é história. reformulação da antiga divisão internacional do trabalho de maneira a priorizar os interesses da indústria e do mercado interno e implicava, na política cambial, creditícia e de comércio exterior inúmeros prejuízos para o grande comércio de exportação e de importação. Outro adversário do populismo varguista era o imperialismo estadunidense. As empresas dos EUA pretendiam continuar usufruindo a situação favorável que lhes era assegurada pela antiga divisão internacional do trabalho e, por isso, eram contra a política de industrialização capitalista do Brasil. A história mostra que, no jogo de concorrência entre as potências, a política industrialista pôde contar, no seu início, mais com o novo investimento industrialisante do capital europeu que com o do capital estadunidense. Um terceiro adversário do populismo varguista era a fração superior da classe média. Esse setor social era marcado pelo elitismo e engrossava as fileiras da UDN contra a ampliação da participação popular, ainda que superficial e controlada como deveria ser no padrão populista.

Getúlio Vargas arrostou esses três adversários e procurou apoiar-se, ao mesmo tempo, nos trabalhadores urbanos e na burguesia industrial. Para os primeiros, “ofereceu” a CLT, diploma que contém, de um lado, a legislação trabalhista que até hoje atormenta os neoliberais, mas, de outro lado, a estrutura sindical corporativa de Estado que burocratizou precocemente o movimento sindical brasileiro. Getúlio Vargas utilizou essa estrutura sindical para manter o controle do Estado capitalista sobre o movimento sindical e impedir a unificação da luta política dos comunistas com a luta reivindicativa dos trabalhadores. Para a burguesia industrial, oferecia a política de industrialização e gozava de seu apoio um tanto hesitante. Nos momentos de crise, tinha de procurar conciliar os trabalhadores urbanos com os industriais de modo a romper o cerco do imperialismo e da velha classe dominante à política de industrialização. Na crise de 1954, encontrando-se sob o assédio das forças inimigas e verificando as hesitações da burguesia industrial, procurou ampliar a aprofundar o apoio popular ao seu governo. No 1o de maio de 1954, concedeu um reajuste de 100% do salário mínimo, para uma taxa acumulada de inflação de apenas 12% nos doze meses anteriores. Apresentou esse aumento com um discurso radicalizado no qual afirmava que, “pela força do número”, os trabalhadores acabariam por chegar ao poder – “hoje, estais comigo no poder, amanhã sereis poder”. O efeito político foi o oposto do esperado por Vargas. A burguesia industrial abandonou-o e o seu governo foi deposto por um golpe de Estado em 24 de agosto de 1954. A reação popular veio tardiamente e sob a forma populista clássica: os quebra-quebras nas principais capitais do país que duraram três dias e visavam alvos como os jornais conservadores e as casas comerciais e instituições que lembravam os EUA.

Como está indicado acima, o governo populista, graças ao apoio popular difuso e às contradições existentes no interior da burguesia, pode manobrar entre forças conflitantes. Os estudiosos falam de uma crise de hegemonia e de um empate na fraqueza como principal condição dessa ampla margem de manobra de tais governos. O governo Getúlio Vargas não representava os trabalhadores e tampouco representava, em sentido estrito, a burguesia industrial, embora essa fração da classe dominante tenha sido a grande beneficiária de sua política. Era um governo controlado diretamente pela burocracia do Estado brasileiro que sustentava um projeto de industrialização capitalista com a criação de um mínimo de direitos trabalhistas e sociais.

Como sabemos, a deposição Getúlio Vargas foi um ensaio geral para a deposição de João Goulart dez anos depois e essa deposição encerrou o ciclo de governos populistas. Por que dizemos, então, que o populismo continua vivo, numa versão piorada, nos dias de hoje?

O populismo neoliberal

No Brasil de hoje, o mesmo fetiche do Estado protetor, que Getúlio Vargas utilizou para tocar adiante a industrialização, para controlar o movimento sindical para ampliar, homeopaticamente, os direitos dos direitos dos trabalhadores, esse mesmo fetiche é reanimado pelo imperialismo e pela grande burguesia financeira para desindustrializar o país e suprimir direitos conquistados. O feitiço voltou contra o feiticeiro.

É certo que o Brasil mudou desde então e que o populismo não é mais a tendência tão amplamente dominante que fora na sociedade brasileira há algumas décadas atrás. Desde a década de 1970, começou a crescer uma nova tendência no movimento operário e popular brasileiro. Essa tendência consolidou-se com a formação do PT e da CUT. Suas características eram e são diferentes das características do populismo. Baseada nos setores do operariado e da classe média assalariada com maior poder de organização e de luta sindical – metalúrgicos, bancários, petroleiros, funcionalismo público -, essa nova tendência acredita mais na força dos trabalhadores para conquistar suas reivindicações no plano sindical e concebeu e organizou um partido político para ser o instrumento eleitoral e governativo da luta reivindicativa dos trabalhadores. A CUT e o PT pareciam ter deixado o populismo definitivamente para trás. De resto, ambicionavam conscientemente essa meta e, ao longo de toda sua história de lutas, o novo sindicalismo e os petistas proclamaram que iriam enterrar definitivamente o populismo. Mas, não foi isso que aconteceu. Hoje, no governo, o petismo também lança mão do novo populismo e o faz para manter o modelo econômico neoliberal.

Não temos espaço para discutir as razões dessa reanimação do populismo. Iremos diretamente aos fatos. Em 1989, Fernando Collor de Melo conclamou os “descamisados” a apoiarem a sua luta contra os “marajás” e obteve, como se sabe, sucesso eleitoral. Se estiverem corretas as pesquisas de intenção de voto, nas eleições de 1989, 1994 e 1998, a candidatura Lula foi derrotada pelos eleitores que se situam na base da pirâmide de distribuição de renda – as famílias com renda inferior a cinco salários mínimos mensais. Os trabalhadores mais pobres e desorganizados votaram, em sua maioria, nos candidatos neoliberais. Esses são os sintomas do populismo ressurgente no Brasil e na América Latina.

O populismo varguista não implantou um Estado de bem-estar social no Brasil. Ao contrário, deixou grande parte dos trabalhadores à margem. Durante as décadas de 1930, 1940 e 1950 os trabalhadores rurais foram excluídos dos direitos trabalhistas e sociais. Nas décadas de 1960 e de 1970, quando os direitos sociais começaram a chegar ao campo nas figuras da sindicalização rural, do Estatuto do Trabalhador Rural e do Funrural, o trabalhador do campo estava se convertendo em trabalhador urbano sem carteira assinada e, portanto, permanecendo sem direitos. A nossa hipótese é que isso propiciou a acumulação de uma revolta difusa contra o caráter excludente do modelo desenvolvimentista. A esquerda socialista, comunista ou petista, por razões diversas que em outra ocasião valeria a pena discutir, não logrou organizar amplamente essa revolta. Quando o imperialismo e os setores mais reacionários da burguesia iniciaram a ofensiva neoliberal essa massa insatisfeita, excluída da cidadania social e legitimamente revoltada, encontrava-se politicamente disponível e foi convertida em classe-apoio da ofensiva neoliberal. Os neoliberais cercaram a esquerda pela retaguarda. O imperialismo e os setores mais reacionários da burguesia brasileira lograram obter apoio, graças a um mecanismo político e ideológico complexo, junto aos setores mais pauperizados da população trabalhadora, e isso sem fazer concessões econômicas aos interesses desses setores. Para obter tal apoio, radicalizaram um discurso contra os direitos sociais restritos, que puderam ser apresentados como privilégios, e encenaram a ampliação desses direitos recorrendo às insuficientes e incertas políticas compensatórias baseadas na focalização. A focalização é a resposta neoliberal reacionária à cidadania restrita do populismo desenvolvimentista.

Estamos, portanto, diante de um quadro muito distinto daquele do populismo desenvolvimentista. Os promotores do novo populismo são, como dissemos, o imperialismo e a grande burguesia financeira, os setores mais reacionários da classe dominante. No governo, não se verifica nenhuma autonomia especial da burocracia de Estado. Essa burocracia age, agora, como representante político do grande capital financeiro. Os adversários do populismo atual são os trabalhadores organizados, seus direitos, e a indústria nacional. É quase uma inversão do populismo varguista. A semelhança fundamental encontra-se na base social, na ideologia e no instrumento que viabilizam uma e outra política. O fetiche do Estado, a desorganização política dos trabalhadores, o apelo direto do ocupante do Executivo às massas, esses mesmos elementos são utilizados hoje, mas com objetivos distintos daqueles que Vargas perseguia ontem.

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Armando Boito Jr. é professor titular de Ciência Política e pesquisador do Centro de Estudos Marxistas (Cemarx-Unicamp). É autor do livro O golpe de 1954: a burguesia contra o populismo. São Paulo, Editora Brasiliense, 1982, Coleção Tudo é história.

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