Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 263 - de 23 a 29 de agosto de 2004
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Ricardo Antunes
Feijão caseiro. Em cinco
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Um dos mais renomados sociólogos do país, o professor Ricardo Antunes está lançando o livro “A Desertificação Neoliberal no Brasil (Collor, FHC e Lula)”. Mais que uma coletânea de artigos publicados na imprensa ao longo dos últimos 15 anos, a obra funciona como um retrato fiel das transformações vivenciadas pela sociedade brasileira no período. “A publicação do livro, agora, foi uma pequena exigência do tempo, dos nossos dias. Era preciso rememorar, buscar no passado recente, mas fotografias apresentadas, um pouco dos elementos explicativos para a vigência de nossas tristes mazelas sociais”, escreve o autor na apresentação da obra. Na entrevista que segue, Antunes fala do livro e das causas e efeitos do neoliberalismo.


Ricardo Antunes esmiúça
o receituário neoliberal


ÁLVARO KASSAB

Ricardo Antunes é professor titular no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH). Foi visiting research fellow na Universidade de Sussex, Inglaterra. Doutorou-se em sociologia, pela Universidade de São Paulo e fez mestrado em ciência política na Unicamp. Publicou vários livros, entre eles, Adeus ao trabalho? e Os sentidos do trabalho.  A obra

Este livro é uma compilação de artigos da imprensa nacional e estrangeira. São textos voltados para a análise de uma situação concreta, na qual condensamos a reflexão acumulada ao longo de um determinado período para auxiliar no entendimento do significado dos governos Collor, FHC, Lula, este último contemplando seu período inicial, inseridos na contextualidade internacional – o mundo da globalização e a chamada era da mundialização – que permeou este quadro todo. Penso que um intelectual das ciências humanas, que vive da universidade pública, tem de emitir sua opinião nos momentos mais relevantes do país. É somente nossa opinião, mas temos que dizer “neste momento, é este nosso posicionamento, assim estamos vendo”. E é isso que tentamos mostrar ao longo dessas várias fotografias – governos Collor, Itamar, FHC e Lula. Mantivemos a escrita original de modo que o leitor pudesse perceber as oscilações e movimentos.

A onda

A idéia central do livro é tentar compreender a década de 90 no Brasil. Foram anos marcados por um processo profundo de mudanças, que denominamos como “a era da desertificação neoliberal”. Nós sabemos que, em 1989, com a vitória de Collor, iniciou-se essa onda neoliberal no Brasil. O período Collor caracterizou-se por uma espécie de “bonapartismo aventureiro”. Ele tinha um traço bonapartista, com alta dose de dose de aventureirismo, que levou ao seu impeachment dois anos depois. Com Fernando Henrique Cardoso, deu-se um processo muito mais complexo. Vitorioso em 1994, depois de ter sido responsável pelo Plano Real, “ estabilizou” de certo modo, a economia brasileira e implantou uma racionalidade burguesa cuja pragmática estava afinada com o ideário neoliberal. O próprio FHC, no discurso de posse, disse que implementaria o programa econômico de Collor sem o seu aventureirismo político. E FHC marcou a era das mutações no Brasil em sintonia com o neoliberalismo, das quais a privatização acentuada do Estado, a desregulamentação e a precarização do trabalho, além da financeirização da economia, são tendências bastante acentuadas.

FHC 3

Não tinha, por exemplo, nenhuma ilusão quando o governo FHC foi eleito. Nos primeiros meses de seu governo escrevi um artigo dizendo: “esse governo veio para implantar um projeto neoliberal, ainda que não tivesse uma origem neoliberal”. Todos nós sabemos que FHC nunca teve origem neoliberal. Ele era um intelectual, um sociólogo da USP, considerado progressista, mas na política optou pela defesa da ordem para poder chegar onde chegou. Esperávamos que em 2002, com a vitória de Lula, pudesse ter início, só o início, de um processo de desconstrução da era de desertificação liberal. O que temos visto, transcorrido mais de um ano e meio, é que as medidas que o governo anterior implementou vêm sendo intensificadas pelo atual governo. Por outro lado, as medidas que FHC não conseguiu levar adiante – porque o PT de então, a CUT de então, os movimentos sindicais e os partidos de esquerda impediram –, vêm sendo implementadas pelo atual governo do PT. Daí a constatação: apesar das diferenças, da forma de ser e dos traços distintos dos dois governos, há uma clara tendência de continuidade entre a política de FHC e Lula, que fez com que vários intelectuais críticos dissessem que estamos na era FHC 3. Se pensarmos na política econômica de Malan e de Palocci e na política do Banco Central dos dois governos, há muito mais continuidade que descontinuidade.

Mais que o rei

O PT era o herdeiro das lutas sociais dos anos 80 e 90 e era um escoadouro das lutas sociais. Havia uma expectativa, ainda que pequena, que pudéssemos botar um pouco de areia na engrenagem neoliberal. Mas a forma pela qual o partido chega ao poder, as brutais repercussões da década neoliberal na ação política e ideológica do partido, seu aprisionamento pelo sistema financeiro internacional, pelo FMI, pelo grande capital transnacional, sua política contingente, aliado a uma lacunar formação teórica, política e ideológica, e a uma volúpia desmesurada do poder, fez com que o PT se tornasse mais realista que o rei.

“Capitalismo popular”

O PT não só privatizou a Previdência, liberou os transgênicos e abriu ainda mais torneira da sucção de capitais para pagamento desmesurado dos juros e da dívida interna e externa. Tudo ao contrário do que pregou ao longo dos anos 80 e parte de 90. Avançou nas propostas de FHC, fazendo uma política de superávit mais intensa e nefasta para o país e nossa classe trabalhadora. Entregou, por exemplo, o Banco Central – que foi indicado (ou nomeado?) pelo sistema financeiro internacional. Isto tem um elemento novo: o PT no poder está tentando implementar o que Thatcher chamou talvez jocosamente de “capitalismo popular”: todo inglês se tornaria um pequeno investidor, um pequeno privatista, um pequenino especulador no mundo dominado por gigantes especuladores. Lula está imaginando que, pela privatização da Previdência, todo brasileiro vai se tornar um pequeno investidor, deixando de perceber que, com R$ 260 de salário mínimo por mês, o brasileiro não consegue ter nem mesmo condições de se alimentar.

Gestores de fundos

Esta política de privatização da Previdência atende aos interesses do sistema financeiro e do “sindicalismo de negócios”, gestor de fundos que, de algum modo, calibram as formas de acumulação de capital no Brasil. Por isso, hoje eu não tenho mais nenhuma ilusão de que o PT possa voltar às suas origens. Isso na minha opinião não se coloca mais. O episódio de expulsão dos parlamentares coerentes com a política anterior do PT é sintomático. A política de congelamento da esquerda do PT – aqueles que não votam, como no salário mínimo, estão perdendo espaço dentro do partido e só ficam nele aqueles parlamentares que, ou aceitam essa política, ou estão negociando seus cargos e as possibilidades de eleição. Outros, por seu lado, estão analisando o momento oportuno de sair do partido. É preciso respeitar o tempo destes setores internos que estão hoje descontentes com o PT, mas possibilidade de mudança interna eu não vejo mais.

Elite sindical 1

Era natural que no momento em que o PT chegasse ao poder, os grupamentos sindicais fundadores tivessem um papel importante dentro da estrutura do poder. Seria bom que o país pudesse ter representantes dos trabalhadores na condução das políticas públicas, desde que eles não tivessem perdido o vínculo de origem com sua classe social e desde que não tivessem sido completamente tragados pelas benesses da burocracia sindical e, agora, pela máquina do Estado e pelos encantos do mundo do capital. Resultado: que relação o Berzoini tem com seu passado sindical? Que relação o Gushiken tem com seu passado bancário? Repare que há um caminho: nascem na luta sindical, apoderam-se dos cargos de mando da CUT e do PT, fazem um salto à candidatura a deputado – isso é fácil para um líder sindical, que representa uma categoria com 200, 300, 400 mil trabalhadores, como bancários, metalúrgicos, professores, etc. Todos eles chegam nos cargos da administração direta, combinando essa ascensão social, desprovidos de densidade política-ideológica, tendo seus laços cortados com a classe trabalhadora. Todos se convertem numa espécie de gestores dos fundos públicos e colocando-os a serviço dos interesses privados.

Elite sindical 2

O que poderia ser positivo – a participação de sindicalistas vinculados com a classe trabalhadora no governo – se transformou, leopardiana e prussianamente no seu contrário: são ex-sindicalistas que não têm mais nenhum vínculo com as lutas sindicais de que participaram nos anos 80 e 90 e hoje estão em papéis de mando no aparelho do Estado, fazendo o que os grandes interesses dominantes exigem. Se pudéssemos brincar com palavras, eles mudaram da representação da “ corporação do trabalho” que tanto assustava Hayek, teórico do neoliberalismo e hoje são verdadeiros representantes da corporação do capital. Uma das próximas medidas do governo Lula será discutir a legislação trabalhista e eles estão sendo os principais responsáveis para poder levar adiante o desmonte dos direitos do trabalhador. O Berzoini, que já entrou para a história como inimigo dos trabalhadores públicos, responsável pela ação da privatização da Previdência, agora está no Ministério do Trabalho com a incumbência de desestruturar, desregulamentar e precarizar a legislação social do trabalho através da eufemisticamente chamada flexibilização das leis sociais do trabalho que, em bom português, significa precarizar ainda mais as condições do trabalho.

Elite sindical 3

Qual foi a vitalidade da CUT? Ela nasceu em 1983 profundamente ligada às lutas sociais. A CUT é também formada, na sua origem, pelo novo sindicalismo, pelo movimento das oposições sindicais e pelo sindicalismo rural. Esse foi o tripé que deu sustentação à CUT. Quem estuda e acompanhou a vida sindical dos anos 80, sabe que não havia uma greve, uma ação, uma medida que envolvesse trabalhadores em que a CUT não estivesse presente. Por exemplo, a Constituição da 88 só foi relativamente progressista no capítulo dos direitos sociais do trabalho porque a CUT teve um papel decisivo. Este é o desafio dos anos 2000: ou seguir o caminho do sindicalismo vertical, de cúpula, negocial, como a CUT está seguindo de maneira (quase) irreversível, ou retomar a condição de um sindicalismo de base social, que recuse essa verticalização, que recuse ser um apêndice do governo e que combine ação social e ação política. Pouco a pouco, foi-se criando um regramento estatutário que convertia a CUT numa central de cúpula, das direções. E há algo muito importante: ao longo de todo esse período de história da CUT, muitos recursos da social-democracia sindical européia vieram para dar suporte. Isto teve um preço e um custo ideológico.


Novos cortes

O sindicalismo de base tayolorista e fordista era de base vertical, as empresas eram verticais. A classe trabalhadora era predominantemente masculina, com contratos relativamente estáveis. Hoje, não. As empresas se horizontalizaram, há um enorme processo de feminização da classe trabalhadora. As dimensões de gênero e geracional (etária) são ainda mais acentuados do que no passado. Algumas empresas “modernas”, por exemplo, só contratam trabalhadores com 20, 22 anos. Por quê? Essas empresas dizem: eles não têm experiência sindical, não têm experiência fordista, não têm experiência taylorista. É o “proletário ideal” para ser intensamente explorado pelas fábricas nessa onda na qual os direitos estão sendo dilapidados. O desafio é pensar o sindicalismo horizontal, que contemple essa nova polissemia do trabalho.

Nova ordem

Nós entramos em uma nova fase do capitalismo, de intenso desenvolvimento tecnológico, que mudou completamente a noção de tempo e de espaço e veio para ficar, cuja racionalidade, no plano microcósmico, das empresas, gera uma irracionalidade global desmedida, da qual o desemprego estrutural é exemplar. Houve uma intensificação no ritmo e nas condições de exploração do trabalho. A polivalência apresenta-se como a capacidade de colocar a classe trabalhadora fazendo todas as atividades. Isso veio para ficar, enquanto a sociedade do capital for dominante. E nosso desafio é encontrar uma outra forma de organização societal, uma nova forma de sociabilizar a humanidade.

Alternativas

A história é resultado da invenção humana, a história não está previamente escrita, ela é uma construção cotidiana. Ninguém podia imaginar que a União Soviética ruísse, sem nenhum exército invasor; nem que tivéssemos a batalha de Seattle no coração dos Estados Unidos; nem que os Estados Unidos, que se prepararam para a guerra nas estrelas, seriam invadidos por três aviões que, usando métodos convencionais, atingiram as torres gêmeas e o Pentágono e por pouco não atingissem também a Casa Branca. Isso é um traço inusitado na história. Nos anos 80, 90, quando o Fukuyama dizia que estávamos no “fim da história” e Margareth Tatcher repetia “there’s no alternative”, ninguém podia imaginar que o MST nasceria com a força que nasceu no Brasil, que os zapatistas irrompessem no México, que o Fórum Social Mundial se tornasse uma alternativa ao Fórum de Davos. Essas são construções da história e o século 21 nos está desafiando a buscar alternativas para além dessa lógica societal, quase espectral, muito involucral e fortemente letal. Esse é hoje o maior o nosso maior desafio.


SERVIÇO


Livro: A desertificação neoliberal no Brasil (Collor, FHC e Lula)

Páginas: 172 – Preço: R$ 19,00
Editora: Autores Associados
Lançamento: dia 25 de agosto
Local: Estação Santa Fé
Horário: 18h30
Endereço: Av. Albino J. B. de Oliveira, 1265, Barão Geraldo

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