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Euclides da Cunha,
dos sertões ao campo lírico

ÁLVARO KASSAB

Um documentário e um livro de poemas, a maioria dos quais inéditos, enriquecem a trajetória e o conjunto da obra de Euclides da Cunha, autor de Os Sertões. O historiador e professor Ítalo Tronca, do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH), acaba de finalizar o documentário Canudos - O estigma da República. A obra traz uma abordagem inédita – e didática – sobre o conflito que opôs o Exército e cerca de 25 mil pessoas lideradas pelo beato cearense Antonio Conselheiro. Tronca recorre a depoimentos e a episódios pouco explorados pela historiografia oficial para construir sua narrativa.

O documentário mostra como e sob que pretexto a então nascente República arquitetou o massacre dos insurgentes no arraial fundado no final do século 19 às margens do rio Vaza Barris, no sul da Bahia.

Já o escritor e professor Francisco Foot Hardman, do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (IEL), em trabalho de pesquisa desenvolvido com o professor Leopoldo Bernucci, da Universidade do Texas, prepara a edição de livro que vai reunir a produção poética de Euclides da Cunha. A obra deve ser publicada em 2006 e acrescentará pelo menos 80 poemas inéditos ao acervo do escritor e ensaísta. Foot Hardman e Tronca falam sobre seus trabalhos e analisam o legado do escritor.


Os professores Francisco Foot Hardman (primeiro plano) e Leopoldo Bernucci: incorporando 80 poemas inéditos ao conjunto da obra euclidiana (Foto: Adriana Elias/AEJornal da Unicamp – Como foi o trabalho de prospecção da poesia euclidiana?

Francisco Foot Hardman – É preciso dizer que trabalhamos com Euclides da Cunha há muitos anos, mais precisamente desde o final dos anos 80. Quando terminei Trem fantasma: a Madeira-Mamoré e a Modernidade na Selva (Companhia das Letras), cuja primeira edição data de 1988, já tinha um grande interesse pela obra menos conhecida de Euclides da Cunha. Naquela altura, no final dos anos 80, nos interessavam muito os ensaios sobre a Amazônia, até em função dos meus trabalhos sobre as representações e as fantasmagorias da ferrovia Madeira-Mamoré. A partir desse trabalho com os textos amazônicos de Euclides, pudemos verificar também a produção de uma poesia que de alguma maneira era conhecida entre os estudiosos e pesquisadores, mas não havia nunca sido devidamente valorizada e avaliada.

JU – O que havia sido publicado até então?

Hardman – Para se ter uma idéia, a edição da erroneamente intitulada Obra completa (Editora Aguilar, 1966) traz compilados 37 poemas de Euclides da Cunha. Por sinal, muito mal- editados, com erros de todo o tipo – de transcrição, de anotações, de fontes. Trata-se da maior reunião que se conhece de poemas de Euclides da Cunha. Entretanto, sabíamos da existência de um caderno manuscrito que, na verdade, é sua primeira produção escrita e data dos anos 1883 e 1884, quando o autor, então adolescente, ainda estava no colégio preparatório para a Escola Militar. Apenas nesse caderno, nós temos mais de 80 textos inéditos.

JU – A lacuna era grande...

Hardman – Muito. Esses cadernos permanecem inéditos. De outra parte, verificamos que, mesmo depois de se especializar na prosa, particularmente no ensaio, na crônica e na polêmica jornalística, Euclides continuou a escrever poesia – mesmo que de forma esparsa e descontínua–, praticamente até o final da sua vida. Algumas foram publicadas esparsamente e outras permaneceram inéditas. Percebemos que seria muito importante fazer esse tipo de inventário e de revisão. Nossa decisão foi tomada em 1999, exatamente uma década depois de O Fantasma. O professor Leopoldo Bernucci já havia editado o seu precioso livro A Imitação dos Sentidos. Nós nos conhecemos em 1997, num evento sobre Canudos, no Museu da República, no Rio de Janeiro. Mantivemos contatos e, já em 1999, durante a Semana Euclidiana, em São José do Rio Pardo, em conjunto com nosso colega Fred Amory, professor aposentado da Universidade de São Francisco, que estuda Euclides da Cunha desde os anos 1950, decidimos nos associar para que se pudesse fazer uma reunião desse conjunto da produção poética. Não colocamos nunca a pretensão de fazer uma edição de poesia completa porque isso é sempre arriscado, já que invariavelmente aparece alguma coisa que nunca ainda foi levantada. A partir de 1999, então, começamos esse trabalho, inicialmente com a presença do professor Amory, que depois teve problemas de saúde e passou a investir o seu interesse num projeto que ele tinha há muito tempo, que é a biografia literária e intelectual de Euclides da Cunha.

JU – Em que medida Os Sertões ofuscou a produção poética euclidiana?

Hardman – Os Sertões surge como uma espécie de monumento literário. É curioso porque em relação à própria memória de Canudos é uma coisa ambígua. Por um lado, nós talvez não tivéssemos o alcance e a memória sobre o massacre e sobre o que foi aquela guerra se não tivéssemos um narrador à altura do drama e da tragédia. Por outro lado, evidentemente, que a construção dessa narrativa coloca, como bem disse o estudioso José Calasans, o movimento de Canudos numa espécie de gaiola de ouro. Portanto, evidentemente, várias vozes, atos, ações e personagens daquele drama também estão, de alguma maneira, obscurecidos. E isso aconteceu em relação ao próprio conjunto da obra de Euclides. A força daquele livro realmente acabou obscurecendo tanto o que seriam os escritos anteriores e posteriores de Os Sertões. Só recentemente, em relação à própria construção do texto Os Sertões, aliás graças, entre outros, a Walnice Nogueira Galvão e ao próprio Leopoldo Bernucci, que a gente começou a perceber melhor a questão das fontes, os vários textos prévios, os laços que existem etc. A mesma coisa ocorre em relação às crônica e aos ensaios amazônicos, políticos e de história diplomática.

Euclides da Cunha (Foto: Cadernos de Fotografia Brasileira - Instituto Moreira Salles/Casa Euclideana)JU – Se em Os Sertões, Euclides lança mão de diferentes linguagens e estilos, como definir sua obra poética?

Hardman – Acho que a poesia ajuda a entender, em parte, a construção da sua prosa. Isto foi observado com muita pertinência, entre outros, por Guilherme de Almeida, que fez um estudo pioneiro sobre a presença de uma construção poética no texto de Os Sertões. E, depois, mais recentemente, os irmãos Campos, num ensaio de 1997, em grande parte tributário do ensaio pioneiro de Guilherme de Almeida, também examinaram essa questão. Nós temos aí a possibilidade de fazer uma espécie de exame comparado e contrastivo dessas experiências.

No caso da poesia nós temos, evidentemente, por conta de ter sido escrita nos começo dos anos 1880, ainda uma forte presença do romantismo, das matrizes românticas. Por outro lado, com o passar do tempo, vários elementos de modernidade literária começam a surgir nesses versos. São vários momentos. Temos poesias muito interessantes vinculadas a temas da Revolução Francesa, por exemplo, que são retomadas por Euclides dentro daquele ambiente do republicanismo; temos forte presença de Victor Hugo, Castro Alves, Fagundes Varela, entre outros. São autores que formam um pouco a identidade poética do então jovem autor. É interessante observar como esses vários aspectos e elementos se arranjam no interior do universo poético euclidiano.

JU – Em que medida os dilemas existenciais de Euclides migraram para a sua poesia?

Hardman – Nós temos poesias nas quais é forte a presença dos temas amorosos, de feição lírica mais evidente, como também vários textos, muito interessantes, que são vinculados a acontecimentos ou mesmo à relação intelectual e de amizade. Em alguns versos que são feitos como dedicatórias para cartões postais enviados para diferentes intelectuais brasileiros contemporâneos de Euclides, revela-se uma faceta mais satírica, às vezes irônica e até bem-humorada. Enfim, há um universo muito rico. Nós temos aí perto de 140 textos no conjunto.

JU – Em ensaio publicado no Cadernos de Literatura Brasileira, o senhor aborda a similitude e as diferenças entra a poética euclidiana e a obra de Raul Pompéia. O senhor poderia falar sobre elas?

Hardman – Já em Os Sertões isso se torna evidente. Trata-se de uma narrativa de um desastre histórico e social e, ao mesmo tempo, com esse elemento forte de tragédia. A professora Walnice mostrou, por exemplo, como a própria estruturação da obra de alguma maneira imita a arquitetura de uma tragédia. Isso se vincula ao que eu chamaria de desilusão do progresso, que em diferentes estágios foi uma experiência de um sentimento compartilhado por vários intelectuais do final do século, entre os quais Raul Pompéia, Gonzaga Duque e Alberto Rangel.

JU – Havia uma forte relação com a realidade política da época...

Hardman – Sem dúvida. Por outro lado, existia uma espécie de sensibilidade comum e melancólica que perpassa esses autores. Quem apontou isso inicialmente foi o crítico Araripe Junior. De alguma maneira, colocam a idéia da experiência da arte e da literatura dentro de uma perspectiva bastante negativa. Predominava a idéia de que o mundo da modernidade é um mundo que caminhava no sentido da produção e da reprodução de ruínas. Há uma consciência de que a República, a civilização moderna ou o próprio capitalismo caminhavam para uma situação em que aparecem a destruição e a configuração de paisagens arruinadas. Até mesmo na dimensão ecológica. É impressionante a análise que Euclides faz do Vale do Paraíba depois da passagem vertiginosa da produção cafeeira. Ele foi um dos primeiros autores a notar esse traço de decadência. A imagem de cidades mortas, décadas depois, foi inspirada sem dúvida alguma nas leituras que Monteiro Lobato fez do autor de Os Sertões em alguns de seus ensaios publicados no Estadão e depois reunidos no livro Contrastes e Confrontos, de 1907. Acho que existe essa aguda visão de um mundo em decadência. Portanto, sua literatura, ao contrário do que se poderia imaginar, não é uma literatura edificante.

Um poema de Euclides

Página vazia
Quem volta da região assustadora
De onde eu venho, revendo inda na mente
Muitas cenas do drama comovente
Da Guerra despiedada e aterradora,

Certo não pode ter uma sonora
Estrofe, ou canto ou ditirambo ardente,
Que possa figurar dignamente
Em vosso Álbum gentil, minha Senhora.

E quando, com fidalga gentileza,
Cedeste-me esta página, a nobreza
Da vossa alma iludi-vos, não previstes

Que quem mais tarde nesta folha lesse
Perguntaria: “Que autor é esse
De uns versos tão mal feitos e tão tristes”?

Bahia – 14 de outubro de 1897

JU – Qual a diferença do primeiro Euclides para o do final da vida?

Hardman – As escolas literárias nos ajudam a compreender muitas coisas, mas às vezes atrapalham. É muito difícil rotular e classificar um autor complexo e de raro valor – como é o caso de Euclides da Cunha – dentro de uma escola estética única. O que caracteriza as melhores obras e os melhores autores é exatamente a heterogeneidade, a mistura, a contradição, ou até mesmo o hibridismo de gêneros literários. Em Os Sertões você tem elementos de construção de um texto dramático no sentido de uma encenação teatral. Você tem também recursos romanescos e, ao mesmo tempo, há o relato de viagem, que faz um percurso de fora para dentro. Há da mesma forma algo que lembra evidentemente a narrativa militar, a narrativa de guerra.

JU – Que pode ser atribuída à sua formação militar.

Hardman – Exatamente. No momento em que ele escreve finalmente o livro, não. Mas no momento em que ele vai para o cenário, ele tinha recém-saído do Exército mas de alguma maneira ainda se vale de seus laços com a corporação militar, até mesmo para se aproximar daquele cenário. Retomando: há evidentemente também em Os Sertões outro gênero que talvez é o que acaba amalgamando os demais, na minha visão pelo menos, que é o ensaio. Temos aí a obra do grande ensaísta, do ensaio de interpretação, que aliás no Brasil tem uma tradição importante. Trata-se de um autor que, de alguma maneira, está tentando entender os enigmas da nossa sociedade. Euclides tenta decifrar a formação da sociedade brasileira nas suas raízes históricas, sociológicas e raciais. Seus conhecimentos eram complexos. Acho então que temos forte presença do romantismo e, ao longo da sua trajetória literária, detectamos também elementos das estéticas fim de século, seja do realismo naturalista seja do simbolismo e do decadentismo, que são imagens muitas vezes pictóricas, metafóricas, não absolutamente referenciais. Todos esses elementos se combinam de forma contraditória. Nos cartões postais, por exemplo, na fase dos primeiros anos do século 20, ele está mais livre um pouco das fórmulas convencionais do soneto romântico. Há uma espécie de auto-ironia e de elemento satírico que aparece ali com muita força, que surge como metalinguagem e como elemento importantíssimo de modernismo.

O general Carlos Eugênio de Andrade Guimarães (à janela) com oficiais (Fotos: Cadernos de Fotografia Brasileira - Instituto Moreira Salles/Casa Euclidiana)JU- Em que medida essa garimpagem da obra poética ilumina o conjunto da obra euclidiana?

Hardman – Todo mundo diz que a poesia euclidiana é de juventude, de pouco interesse. Ora, isso é incrível. Até hoje existem textos por completar a obra e o acervo literário de um autor canônico como Euclides. Só no Brasil acontece isso...Até hoje, a constituição e o estabelecimento do conjunto dos seus textos estão por fazer ou por se completar. Aliás, isso acontece também com Machado de Assis. É impressionante – diz respeito ao estado sempre precário da memória e da preservação de acervos. Ou diz respeito, também, talvez, a uma falta de tradição da pesquisa do que se poderia chamar de historiografia literária no cômputo da crítica literária mais tradicional, ela própria responsável por ficar restrita às obras-primas e canônicas, sem discutir o próprio processo de constituição dos cânones. Para entender esse processo, é preciso entender um universo de produção muito mais amplo. Acho que a leitura dessa poesia em parte inédita e em parte dispersa, no seu conjunto, vai ser muito útil para iluminar a prosa. Ao mesmo tempo, a sua prosa ilumina muitos aspectos de sua poesia e assim por diante. Ao mesmo tempo, enriquece o diálogo desses textos com os textos que lhes são contemporâneos. Ilumina também matrizes anteriores e transgressões e inovações posteriores.


O professor e historiador Ítalo Tronca, que concebeu o documentário Canudos - O Estigma da República: fugindo da abordagem da historiografia oficial (Foto: Antoninho Perri)Contradições

Euclides da Cunha é uma personalidade extremamente interessante. É desnecessário ficar gastando latim para enaltecer seu talento literário. Mas como homem político, digamos, ele é contraditório e “esquizofrênico”. Numa primeira fase, vê Canudos como uma aberração. Como militar que foi, apóia a visão das Forças Armadas e da elite brasileira da época contra Canudos, para os quais aquilo era um tumor que estava se desenvolvendo numa região meio perdida do oeste baiano, mas que podia se disseminar. Nada mais justo então do que extirpá-lo... Euclides faz várias declarações enfáticas nesse sentido. Como jornalista destacado pelo jornal A Provincia de São Paulo, vai para o arraial impregnado da visão positivista do Exército, cujo ideário preconizava o progresso, a industrialização e a tecnologia, vistos como a grande esperança da humanidade. Ainda jovem, Euclides é contaminado por esse ambiente. Vai para Canudos na certeza de lá encontrar um arraial de bárbaros. Apóia o Exército e aposta no êxito da campanha em nome do progresso e da civilização. Quando Euclides se depara com a realidade, tanto do lado do Exército quanto dos lados dos insurgentes, começa a mudar de opinião.

O choque

Os Sertões adquiriu essa importância que tem na literatura ocidental exatamente porque reflete a sinceridade de um Euclides surpreendido pelo que ele imaginava que fosse e por aquilo que ele encontra na realidade – fica atônito e profundamente decepcionado com o rumo dos acontecimentos e com o fato de o Exército recrutar uma tropa em grande parte constituída de jovens destreinados. Os únicos que tinham experiência de campanha em terrenos conflagrados eram os oficiais, que não combateram. A tropa acaba sendo um alvo fácil para os canudenses. Afora os aspectos militares, Euclides se depara também com um arraial extremante pobre. As fotos de época revelam isso. A população sobrevivia de plantações. Ao mesmo tempo, Canudos se transformou num pólo de atração de pessoas semi-escravizadas nos seringais da região amazônica, e nas grandes lavouras nordestinas já decadentes pela concorrência que enfrentavam do café do Centro-Sul. Euclides passa a ser o maior crítico desse genocídio, da força que foi empregada contra essa gente.

Duas fases

A grande virtude de Os Sertões é ser também, de alguma forma, “esquizofrênica”. A obra reflete as duas fases cumpridas pelo autor. Euclides não foi com um projeto já pronto – com começo, meio e fim – na cabeça. Sua visão vai se transformando no contato direto com a realidade. Ele se reformula, inclusive, como ser humano.

Sensibilidade

Acho que o jornalista Euclides entra em contato com uma realidade que nada tem a ver com que ele havia aprendido na escola militar. Acontece que ele tinha um talento, colocado em dúvida no início porque Os Sertões parecia uma obra impenetrável e gongórica. Não existem pesquisas da repercussão jornalística do trabalho de Euclides no front. Ele cobriu apenas a última expedição, a fase do massacre. Para São Paulo e Rio de Janeiro, Canudos era uma coisa perdida no mapa, algo que acontecia numa região bárbara.

O pretexto

Canudos inaugura um regime de uma República na verdade esvaziada dos valores que significariam antes de mais nada uma democratização, mais ou menos como aquela que ocorreu, por exemplo, nos Estados Unidos. Comparada à República norte-americana, a nossa era oligárquica, com o perdão do clichê. Na verdade, era uma empresa dos grandes grupos que na época predominavam, composta de cafeicultores de São Paulo e do Rio de Janeiro. E isso não é pouco. Havia, de outro lado, o Exército. Canudos, então, acaba servindo de pretexto para uma demonstração, para a sociedade, dos valores pretensamente progressistas e modernizantes da República. O movimento de Canudos passa a ser representado como algo profundamente atrasado, vinculado a idéias monárquicos. Em parte, do ponto de vista puramente formal, era verdade. Antonio Conselheiro era um beato com formação religiosa. Mas esse beatismo, na verdade, não significava atraso. Ao contrário. Na verdade, era alguma coisa que se voltava para as necessidades e anseios de uma população que estava à margem dos grandes negócios da elite.

A nova dominação

A época foi marcada por um novo estilo de dominação, que substitui a monarquia. Conselheiro tinha uma ligação direta com essas camadas que não tinham voz. Para a República foi um prato cheio identificá-lo imediatamente com o sistema monárquico. Alardeava que um dos objetivos do movimento era a volta do Império. Na verdade, Conselheiro via o Império como algo melhor do que a República. É preciso pensar também em termos de Nordeste, que vivia uma decadência sem precedentes. A economia do açúcar já não representava a importância que tinha no Império, já que sofria a concorrência das Antilhas. Isso levou à ruína as oligarquias nordestinas.

Baronato

Conselheiro nasce e se cria nesse contexto na segunda metade do século 19. Enquanto isso, registrava-se no Centro-Sul o soerguimento da economia brasileira apoiada no café. E, mais para o final do século, a industrialização de São Paulo. O Rio de Janeiro já era em parte industrializado, mas São Paulo o supera rapidamente. No início da República esse fato vai ter um peso considerável. São Paulo passa a representar, inclusive politicamente, um peso cada vez maior. Canudos então está encravado entre a decadência açucareira e o florescimento da economia cafeeira. Prudente de Moraes, não por acaso, é um grande fazendeiro de café que se elege presidente da República. Evidentemente, toda uma ideologia de progresso é gerada tendo Canudos como contraponto. Canudos era o atraso que precisava ser varrido da história. O que acontece, na guerra, a rigor, é um massacre. Conselheiro tinha um projeto de autonomia, mas que de maneira alguma ameaçava os poderes da República.

Conluio

Há um conluio entre as forças ditas progressistas e as oligarquias decadentes. Estas últimas vêem, no conflito, um excelente pretexto para tentar se soerguer e pesar mais nos negócios da República. Tanto que as primeiras expedições são mobilizadas na província da Bahia. Paulistas, cariocas, gaúchos etc entram na guerra a partir da terceira ou da quarta expedições.

Outros sentidos

Se você situar Canudos nesse contexto mais geral da história do Brasil, o episódio ganha outros sentidos, outras dimensões, que negam esse clichê de um bando de atrasados e miseráveis que se organizam em torno de um beato obscurantista, que pretendia apenas a perpetuação de um sistema. Conselheiro e seus seguidores pagaram o preço.

Artilharia pesada

Na última expedição, havia cinco mil soldados no arraial de Canudos. E não era só o número de soldados. A artilharia era pesada. As metralhadoras eram importadas e as táticas militares, modernas. O que não impediu que o Exército tivesse baixas catastróficas. Os sertanejos, devidamente entrincheirados, se apropriaram de armas dos próprios soldados, em sua maioria, jovens. Os “jagunços” eram homens experientes, habituados inclusive à geografia do local, totalmente desconhecida da tropa. Foi algo que inaugura no Brasil a chamada guerra moderna, mas com um prejuízo imenso em termos materiais e de perdas humanas. Milhares de jovens morreram naquelas caatingas, tudo por conta de um projeto político republicano que, no fundo, representava a continuação de um sistema de dominação que se prolongaria depois, século 20 adentro. Aí já não mais contra sertanejos, mas contra operários em São Paulo, no Rio de Janeiro... Passamos a ter uma série de enfrentamentos por conta de toda uma efervescência que era muita própria das primeiras décadas do século 20.

Disparador

Canudos sempre me provocou curiosidade. Por força da comparação do que acontece no Brasil de ontem e no Brasil de hoje, Canudos me despertou a atenção de como esses poderes aparecem de uma forma nítida – inclusive o papel do Exército ao longo do tempo. Tudo isso aparentemente nada tem a ver com Canudos mas, recuando no tempo, vimos como o Exército se organiza, qual é a sua ideologia, a sua estratégia, inclusive em como os sucessivos estados-maiores pensam a nação. Nesse contexto, Canudos é um disparador.

Guerra globalizada

Canudos na verdade foi uma guerra globalizada. O conflito foi coberto por jornalistas franceses, ingleses e americanos. Por que um movimento no interior da Bahia, num país que nem tinha grande importância, despertaria a atenção de outras nações? O que estava em jogo no final do século 19 que não foi explicitado? Canudos na verdade é uma espécie de epítome dessas novas tendências da história brasileira inserida no cenário internacional. Canudos não se esgota em si mesmo; teve uma importância bem maior.

O anti-Cristo

Canudos representava, na imaginação das lideranças republicanas, uma ameaça potencial. Não adiantava acreditar que o movimento ia se circunscrever em si mesmo, que ia ficar enquistado. E se esses ideais canudenses se disseminassem? De outro lado, você tinha a Igreja com uma força extremamente conservadora. Uma de suas lideranças, um frade, preconizava a destruição de Canudos. Conselheiro era também um líder, representava uma concorrência à Igreja oficial. A República, então, desse ponto de vista, estava muito bem-servida. Conselheiro representava o anti-Cristo...

Atraso?

Há autores que viam em Conselheiro um homem atrasado. Mas atrasado em relação a quê? Dependendo da leitura que se faça da religião, ela pode ser até um elemento de libertação. E era o que Conselheiro pretendia. Evidentemente que o líder não podia pregar ideais anarquistas ou industrialistas para uma população que vinha sobrevivendo, a duras penas, do trabalho na terra. Nesse contexto, a religião de Conselheiro tem até um aspecto progressista. Essas contradições todas estão sintetizadas em Canudos.

Revoltas

A historiografia brasileira na verdade cuida mal das nossas revoltas. Canudos está dissolvida em meio às revoltas nativistas. Se formos um pouco mais rigorosos, vamos encontrar um cunho ideológico justificador dessa guerra de extermínio contra Canudos, inclusive na ferocidade da repressão contra o movimento operário em São Paulo no Rio de Janeiro. Mas faz parte de uma esfera mais aberta de uma concepção republicana que na verdade é uma concepção totalitária. Trata-se do domínio das elites sobre a maioria da população; não se cogita de democracia. Canudos tem essa força simbólica por que foi, entre outras, a que repercutiu mais.

Conselheiristas rendidos em 2 de outubro de 1887, um dia depois do confronto final no arraial de Canudos (Foto: Cadernos de Fotografia Brasileira - Instituto Moreira Salles/Casa Euclideana)Comparações

Acho que é preciso ter cuidado nas comparações. Muitos colegas podem me criticar pelo anacronismo das comparações. Como comparar, por exemplo, Carandiru com Canudos? Aparentemente, é um absurdo, mas acho que tem muito a ver. Do ponto de vista simbólico mais abstrato, representa um sistema de dominação que é gerado não só em Canudos mas em outros movimentos repressivos durante o Império, que confirmam apenas o caráter profundamente autoritário da República no Brasil.

Reflexão

Canudos merecia uma reflexão mais aprofundada. No entanto, essas coisas são passadas nas escolas num estilo de manual. A guerra é vista e tratada nos livros de história como mais um conflito entre o poder hegemônico e revoltosos, minorias que não tinham um projeto nacional e que se fechavam em si mesmas. De outro lado, você tem, do ponto de vista da historiografia, um conservadorismo não só em relação a Canudos, mas também em relação ao Contestado, à Guerra dos Farrapos e à Cabanagem.

Premonição

A ausência de uma democracia genuína no Brasil é uma coisa que marca até hoje profundamente a nossa história. Canudos tem essa espécie de caráter premonitório do que seria a República. Daí o título do documentário fazer menção ao estigma. No Brasil, a República não se realizou até hoje.

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