CARMO GALLO NETTO
Às vésperas do último jogo das eliminatórias para a Copa do Mundo de 1994, contra o Uruguai, um jornal levou o ex-goleiro Barbosa estigmatizado porque teria falhado na final de 1950 contra o Uruguai, que ganhou a Copa em pleno Maracanã para uma conversa com Taffarel. O encontro foi abortado pelo treinador Carlos Alberto Parreira, receoso de que o goleiro da seleção brasileira da época fosse “contaminado pelo azar”. No Moyses Lucarelli, estádio da Ponte Preta, em Campinas, o busto do patrono foi mudado de posição para que não ficasse de costas para o campo, ao que se atribuía o insucesso do time. São incontáveis os casos de superstições que permeiam o futebol no Brasil. Por que a superstição resiste no futebol brasileiro apesar de todo o avanço científico e tecnológico?
No Brasil, o menino ao nascer ganha nome, religião e um time de futebol. Mal começa a andar e já chuta bola com o uniforme do clube de preferência. Inicia-se assim a construção social do ato de torcer no futebol, do que resulta um fato sócio-histórico que mescla a identidade pessoal e coletiva do chamado torcedor. Mas como é iniciado esse ritual de passagem?
Não faz muito tempo os cronistas esportivos distinguiam com ênfase o futebol-arte, que seria o praticado no Brasil, do futebol-força, característico dos países europeus, pois Europa e América do Sul constituíam os dois grandes centros futebolísticos. O futebol-arte se distinguiria pela beleza, floreios, dribles, “bicicletas”, toques de calcanhar, e o futebol-força seria jogado por atletas fisicamente bem constituídos, que usam o corpo e uma certa violência, e que se caracterizariam pela “falta de cintura”, como se dizia. Ao longo dos anos o futebol se disseminou praticamente por todos os países dos continentes, estabeleceram-se intercâmbios de jogadores e técnicos e observaram-se múltiplas influências, de forma que logo emergiu a questão: qual seria hoje o estilo predominantemente brasileiro?
As rivalidades entre torcidas e suas conseqüências em espetáculos de futebol constituem preocupação das autoridades que, com o advento das torcidas organizadas, reservam-lhes locais bem distintos nos estádios. Que fatores interferem na construção dessa rivalidade e como ela se expressa entre torcedores de duas equipes do futebol nacional?
A rivalidade entre as torcidas gera muitos casos de violência, resultante das manifestações exacerbadas dos torcedores em estádios de futebol em todo o mundo. Quais são os elementos da violência presentes nos espetáculos futebolísticos?
Os meninos jogam bola e as meninas brincam de boneca. Por que no Brasil o futebol se tornou espaço de expressão masculina?
Procuram dar respostas a estas questões seis estudos e pesquisas realizadas por docentes e alunos de pós-graduação e graduação da Faculdade de Educação Física da Unicamp (FEF), publicados em livro recém-lançado e organizado pelo professor Jocimar Daolio, também um dos autores. A coletânea “Futebol, cultura e sociedade” discute o futebol com base em uma abordagem sócio-antropológica. Parafraseando o antropólogo americano Clifford Geertz, Daolio afirma que “o futebol é, ao mesmo tempo, um modelo da sociedade e um modelo para uma determinada sociedade apresentar-se” e considera ainda que “no Brasil o futebol ganha relevância por ser o principal esporte nacional, tanto que aqui a expressão ‘jogar bola’ diz respeito ao futebol e a nenhum outro esporte”.
O primeiro texto da coletânea discute o fenômeno da superstição; o estudo que lhe segue mostra a construção social do ato de torcer no futebol, com base na torcida do Vasco da Gama do Rio de Janeiro; o terceiro trabalho analisa as características que distinguem o binômio futebol-arte/futebol-força, buscando compreender o estilo do futebol brasileiro; o texto seguinte aborda a rivalidade entre torcidas, tomando como base os simpatizantes de Ponte Preta e Guarani, clubes de Campinas; o estudo que segue discute a relação do espetáculo futebolístico e a violência; e a sexta abordagem tenta compreender os espaços sociais destinados a homens e mulheres, estabelecendo um contraponto com o que ocorre na sociedade americana.
Os estudos não se atêm a regras, técnicas, sistemas de jogo, preparação física, mas discutem o futebol como um dado da sociedade, como um fenômeno sócio-cultural. O eixo comum é a dimensão sociológica e antropológica e o fato de resultarem de trabalhos desenvolvidos na Faculdade de Educação Física da Unicamp, esclarece Daolio. Embora resultem de trabalhos acadêmicos, os textos utilizam linguagem direta e acessível.
Superstição Jocimar Daolio afirma que a superstição é um fenômeno impregnado no povo brasileiro, que se manifesta no futebol ou talvez preferencialmente nele: “O futebol de certa forma favorece esse tipo de comportamento, porque é um jogo que utiliza os pés e, por isso, é menos preciso. Além disso, a dimensão do campo aumenta a imprecisão. Os placares são em geral pequenos e suscetíveis a improbabilidades. Um time tecnicamente inferior pode utilizar um esquema totalmente defensivo e marcar um gol em lance fortuito, às vezes nos últimos minutos. A imponderabilidade leva à crença na sorte e no azar e ativa a superstição, impregnada no povo brasileiro, permeado pelo sincretismo religioso. O futebol é o terreno fértil para suas manifestações”. Daolio lembra que a incerteza dos resultados permite que sejam usados pela loteria e que o futebol é o único esporte coletivo que se presta a isso, pois nos outros a equipe tecnicamente superior invariavelmente vence.
Na avaliação de Daolio, só é possível discutir a superstição no futebol brasileiro se o olharmos como fenômeno sócio-cultural que expressa e reflete a própria condição do ser humano nacional: “Somente com uma abordagem baseada na antropologia social é que se pode compreender o futebol como parte integrante da vida dos brasileiros”. Deixando de lado fatores biológicos e funcionais, ele credita o sucesso do futebol no Brasil a uma combinação entre seus códigos e o contexto cultural brasileiro. O futebol serviria como uma espécie de linguagem vital por meio da qual questões profundas da sociedade seriam expressas, como o orgulho, o luto e a euforia.
Adotando conceitos das ciências humanas, o pesquisador considera que a cultura é um processo pelo qual os seres humanos orientam e dão significado às suas ações por meio de manifestações simbólicas e, nesse contexto, o futebol pode ser entendido como dotado de um conjunto de símbolos que expressam a sociedade brasileira. “Ora, se o brasileiro traz, em sua dinâmica cultural, características mágicas, religiosas, supersticiosas, crendices e se o futebol expressa e espelha a cultura, então, o futebol também apresenta essas características”, Para ele uma das formas de expressão do povo brasileiro se dá por meio de crenças e superstições, que fornecem explicações sobrenaturais para problemas que o ser humano não consegue entender e justificar.
O professor considera que a imprevisibilidade do futebol incentiva explicações de senso comum em termos de sorte ou azar, desígnio divino, destino, milagre, processo que se mantém a partir do mecanismo da crença, que se perpetua devido à eficácia simbólica.
Torcida e violência Insistindo na linha de análise que permeia todos os textos, Daolio diz que o ato de torcer, como o de jogar futebol e de jogar com um certo estilo não é genético, mas social. Segundo ele, o futebol permite uma violência simbólica, absolutamente saudável. Ela se manifesta por meio de gestos, gritos, xingamentos, vaias, canções, hinos, é emocionalmente sadia, gostosa e agradável e, diferentemente do que ocorre no cotidiano, aceita nos estádios. Tem como elemento básico a brincadeira. “Em que outro momento da nossa vida isso é permitido?”, pergunta.
Daolio lembra, porém, que há um limite em que a violência simbólica resvala para a violência real, que gera confrontos violentos. O grito de guerra vira ação. Para ele o que se deveria perguntar é o que está acontecendo na sociedade brasileira que faz com que o limiar entre o simbólico e o real seja ultrapassado. E ensaia uma resposta: “Muita gente não se sente parte de um grupo, falta-lhes um sentimento de pertencimento. Com família desestruturada, sem emprego e dinheiro, sem perspectivas, sem mecanismos de cidadania, são tênues os limites do matar ou morrer e daí resultam cenas impressionantes, protagonizadas por pessoas que depois da derrota do seu time não conseguem voltar à vida, à realidade”.
Para Daolio a violência no futebol pode ser encarada sob vários focos. Pode-se considerá-la inerente ao futebol. Então bastaria acabar com ele para extingui-la, o que considera uma visão simplista. Para ele seria acabar com uma prática que pode estar violenta mas não foi feita para ser violenta, a começar por suas regras extremamente éticas. Outro olhar julga que existe violência no futebol por causa de alguns “marginais” que freqüentam os estádios. Então bastaria prendê-los ou, como prega parte da mídia, cobrar ingressos mais caros, porque “marginal” é também pobre e não vai poder pagar. Seria uma forma de selecionar as pessoas que vão aos estádios. “Isso é preconceito. Não podemos descolar o futebol da sociedade brasileira pois o futebol é parte dela e como tal devem ser considerados os fatores que têm gerado a violência nos espetáculos futebolísticos”, diz ele.