Presença de alteração genética em enzima pode indicar
complicações e necessidade de tratamento preventivo
Estudo do Hemocentro dá
pista para evitar infecções
na anemia falciforme
LUIZ SUGIMOTO
A anemia falciforme é uma doença hereditária crônica, cuja gravidade na evolução clínica pode variar de doente para doente. As infecções e crises de dor levam muitos pacientes a várias internações por ano, enquanto outros nunca foram hospitalizados. Segundo estudo realizado por pesquisadores do Hemocentro da Unicamp, a presença de um poliformismo no gene da enzima identificada como G-463A MPO, nos glóbulos brancos, pode ser um indicativo de pacientes mais suscetíveis a infecções. A associação de maior freqüência de infecções graves com esta anormalidade na enzima mieloproxidase é uma descrição inédita na literatura, e permitiria um tratamento especial já a partir do diagnóstico, prevenindo contra complicações. Como a maioria de infecções graves ocorre em crianças, o tratamento profilático e a vacinação tornam-se particularmente importantes, sendo feitos em todos os pacientes com a doença. Os dados do estudo permitem identificar o grupo de pacientes que talvez necessite de antibioticoterapia profilática durante toda a vida.
O trabalho no Hemocentro serviu como dissertação de mestrado de Raimundo Nonato Pereira Costa, sob orientação do professor Fernando Ferreira Costa, e acaba de ser publicado em uma das mais importantes revistas européias de Hematologia, a Haematologica The Hematology Journal. Nicola Conran, Dulcinéia Albuquerque, Paulo Soares e Sara Saad assinam o artigo como co-autores. De acordo com o professor Fernando Costa, que é o atual vice-reitor da Unicamp, a pesquisa envolveu 91 doentes de anemia falciforme, sendo 63 sem infecções e 28 com uma ou mais infecções. “A enzima G-463A MPO estava presente em 60,7% dos pacientes com infecções, contra 31,7% dos pacientes que apresentavam evolução menos grave da doença”, afirma.
Segundo Fernando Costa, os glóbulos brancos (neutrófilos) carregam uma enzima chamada mieloperoxidase (MPO), que tem a importante função de eliminar microorganismos invasores. Porém, existe uma variante desta enzima que não funciona com a mesma eficácia, a G-463A MPO. “Ela é encontrada em certa percentagem da população em geral, sem trazer problemas para o indivíduo saudável. Mas, no paciente com anemia falciforme, pode indicar suscetibilidade a infecções. É apenas um primeiro estudo e seu resultado precisa ser demonstrado em outras populações. Se isso acontecer, poderemos identificar, já no diagnóstico da doença, a criança que necessita de tratamento especial por exemplo, ministrando-lhe antibióticos profilaticamente não só durante a infância, mas pelo resto de sua vida e como conseqüência diminuir bastante o risco de complicações”, observa.
A foice A anemia falciforme decorre de uma deformação das hemácias (os glóbulos vermelhos), que têm formato bicôncavo com depressões de ambos os lados que fazem lembrar uma bala do tipo “soft”. O tamanho da célula vermelha é de 7 micra (1 micra equivale à milésima parte do milímetro), mas a plasticidade lhe permite passar por vasos sanguíneos de até 2 micra. As hemácias são ricas em hemoglobinas, moléculas que dão a cor vermelha ao sangue e têm a função vital de transportar o oxigênio dos pulmões para os tecidos.
Na anemia falciforme, ocorre uma mutação na cadeia beta de hemoglobina. “Quando a hemácia chega aos tecidos e libera o oxigênio, a hemoglobina fica na forma desoxigenada e se polimeriza, distorcendo a hemácia, que se torna rígida e ganha o formato de foice”, explica Fernando Costa. Esta hemoglobina anormal é denominada “S”. Sem flexibilidade para passar por capilares pequenos, as hemácias vão se acumular e obstruir a circulação do sangue. Acontece então a oclusão vascular e as lesões nos tecidos. Como vasos sanguíneos estão por todo o corpo, há risco de lesões em qualquer parte, como sistema nervoso central, pulmões, fígado, rins e baço.
Geralmente, os sintomas aparecem a partir dos seis meses de vida da criança. Os mais freqüentes são crises dolorosas provocadas pela obstrução de pequenos vasos, dores que podem se tornar extremas e passar ao abdômen, tórax e articulações. Há crianças que apresentam inchaço bastante doloroso nas mãos e nos pés, e aquelas muito suscetíveis a infecções bacterianas, como pneumonias e meningites. Na adolescência, úlceras próximas aos tornozelos são comuns, registrando-se, também, casos de atraso no desenvolvimento físico e sexual. As obstruções vasculares no baço, que funciona como um “filtro” do sangue, traz risco de vida: o órgão vai gradativamente perdendo sua função, o que aumenta muito a possibilidade de infecções nesses pacientes. “Infecções graves representam uma das principais causas de morte nos primeiros anos de vida”, acrescenta o professor.
Herança A anemia falciforme é uma doença característica de descendentes de africanos, e calcula-se que 8% desta população no Brasil sejam heterozigotos para a hemoglobina S. No entanto, devido à grande miscigenação no país, não se pode afirmar que seja uma doença apenas de negros ou pardos. Estima-se uma média de 1 caso em cada 5.000 recém-nascidos no Estado de São Paulo, onde o “teste do pezinho”, capaz de detectar a doença, já se tornou praxe. “Na Bahia, onde a população de descendentes de africanos é maior, a incidência certamente é mais elevada. Existem populações com 20% de portadores do traço falciforme em certos países da África”, compara.
Todos recebemos dos pais um par de genes da globina beta, responsável pela síntese de hemoglobina. A hemoglobina normal é chamada de A e os indivíduos normais são AA, pois recebem dois genes normais, um do pai e outro da mãe. Quando a pessoa recebe dos pais um gene A e outro S (anormal), torna-se portador do traço falciforme, sendo AS, um heterozigoto. Recebendo de ambos os pais um gene da hemoglobina anormal, o indivíduo será um homozigoto (SS), portador da anemia falciforme. Deste modo, um homem e uma mulher heterozigotos podem ter filhos normais (AA), com um gene alterado (AS) ou homozigotos (SS). A probabilidade de um casal de heterozigotos ter um filho com anemia falciforme (SS) é de 25%.