Pesquisador faz estudo gramatical do matis,
idioma de tribo situada na fronteira entre Brasil e Colômbia
Decifrando a língua
de 262 indígenas
JEVERSON BARBIERI
Um estudo gramatical inédito da língua indígena matis, pertencente à família Pano, foi desenvolvido pelo pesquisador Rogério Vicente Ferreira, do programa de doutorado do Departamento de Lingüística, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. O objetivo, segundo Rogério, é apresentar uma descrição morfossintática da língua matis, falada por 262 indígenas que habitam no médio Ituí, no noroeste amazônico, na fronteira entre Brasil e Colômbia. O pesquisador explica que, como não foi encontrado nenhum registro anterior, ele procurou descrever a sua morfologia de maneira mais abrangente possível, detalhando a função de cada morfema em sua respectiva classe gramatical, além de apontar aspectos sintáticos da língua. “É o resultado de uma pesquisa que objetiva descrever o matis em seus aspectos fonológicos, morfológicos e sintáticos”, completa.
O interesse de Ferreira pela pesquisa em línguas indígenas surgiu ainda na graduação, no curso de Letras da Universidade de São Paulo (USP). A única dúvida na época, segundo o pesquisador, era qual pesquisar, já que existem aproximadamente 200 línguas indígenas. Logo após o término da graduação, foi convidado para trabalhar no Museu Emílio Goeldi, no Pará. Lá, decidiu trabalhar com a família Pano, iniciando seus trabalhos de pesquisa e fazendo algumas viagens até a área indígena, com a finalidade de coletar dados. O interesse pela língua da família Pano, que se revelou um desafio, em termos de custo e de acesso, surgiu principalmente por ser uma língua não pesquisada lingüisticamente. O mestrado na Unicamp foi realizado sobre um estudo de aspectos morfossintáticos da língua matis. O pesquisador diz que o interesse pelo trabalho e a vontade de vencer desafios o levaram ao doutorado, dessa vez para complementar o trabalho.
A família e a língua - A família Pano é constituída por 29 línguas, faladas por habitantes das regiões fronteiriças entre Brasil (12 línguas), Peru (14) e Bolívia (3). No Brasil, os falantes de Pano estão concentrados nos estados do Amazonas, Acre e Rondônia. As línguas faladas no Amazonas são matis, matsés (mayoruna), marubo e korubo. No Acre encontram-se o katukina, kaxinawá, poyanáwa, yaminawa, yawanáwa e shanenawá. Em Rondônia encontra-se o kaxarari. Rogério afirma que existem algumas variantes que até o momento estão sendo consideradas como dialetos, porém, são necessárias mais pesquisas até que se possa comprovar o status ou não de língua. Se isso for comprovado, o número total de línguas da família Pano pode chegar a 35.
Os primeiros contatos com os matis foram feitos no final da década de 1970 e, por muitos anos, não houve nenhum estudo sobre eles. O primeiro pesquisador a fazer um trabalho acadêmico sobre o grupo foi o antropólogo Philippe Erikson, da Université de Paris X Nanterre, cujo resultado foi uma tese de doutorado. Porém, os contatos com a sociedade foram bastante prejudiciais ao grupo. Em 1983, o número total de índios matis não passava de 83. Nessa época o grupo estava divido em quatro clãs e como a Funai tinha uma dificuldade muito grande de atendimento, foi pedido que eles se agrupassem em apenas uma aldeia. Ao longo das últimas décadas, o grupo pode retomar o seu crescimento demográfico e, atualmente, 262 indíos matis compõem o grupo. Alguns rituais que tinham sido deixados de lado foram retomados com bastante vigor, voltando a fazer parte de suas vidas.
Problemas A reserva indígena onde está localizada a tribo dos matis chama-se Vale do Javari, margeada pelos rios Itaquaí e Javari, na região de Tabatinga, no Amazonas. De acordo com Rogério, é uma região que concentra madeiras nobres e muita caça, além de ser porta de entrada do tráfico de drogas no Brasil. Esse contato entre indígenas e não-indígenas gerou conflitos que culminou em mortes, de ambas as partes. Em 1998, o departamento de índios isolados da Funai constatou a presença, na região, de outros grupos, que ainda não haviam tido qualquer tipo de contato com a sociedade. Temendo novas mortes, a Funai, em 1998, passou a impedir o acesso de não-indígenas, inclusive pesquisadores. “Meu trabalho de pesquisa foi realizado por um período dentro da reserva e, em outro, na cidade”, lamenta o pesquisador.
A Funai montou um posto de vigilância na entrada da reserva. As equipes, coordenadas por ela, são formadas pela Polícia Militar, Polícia Civil e, eventualmente, a Polícia Federal, em virtude do tráfico existente na região. Os índios foram envolvidos nesse trabalho e, a cada dois meses, um grupo compõe a patrulha de vigilância. Rogério conta que essa medida resultou em pontos favoráveis, como por exemplo, o número de mortes que se tornou praticamente inexistente. Além disso, a caça aumentou muito nas proximidades da maloca. “Antes eles tinham que caminhar dias para encontrar a caça. Hoje isso mudou substancialmente”, disse. Porém, essa é uma forma de preservação que também tem seus pontos desfavoráveis.
Rogério explica que o contato com a sociedade e o trabalho de vigilância trouxe aos índios uma preocupação muito grande de falar o português. Desde o contato com os não-indígenas, os matis passaram por uma série de transformações. Conquistaram materiais como machado, facão, serra, forno, utensílios domésticos, roupas, rádios e danças (forró). Agora querem, de acordo com o pesquisador, aprender a ler e escrever, como forma de conseguir prestígio. O trabalho de alfabetização já está sendo realizado pela ONG Centro de Trabalho Indígena CTI.
Essa busca de conhecimento com a chamada sociedade envolvente tem levado alguns pais a colocarem seus filhos para estudar na cidade. Atualmente, existem cinco índios matis matriculados em escolas da cidade. “O maior contato com a sociedade tem afetado algumas atividades culturais, tais como, caçar com arco e com zarabatana. Muitos não se interessam em ouvir sobre os mitos e não fazem mais a pajelança. Houve até um aumento nos casos de doenças venéreas, principalmente entre os jovens”, lamenta Rogério. Outra perda citada pelo pesquisador é com relação ao artesanato. “As peças tradicionais de adorno não são mais usadas diariamente. Na maioria dos casos, são feitas somente para venda”.
Complexidade - Para Ferreira, o seu trabalho começou a ter relevância quando ele percebeu a complexidade da língua matis e o que ela significa para o povo. Segundo o pesquisador, o matis não corre o risco de perder a sua língua, nem tampouco a Funai o considera um grupo em extinção. Os principais fatores de preocupação são como descrever as histórias, dar continuidade à análise da língua, produzir material didático e continuar apresentando à sociedade nacional a importância do grupo.
O grande trabalho, segundo Rogério, é mostrar aos indígenas a importância de sua cultura e de sua identidade. “A língua é um dos principais referenciais de um povo, e não deve ser deixada em segundo plano”, afirma. Para o lingüista, a cultura indígena não é uma cultura exótica e deve ser tratada com respeito. E esse respeito, segundo ele, passa também pelos investimentos que devem ser feitos pelas autoridades competentes. “A Funai possui hoje apenas dois lingüistas e as pesquisas ficam todas sobre as costas das universidades públicas. A Funai poderia ter uma equipe de lingüistas focada nesse tipo de pesquisa, o que colaboraria para priorizar a documentação e descrição das línguas indígenas brasileiras”, finaliza.
O trabalho de Rogério foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), através da bolsa do doutorado e o orientador do trabalho é o professor Angel Corbera Mori.