Livro registra experiência transformadora
no ensino de botânica para crianças da escola básica
Verdes Olhares
Luiz Sugimoto
A pequena Karina dos Santos Rocha, que da escola desenhava apenas o prédio de concreto, as paredes da sala de aula e a quadra de esportes, logo aprenderia a prestar atenção nas árvores, jardins e vasos, passando a colorir seus desenhos de verde. Um estudo florístico no entorno da Escola Municipal Padre Francisco Silva, no Jardim Londres, bairro periférico de Campinas, identificou 49 espécies de árvores, dez de arbustos, uma de erva e uma de trepadeira, num total de 259 indivíduos. Muitas espécies são frutíferas: amora (Morus nigra), manga (Mangifera indica), jaca (Artocarpus integrifolia) e limão (Citrus spp.). Foram achados ainda o feijão-guandu (Cajanus cajan) e a uva-japonesa (Hovenia dulcis). Dentre as espécies ornamentais, o flamboyant (Delonix regia), o chapéu-de-sol (Terminalia catappa), a figueira-benjamin (Ficus benjamina). Os ipês (Tabebuia spp.) e a sibipiruna (Caesalpinia peltophoroides) estão entre as árvores nativas. A única trepadeira é uma planta medicinal, a insulina (Cissus verticillata).
Karina não decorou qualquer desses nomes científicos. Mas fugir do “decoreba”, que tanto limita o aprendizado de botânica, era justamente o que se pretendia com um programa nascido da idéia de aplicar os resultados do Projeto Flora Fanerogâmica do Estado de São Paulo ao ensino médio e fundamental. O Projeto Flora, financiado pela Fapesp e iniciado em 1993, reúne cerca de 250 botânicos para realizar um inventário da vegetação remanescente no Estado e de suas espécies, e indicar áreas prioritárias para conservação ou manejo. O programa nas escolas dele decorrente, que durou de julho de 1998 até 2001 e contou ainda com verbas do CNPq e da FAEP/Unicamp, seguiu a hipótese logo confirmada de que o ensino tradicional de botânica é muito teórico, desestimulante para os alunos, com menor valor dentro das próprias disciplinas de ciências e de biologia.
“A parte de botânica praticamente inexiste. As crianças recebem informações genéricas como tipo de raiz, caule, folha dissociadas de sua realidade, quando poderiam aprender, por exemplo, sobre tipos de plantas que estão no trajeto até a escola, quem plantou, porque estão ali, por quais animais são visitadas”, sugere a professora Luiza Sumiko Kinoshita, do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp. Foi ela quem coordenou o Programa de Ensino de caráter interdisciplinar que envolveu 47 pessoas: 16 pesquisadores das áreas de botânica e de educação, sete bolsistas (iniciação científica, treinamento técnico e mestrado) e 24 professores de ciências, biologia, geografia, português, história, educação artística e educação física, em quatro escolas de Campinas, São Paulo, São Carlos e Santos.
Os principais resultados do programa em Campinas são detalhados no livro A Botânica no Ensino Básico: relatos de uma experiência transformadora, que deverá estar disponível até o final de setembro, tendo como público-alvo professores da rede e estudantes de licenciatura em ciências biológicas e educação. Segundo os editores, a proposta é que o conteúdo sirva de modelo e inspiração para outras iniciativas nas escolas. E, se a pretensão é estimular educadores, pode-se pinçar do livro uma pequena pérola infantil: Camomila é uma flor / Quando cultivada / cura a nossa dor. Ou outra: Alface d’água / Não se faz salada / e nem fica molhada. Singelos haicais, criados Camila Feliciano Lima, Karina Rocha e Simone de Carvalho, que ilustram esta página e refletem o encanto das crianças quando apresentadas às plantas.
A troca Não foi fácil elaborar o Programa de Ensino. Segundo Luiza Kinoshita, além da dificuldade em atrair pesquisadores para a atuação nas escolas em detrimento das atividades acadêmicas e de pesquisa , era necessário convencer os próprios professores da rede de que as crianças poderiam assimilar a botânica de maneira mais integrada e agradável. “Oferecemos várias palestras sobre educação, incluindo a interdisciplinaridade e botânica em geral. Os professores também participaram das excursões em que mostramos o que é a mata atlântica, a restinga, o cerrado, a floresta estacional. Os alunos vieram aos laboratórios da Unicamp e do IAC para acompanhar a rotina de um pesquisador”, conta Luiza Kinoshita.
Na opinião da professora do IB, o que aconteceu, afinal, foi uma rica troca de experiências, visto que os pesquisadores também puderam aprender sobre a falta de condições de trabalho e o duro regime a que são submetidos os professores do ensino médio e fundamental: pouca disponibilidade para se atualizar, preparar e ministrar as aulas, a correria de uma escola a outra para assegurar sua sobrevivência, e a própria falta de estrutura nas unidades. Os professores só puderam dedicar 24 horas semanais ao programa interdisciplinar porque receberam uma compensação por meio das bolsas de ensino público da Fapesp.
Descobertas As verbas das agências de fomento permitiram equipar as escolas que aderiram ao programa com lupas, computadores, softwares, retroprojetores e de livros didáticos e paradidáticos. Permitiu, ainda, a confecção de placas acrílicas para identificação das plantas do entorno da escola do Jardim Londres. “Para os alunos, tudo o que era ‘mato’ ganhou nome”, diz Luiza Kinoshita. Com as lupas, as crianças observaram o universo do interior das plantas as células da folha e caule.
Antes de uma incursão pela Fazenda Pau D’Alho, na estrada para Mogi Mirim, biólogos explicaram aos alunos o que veriam na mata, sugerindo que, além das plantas, ficassem atentos para pegadas ou excrementos, sinais da presença de animais como o cachorro do mato; ou mesmo para as folhas descoradas por insetos, provas de uma interação invisível à primeira vista. Houve espaço para a história, estudando-se a origem da fazenda em documentos como a carta de sesmaria.
No herbário do Instituto de Biologia da Unicamp, as crianças aprenderam porque, para espanto delas, guardam-se amostras de plantas que têm 200 ou 300 anos, e também os procedimentos para isso: o corte, a secagem e a etiquetagem. “O material preservado no herbário serve como objeto de estudo para pesquisadores do mundo todo, assim como podemos solicitar deles alguma espécie que não possuímos. É assim que formamos uma idéia da distribuição das plantas pelo planeta”, explicou Luiz Kinoshita.
O verde também foi bastante trabalhado dentro da escola. Os alunos produziram mudas por meio de técnicas diversas, registrando a evolução das plantas em cada metro quadrado dos canteiros. Pesquisaram as plantas medicinais, que inspiraram cartilhas, poesias, desenhos e um mapa apontando a origem de cada uma. Um tanque com plantas aquáticas ninféia, pinheirinho-d’água, aguapé, chapéu-de-couro, salvínia tornou-se a paixão das crianças. Mesmo aquelas de 7 e 8 anos foram convidadas pela professora de artes para Uma Aventura na Horta livreto em formato de jogo para montar, com desenhos e declarações sobre o canteiro de amendoins.
Opiniões A mesma professora de artes, Maria Stela Beraldo de Lima, reservou um momento para a sensibilização, vendando os olhos das crianças e distribuindo folhas e galhos de uma planta medicinal. A proposta era substituir a visão pelo olfato, tato e paladar, atividade que despertou sentimentos e lembranças. “Descobrir o que é, cheirando, rasgando, mordendo. Acredito que esta experiência abre o horizonte da observação do aluno”, diz Maria Stela em seu depoimento.
Valdemir da Silveira, professor de geografia, conta no livro que não via como trabalhar a interdisciplinaridade em meio a nomes científicos como mata ripícola, pteridófitas arborescentes e folhas coriáceas. Porém, em visita à UFScar e Embrapa, obteve uma visão do cerrado relacionado com fatores climáticos, geomorfológicos e pedagógicos. “Da visão espacial da geografia, voltei com uma visão do detalhe da botânica: tronco, flor, uma folha. Dá vontade de fugir das coisas corriqueiras e renovar”, afirma.
A professora de ciências, Edna Klein, escreve: “Foi interessante ver a professora de educação física analisando as glândulas nas folhas de limão. Ou a professora de português conversando com os alunos sobre os tipos de folhas. A botânica não mais pertence à biologia, mas a todos nós. As fronteiras disciplinares adquirem novo significado: em vez de barreiras que separam, transformam-se em regiões partilhadas”.
O 4º volume do
Projeto Flora
A professora Luiza Sumiko Kinoshita coordena o capítulo sobre a família Apocynaceae, da alamanda de de jardim, no quarto volume do projeto Flora Fanerogâmica do Estado de São Paulo, lançado na semana passada. Os produtos finais desse grande projeto constituem-se em publicações técnicas com descrições das espécies de fanerógamas, as plantas que produzem flores; e em livros sobre a vegetação do Estado e sobre plantas úteis da flora. Estima-se que ocorram em São Paulo cerca de 7.500 espécies, agrupadas em 1.500 gêneros e 180 famílias.
"Como explicamos aos professores da rede de ensino, o Projeto Flora é, na verdade, uma atualização de uma obra que levou 40 anos de trabalho, a Flora Brasiliensis, de Martius, cujo último volume é de 1906. Passado um século, muitas plantas foram descobertas e descritas, mas antes não havia uma massa crítica de botânicos brasileiros como agora. Flora Brasiliensis foi publicada totalmente em latim e por botânicos estrangeiros”, explica a professora do IB. Este quarto volume marca uma etapa do projeto apoiado pela Fapesp, já que foi planejada uma coleção contendo 15 volumes, publicando-se um por ano, até 2016.
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