Linha de pesquisa estuda defeitos genéticos
associados às síndromes mielodisplásicas
Hemocentro investiga
distúrbios sangüíneos
PAULO CÉSAR NASCIMENTO
Estudos desenvolvidos pelas pesquisadoras Irene Lorand-Metze e Sara Teresinha Olalla Saad, em pacientes atendidos pelo Hemocentro da Unicamp, estão ajudando a conhecer melhor o surgimento e a evolução de um grupo de doenças da medula óssea chamadas mielodisplasias. Com sintomas iniciais geralmente de anemia, as síndromes mielodisplásicas originam-se de um defeito na medula óssea e podem evoluir para uma leucemia mielóide aguda, de difícil tratamento. A incidência da doença em indivíduos acima de 60 anos, segundo a literatura médica, é de um caso para cada 5.000 habitantes, e se manifesta em pessoas na faixa etária de 70 anos, na Europa e nos Estados Unidos. No Brasil, contudo, surgem mais cedo, por volta dos 55 anos. A precocidade pode estar associada, entre outros fatores, à maior exposição a agentes tóxicos, já que a legislação de controle ambiental no País é frágil em comparação aos países europeus e aos EUA, e nem sempre os usuários têm conscientização dos riscos e da importância da prevenção.
As mielodisplasias constituem um grupo de distúrbios sangüíneos causados pelo funcionamento inadequado das células-tronco da medula óssea, responsáveis pela formação dos glóbulos vermelhos, brancos e plaquetas do sangue. As células apresentam anormalidades morfológicas, com alterações de tamanho, na forma e na organização. Pode haver ainda um acúmulo de células da medula muito imaturas, chamadas blastos, incapazes de oxigenar os tecidos, combater microorganismos ou conter hemorragias.
Os defeitos são heterogêneos, ou seja, não são iguais para todo mundo, e a intensidade das alterações nas células sanguíneas é variável, explica Sara. A doença pode se manifestar como uma anemia leve, ou pode acarretar grande diminuição de hemácias, leucócitos e plaquetas e progredir até se transformar em leucemia mielóide aguda. Nesse estágio, é difícil para os pacientes prevenirem ou combaterem infecções. Também ficam cansados com freqüência e mais predispostos a sangramentos.
Diagnóstico Como a manifestação clínica mais comum é a anemia, as mielodisplasias são de difícil diagnóstico. Por isso, os médicos adotam um protocolo para inicialmente investigar a ocorrência de doenças com sintomas semelhantes, como a hiperfunção da tireóide, a cirrose hepática ou mesmo a carência de nutrientes essenciais à produção de células vermelhas ou hemácias como o ferro e as vitaminas do complexo B, esclarece Irene.
“O diagnóstico para mielodisplasias só é fechado após seis meses de acompanhamento e com a constatação de que o estado anêmico do paciente não se alterou com os tratamentos tradicionais”, afirma Sara.
As manifestações das síndromes mielodisplásicas já eram identificadas no início do século 20, embora a Medicina não tivesse ainda dado a devida importância clínica ao fenômeno. Idosos apresentavam um quadro de redução de glóbulos vermelhos do sangue, resistente aos tratamentos convencionais com suplementos vitamínicos e outros medicamentos, e o problema era conhecido como anemia refratária.
Os hematologistas começaram a olhar com maior atenção para o fato a partir da década de 1980, e passaram a perceber que, embora mais prevalentes em idosos, os distúrbios podiam ocorrer em todas as faixas etárias. A manifestação cresce com a idade. Embora a doença possa surgir em crianças e ser associada a anormalidades cromossômicas, é mais freqüente a partir dos 50 anos de idade. A doença afeta ambos os sexos, mas, como outras leucemias, é mais comum em homens que mulheres.
Pioneirismo A Unicamp participou das pesquisas pioneiras que possibilitaram o reconhecimento das mielodisplasias como um grupo de doenças, e não apenas uma anemia crônica. De acordo com Sara, a instituição tem atuado em uma linha de pesquisa pouco explorada por outros grupos, que é o da investigação de defeitos genéticos associados à doença, o que tem permitido avançar no conhecimento dos mecanismos que ocorrem na medula óssea e deflagram alterações na composição sanguínea. Exemplo dos achados é a descoberta de alterações genéticas em células do sangue que apresentam um comportamento ainda não esclarecido pelas pesquisadoras: morrem em grande número no início da doença e, nos estágios mais avançados, embora defeituosas, proliferam-se de maneira descontrolada, ou seja, cancerosa, causando a leucemia mielóide aguda.
Nos casos mais graves, a doença pode exigir tratamento com drogas quimioterápicas. Porém o único recurso capaz de curar a mielodisplasia é o transplante de medula óssea, mas ainda assim é alta a chance de o paciente voltar a apresentar os sintomas.
Especialistas alertam
para o uso indiscriminado de produtos tóxicos
Entre as causas da síndrome mielodisplásica podem estar o uso de determinadas drogas que danificam o DNA e são usadas para tratar linfoma, mieloma e outros cânceres, como câncer no seio ou no ovário. Mas a exposição a fumaça de cigarro e a produtos tóxicos durante longos períodos de tempo também é capaz de aumentar a incidência de mielodisplasia.
“Observamos, no Brasil, o aparecimento precoce dessas doenças que são características de idosos. Embora sem dados epidemiológicos claros, acreditamos que o fenômeno possa ser atribuído em parte a uma exposição maior a agentes tóxicos, sobretudo aos derivados do benzeno, presentes em solventes, cujo uso não é devidamente controlado no País”, enfatiza Sara.
“Os cânceres hematológicos aparecem no Brasil em idades mais baixas quando comparadas aos EUA e Europa, sendo que a nossa população, sobretudo na região Sudeste, é muito parecida com a européia”, analisa ela.
As especialistas da Unicamp também advertem para o uso indiscriminado e descontrolado de inseticidas, pesticidas e herbicidas. Os agrotóxicos são potencialmente cancerígenos, mas a sua manipulação freqüentemente ocorre de forma displicente na lavoura, sem os cuidados e uso de equipamentos de proteção necessários. E quando frutas e verduras chegam à mesa do consumidor, nem sempre há a preocupação de lavar adequadamente os produtos antes do consumo.
“A nossa população precisa se conscientizar melhor a respeito da toxidade de determinados produtos químicos e aprender a lidar com eles de uma maneira mais segura, seguindo as recomendações dos rótulos. Há riscos até na aplicação de inseticidas no ambiente doméstico, porque se a pessoa é muito suscetível uma pequena quantidade já pode ser danosa”, adverte Irene. “Um erro comum é achar que se a substância é inodora não é tóxica”, aponta Sara.
Mutações Segundo a médica hematologista, as pessoas, mesmo sem ter tendência familiar, podem sofrer mutações genéticas sanguíneas e adquirir alguma forma de câncer por causa da intensidade das agressões sofridas pelo organismo. Ela cita o caso de três pacientes atendidos pelo Ambulatório de Anemias do Hemocentro, pai e dois filhos, que desenvolveram anemia gravíssima após manipularem, sem proteção, grande quantidade de solvente durante a pintura da casa em que moravam em Minas Gerais durante um final de semana.
“Em nossa casuística existem diferentes formas de contaminação. Quando levantamos o histórico do paciente sempre perguntamos se reside próximo a postos de gasolina ou de fábrica que utilizam matéria-prima tóxica. Porque mesmo se ele não manipula, pode sofrer a influência indireta de produtos potencialmente cancerígenos”, argumenta Sara. O fumo e a automedicação são hábitos capazes de provocar alterações hematológicas, acentua Irene. “Existem medicamentos aparentemente inócuos que baixam os glóbulos brancos e precisariam ser utilizados apenas com orientação médica”.
Sara explica que as células-tronco são extremamente suscetíveis a mudanças em sua composição genética porque na medula óssea é que se forma e se desenvolvem as células sanguíneas que depois vão percorrer as veias e artérias. “Estão em constante processo de produção e multiplicação e, diferentemente de células maduras, são mais sensíveis a agressões.”
Um exame simples para constatar alterações sanguíneas é o de hemograma, acessível na rede pública de saúde, e que deve ser realizado anualmente em pessoas cuja rotina envolva exposição mais constante a agentes tóxicos. É, conforme as médicas, o ponto de partida para que uma eventual anemia tenha a causa investigada.
Contudo, ponderam as pesquisadoras da Unicamp, não pode ser ignorado o fato de que prevalência de cânceres nas populações esteja aumentando por causa da maior sobrevida proporcionada às pessoas pelos avanços na Medicina. “O envelhecimento aumenta a chance de se adquirir mutações genéticas”, observa Sara. Segundo ela, as condições ambientais podem influenciar a idade de início da doença no Brasil e a tendência é que o número de casos aumente à medida que a população envelheça.