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A catadora de histórias
 

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Mulher que doou documentos de Pagu encontrados no lixo vira personagem de livro

A catadora de histórias

ÁLVARO KASSAB

A capa do livro: long de historiografia oficial (Foto: Antoninho Perri)Selma Morgana Sarti não deixou por menos. “Se juntar todos esses livros, não dá metade do papel que recolhi nas ruas”, calcula Selma, que sempre dominou a matemática. Os livros mencionados por ela estavam nas estantes da Livraria da Vila, em São Paulo, no começo da noite do último dia 15. Selma foi parar em um dos redutos da intelectualidade paulistana, mas para entender o que ela estava fazendo ali é preciso recapitular parte de sua trajetória. No início de 2004, Selma encontrou no lixo, numa rua do bairro do Butantã, documentos, retratos e fotos originais da jornalista, escritora e agitadora cultural Patricia Galvão (1910-1962), a Pagu, e de seu último companheiro, o jornalista e crítico Geraldo Ferraz. Um gesto ditado pela sensibilidade mudaria sua vida: na hora de fazer o descarte do material para reciclagem, Selma intuiu que as fotos e os documentos eram importantes. Ao saber de quem se tratava por meio de dois vizinhos, alunos de pós-graduação da Unicamp, decidiu doar o material ao Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH).

Lia Zatz: a trajetória inspiradora (Foto: Antoninho Perri)O registro da doação, formalizada em junho do ano passado, nas páginas do Jornal da Unicamp, mudaria a sua vida. A mulher que abraçara a profissão de catadora de papel depois de ficar desempregada ganhou a atenção da mídia – foi notícia nas grandes redes de televisão e ganhou as páginas dos jornais de todo o país. E agora, passado pouco mais de um ano, transformou-se em protagonista de um livro. Mais precisamente de uma biografia de...Pagu. Foi na condição de convidada especial da escritora Lia Zatz que Selma esteve na Livraria da Vila. Lia estava lançando Pagu (Callis Editora), obra que integra a coleção A Luta de cada um, destinada ao público jovem.

Jefferson ao ler o nome da mãe e nos braços dela: olhos brilhando (Foto: Antoninho Perri)Lia não só dedicou seu livro a Selma, “que encontrou um tesouro e soube apreciá-lo”, como fez da catadora a narradora da trajetória da musa do modernismo. Os recursos ficcionais transformaram Selma em Telma. E a protagonista, ao contrário da vida real, não achou apenas alguns documentos, mas praticamente todos os guardados de Pagu. Na trama, antes de doá-lo para a Universidade, Telma decide que “ia entregar, sim, o material, mas antes escreveria aquela história. Não para publicar, não tinha essa pretensão. Era para si mesma, quem sabe para seus amigos, e para seu filho, quando fosse um pouco mais velho. Ao menos num cantinho do mundo, a história dessa Pagu, que tanto a impressionara, ia continuar viva”.

A partir daí, numa linguagem marcada pelo lirismo, a trama se desenvolve. A obra percorre toda a vida de Pagu. Lia Zatz revela que se baseou na reportagem publicada no Jornal da Unicamp para construir sua personagem. “Quando surgiu a oportunidade de fazer o livro, logo veio a idéia de me inspirar na Selma. Ela é uma mulher fantástica, que teve a sensibilidade de perceber que, naquele material encontrado no lixo, havia algo de muito importante”. A autora, contudo, não quis conhecer a catadora antes de terminar a obra, “para não se deixar influenciar”.

Concluído o trabalho e definida a data de lançamento, Lia procurou a socióloga e professora Elaine Zanatta, supervisora de Pesquisa do Arquivo Edgar Leuenroth, cujo acervo é depositário de parte expressiva da história dos movimentos sociais e políticos da história brasileira do século XX. A ponte foi feita por Elaine, ainda surpresa com o novo desdobramento de uma história iniciada há mais de ano. A pesquisadora já havia sido fundamental para a vinda do material encontrado no lixo. “Na época, a repercussão foi muito grande. Agora, o assunto voltou à baila quando já estava praticamente esquecido. Os méritos são todos da Selma. É uma honra para a Unicamp ter participado de toda essa história e do resgate da memória de Pagu”.

Observadas por Elaine Zanatta, Lya Zatz  Selma Sarti se conhecem: a criadora e a sua inspiração (Foto: Antoninho Perri)O encontro marcado - O encontro entre a criadora e sua inspiradora – Lia e Selma, respectivamente – foi um dos momentos de emoção da noite de autógrafos. Um abraço afetuoso selou a amizade que até então permanecera no campo do desconhecido. Depois de Selma cumprir outros contatos protocolares, Elaine pegou um exemplar do livro e leu para ela a introdução da obra, numa sala contígua à do lançamento. Num ambiente acolhedor, à meia-luz, a catadora chorou, procurando em seguida minimizar o seu papel na história. “Estou muito feliz por estar nesse livro, mas mais feliz ainda por saber que contribuí para preservar a memória de Pagu. Ela, sim, é a grande vitoriosa”, desconversou.

Lia autografa o livro para Selma: obra é dedicada à catadora, que também narra a história (Foto: Antoninho Perri)Ao chegar por volta das 21 horas em casa, no Butantã, Selma entregou o livro a seu único filho, Jefferson, de 8 anos. O menino largou o caderno azul tipo brochura com uma foto de Cafu e o distintivo do São Paulo Futebol Clube na capa, deixando de lado, momentaneamente, a lição de casa. Ajeitou-se na poltrona, abriu o livro e logo de cara deu com o nome da mãe. Seus olhos brilharam. Ao ser indagado por Selma sobre o que ele havia lido de interessante, o garoto respondeu de chofre. “Seu nome, você é muito conhecida”.


Elaine Zanatta lê para Selma Sarti, que chorou com a homenagem feita pela escritora (Foto: Antoninho Perri)Jefferson deu uma disfarçada, pegou o lápis e retomou seus exercícios de “subtração com recursos”. A conta era complicada, na casa dos milhares. Com orgulho, disse que fazia aquilo de cabeça. “Aprendi com minha mãe”. Selma sempre foi boa em matemática, mas o seu destino estava na história.

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