Para estudiosa da violência no esporte, descumprimento
de dispositivos legais deixa público desprotegido
Quando o torcedor perde de goleada
MANUEL ALVES FILHO
Após uma série de debates e negociações envolvendo representantes de vários segmentos sociais, o governo federal sancionou em maio de 2003 a lei que criava o Estatuto de Defesa do Torcedor. No início do ano seguinte, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva baixou decreto instituindo a Comissão Nacional de Prevenção da Violência e Segurança nos Espetáculos Esportivos (Consegue). As duas iniciativas tinham, em última análise, os mesmos objetivos: proteger a integridade física e assegurar os direitos dos cidadãos que se dirigem a um estádio ou ginásio para prestigiar um evento esportivo. Intenção meritória, resultado insatisfatório. “Para quem não tinha nada em termos de legislação, as duas medidas representaram algum avanço. Na prática, porém, pouca coisa mudou até agora. A impressão que fica é a de que o próprio poder público não tem interesse em fazer valer as leis”, lamenta Heloísa Helena Baldy dos Reis, professora da Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp e estudiosa das raízes da violência relacionada ao esporte e ao lazer.
Na prática, pouca coisa mudou com Estatuto
Ao analisar os resultados gerados pelas duas iniciativas, a professora Heloísa confessa-se pessimista em relação ao futuro. De acordo com ela, que participou das discussões que antecederam a criação do Estatuto do Torcedor e da Consegue, os dispositivos legais estão sendo cumpridos apenas parcialmente. Para se ter uma idéia, 30% dos artigos do Estatuto que tratam diretamente da segurança dos espectadores não são aplicados. Em relação aos ingressos, metade dos artigos que normatizam o tema é desconsiderada. Até mesmo questões de fácil solução, como a colocação de um cartaz em local visível para informar aos torcedores sobre onde localizar o Ouvidor de uma determinada competição, não são observadas.
Em relação a este último caso, a docente da FEF conta que deparou com uma situação no mínimo insólita ao fazer uma visita ao estádio Brinco de Ouro da Princesa, do Guarani Futebol Clube, por ocasião de uma partida do time de Campinas. Ao perguntar sobre onde o Ouvidor daquela competição poderia ser encontrado, já que não vira qualquer aviso a respeito, a professora Heloísa descobriu que ele acompanhava o jogo do setor das cadeiras vitalícias. Ou seja, estava num local que só poderia ser acessado pelos sócios do clube. "Os demais torcedores presentes ao estádio, que constituíam a imensa maioria do público, não poderiam, se quisessem, recorrer à pessoa responsável pelo acolhimento de suas eventuais reclamações", afirma.
Outras determinações do Estatuto do Torcedor que têm sido solenemente ignoradas, com raras exceções, dizem respeito à implantação de sistemas de monitoramento por imagem em estádios com capacidade superior a 20 mil pessoas e à instalação do Juizado Especial Criminal (Jecrim) nas arenas esportivas, durante a realização das competições. A primeira medida, explica a especialista da Unicamp, serviria para identificar torcedores responsáveis por atos violentos e/ou criminosos. Estes seriam imediatamente encaminhados ao Jecrim, que os julgaria e aplicaria a pena prevista para cada irregularidade. Na Espanha, onde a professora Heloísa desenvolveu a sua pesquisa de pós-doutorado, juizados similares a Comissão Nacional espanhola sugere as penalidades e, na maior parte dos casos, elas são acatadas pelos órgãos responsáveis pela aplicação, sendo que tudo se concretiza antes do próximo jogo que envolve o time do infrator impõem penas alternativas ou restritivas. Dependendo da gravidade do ilícito, os infratores ficam proibidos de ir ao estádio de futebol por um determinado período.
Ou seja, o torcedor condenado por atos violentos fica obrigado a comparecer a uma delegacia de polícia no dia e horário em que seu time for jogar. Lá, essa ação, somada a algumas outras, reduziu drasticamente os níveis de violência nos estádios e em suas imediações, transformando a Espanha num modelo a ser seguido por outros países. “A idéia inicial, e que foi defendida por mim nas discussões que precederam a aprovação do Estatuto do Torcedor, era repetir essas experiências no Brasil. Infelizmente, porém, pouca coisa mudou. Eu só tenho conhecimento, por exemplo, da instalação do Jecrim nos estádios do Maracanã e do Morumbi”, diz a docente da FEF. Sem ter como identificar e punir os autores, prossegue a pesquisadora, dificilmente o Brasil conseguirá controlar a violência que ocorre de forma adjacente aos eventos esportivos.
A professora Heloísa também diz não ter conhecimento de avanços proporcionados pela atuação do Consegue. Logo após a realização de um seminário em Brasília com a sua participação, ressalta a docente da FEF, foi estabelecido um plano de ação. Definiu-se um cronograma de trabalho prevendo atividades em períodos que variavam de 15 a 90 dias. Um mês depois, entretanto, o calendário foi retirado do site do Ministério do Esporte. Além disso, os grupos temáticos criados para discutir as possíveis medidas antiviolência não foram viabilizados, pois o Ministério alegou que não dispunha de recursos para promover o encontro dos seus membros, que vinham de estados diferentes. “Recentemente, conversei com um dos integrantes do que seria o Consegue, que disse integrar o que ele chamou de ‘Comissão de Paz nos Estádios’. Fui informada de que teria havido, até agora, apenas duas reuniões”, relata.
Ação policial Um aspecto que tem chamado a atenção da professora Heloísa nos últimos tempos é o comportamento da Polícia Militar nos eventos esportivos. De acordo com ela, assim que foi anunciada a criação do Estatuto do Torcedor e do Consegue, houve uma mudança de comportamento por parte dos torcedores. As brigas no interior dos estádios foram drasticamente reduzidas. Em compensação, os níveis de violência e de criminalidade nas imediações das arenas esportivas cresceram significativamente. “O curioso é que, a despeito dessa nova realidade, a PM tem mantido um enorme contingente dentro dos estádios, praticamente ignorando o que acontece no seu entorno. Houve um caso interessante recentemente, no qual o comando do policiamento de São Paulo destacou por volta de 400 homens para fazer a segurança de uma partida que foi disputada com os portões fechados”, afirma.
Mas por que, afinal, a Polícia estaria mais interessada em vigiar um local relativamente seguro em detrimento de outro com sérios problemas de violência e criminalidade? A docente da Unicamp diz não ter uma resposta precisa para a pergunta, mas confessa que tende a concordar com a análise do professor Patrick Murphy, do Centre for Sport into Society da University Chelsea, que considerou que a manutenção da violência e da criminalidade interessa à Polícia, pois ambas servem de justificativa à sua própria existência. Além disso, não fica descartada a possibilidade da conjugação de outros interesses, conforme a professora Heloísa. Pouca gente sabe, mas quando ocorre um jogo de futebol, o organizador do evento paga para que a PM cumpra o seu papel constitucional de garantir a segurança da população.
Diante de um quadro tão grave e sem perspectivas imediatas de transformação, que conselho seria possível dar ao torcedor? Não ir aos estádios, por exemplo? A pesquisadora da Unicamp responde: “Não ir aos estádios poderia ser uma boa maneira de o cidadão expor a sua insatisfação com este estado de coisas. Mas isso não basta. A sociedade precisa usar os recursos de que dispõe, como o voto e a pressão sobre seus representantes nas esferas públicas, para fazer com que o Brasil deixe de ser o país onde as leis não são cumpridas. Confesso que, em relação ao controle da violência que ocorre de forma adjacente ao esporte, não estou muito otimista”, admite.
Falta de estrutura é problema recorrente
A violência e a criminalidade adjacentes aos eventos esportivos têm causas macro e micro-estruturais, que vão das questões socioculturais à própria organização do esporte, passando pela omissão das autoridades, segundo Heloísa Helena Baldy dos Reis, professora da Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp. Em sua tese de doutorado, defendida em 1998, ela apurou que entre os problemas que precisam ser superados está a falta de estrutura adequada à realização de eventos de multidão. Em 2002, em entrevista ao Jornal da Unicamp, a pesquisadora já defendia a necessidade de analisar as medidas positivas de combate à violência, como as executadas na Espanha, e adaptá-las à realidade brasileira.
A principal iniciativa dos espanhóis foi a constituição de comissões de trabalho, em nível nacional e nas províncias (estados), que analisaram o problema e propuseram medidas de curto e médio prazos. Essas comissões, de acordo com a professora Heloísa, reuniram várias pessoas ligadas direta ou indiretamente ao esporte, como atletas, dirigentes, políticos, torcedores, policiais, jornalistas, pesquisadores etc. Entre as ações de curto prazo sugeridas à época pela pesquisadora para o caso brasileiro estavam: proibição da venda de bebidas alcoólicas dentro ou nas proximidades dos estádios, combate ao consumo de drogas pelos torcedores, venda antecipada de ingressos com a identificação dos compradores, vigilância eficaz e antecipada do estádio e realização de preliminares e outros eventos para distrair o público.
Em médio prazo, Heloisa recomendou, além da criação de comissões permanentes para discutir a questão da violência e da elaboração de uma legislação específica para punir os infratores, as seguintes providências: uso de circuito interno de televisão, revisão contínua dos dispositivos de segurança, colocação de cadeiras numeradas em todos os setores do estádio, elaboração de normas a respeito dos materiais que devem ser utilizados na construção de novos estádios, promoção de cursos preparatórios e de reciclagem para os policiais militares, solicitação para que os clubes criem coordenadorias de segurança e concessão de prazo de um ano para que os estádios providenciem uma porta para cada mil torcedores potenciais. Passados três anos, quase nada disso foi feito.
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