Propõe-se aqui uma radiografia da situação atual da mulher na ciência através de um estudo de caso da Unicamp. São adiantados resultados parciais de uma pesquisa em andamento que trata da evolução das relações de gênero, analisando-se estatísticas sobre os alunos, com base em um trabalho de pesquisadores da Comvest, além de informações administrativas fornecidas pela Diretoria Geral de Recursos Humanos (DGRH) e entrevistas com docentes da Universidade.
Para os alunos, isso envolve o estudo da evolução da composição por gênero dos cursos, por um lado, e do desempenho acadêmico, por outro. Para os docentes, trata-se de ver a evolução na carreira, diferenciada por gênero. Percebe-se que neste último caso interesses mais solidamente instituídos resistem mais firmemente à alteração dos hábitos do modo de produção de ciência. Esta tem rituais e formas de organização que se enraizaram claramente nos esquemas de condução dos destinos das universidades e, fora delas, nas agências de fomento à pesquisa e em outras esferas do poder científico, como as academias e as sociedades científicas, em que tradicionalmente os homens dominaram.
Entre os alunos, cresce o número de mulheres em carreiras de Exatas e Tecnológicas. De 1970 a 2005, o número de alunos ingressantes na Unicamp cresceu oito vezes. O número de estudantes do sexo masculino em 2005 foi seis vezes maior que em 1970, enquanto o número de alunas multiplicou-se por mais de 14 vezes. Assim, se em 1970 apenas um quarto dos alunos que entravam na Universidade eram mulheres (24,7%), em 2005 elas eram 43,5%.
Quando se leva em conta a composição por área dos cursos, mais voltados para as Exatas e Tecnológicas, essa evolução indica um acréscimo de mulheres nesses cursos considerados de perfil masculino. A média de participação de mulheres nos cursos universitários é fortemente definida pela composição de carreiras e de vagas disponíveis em cada um deles. A Unicamp abre cerca de 55% das vagas para alunos ingressantes nas duas grandes áreas onde predominam os homens – Exatas e Engenharias.
Os homens se saem melhor no exame vestibular, mas as mulheres se formam com melhores colocações em todas as áreas. Em primeiro lugar se fez uma avaliação da colocação inicial do aluno, a partir da nota final do vestibular padronizada com relação aos cursos. A colocação das mulheres no exame vestibular ficou em média 3,1% mais baixa que a dos homens.
A avaliação da colocação final média, obtida a partir do coeficiente de rendimento (CR) final do aluno, com relação ao gênero para o conjunto da amostra, revelou diferença significativa. O posto final médio dos homens é de 0,480 e o das mulheres de 0,564. Os percentuais mostram que as mulheres passam de uma posição média relativa 3,1% inferior aos homens no vestibular, para 17,4% superior no final do curso.
Na área de Humanas superam uma posição inicial 9,4% inferior para atingir uma posição final 15,8% acima dos homens. Na área de Bio & Saúde, onde houve maior disparidade, as mulheres chegam a galgar 30,4% a mais em relação ao posto médio inicial. Tratou-se, então, de encontrar motivos que expliquem esse desempenho diferenciado por gênero.
Fatores que pesam – A distribuição dos alunos segundo a situação acadêmica na Unicamp mostra que a percentagem de meninas formadas é quase 11% maior que a de meninos (78,9% e 68,0%, respectivamente). Este fator pode estar por trás pelo menos de parte da diferença de rendimento ao longo do curso por gênero. Faltaria explicar o porquê desse comportamento diferenciado quanto à conclusão dos cursos.
Pode-se supor que parte da diferença encontrada por grande área entre os gêneros deve-se à composição diferenciada de cursos, por gênero, e também à diferença de percentual de jubilados: enquanto 20% das alunas são jubiladas, o percentual de alunos nessa condição chega a 30%.
A distribuição de acordo com a área e a situação do aluno mostra que a porcentagem de formados é maior entre as mulheres em todas as áreas, e não apenas na média geral. Houve diferença significativa nas áreas de Ciências Exatas, Engenharias e Ciências Humanas. Nas Exatas apenas 38% dos homens haviam se formado, contra 65,2% das mulheres – é a maior diferença revelada dessa variável, por gênero. Nas Engenharias essas percentagens são de 76,1% e 81,3%.
A situação econômica do aluno é outro fator que ajuda a entender a diferenciação por gênero no coeficiente de rendimento. Entre os alunos formados é maior a percentagem dos que não trabalham (77,5%) com relação aos não-formados (66,5%). A diferenciação no rendimento também parte de um quadro social em que ao homem ainda cabe maior carga de responsabilidade em relação ao sustento da família.
Este distanciamento só não é maior porque na Unicamp três quartos dos alunos não trabalhavam quando nela ingressaram. Isso fica evidente quando se verifica os dados de renda familiar dos alunos. O exemplo mais claro é o da Medicina, carreira em que homens e mulheres pertencem a famílias com maior concentração de renda e é mais disputada: cerca de 60% dessas famílias têm renda mensal acima de 20 salários mínimos.
Instrução dos pais – Além da renda, é importante o nível de instrução dos pais. Há bastante diferença entre os cursos em relação à percentagem de alunos cujo pai tem curso superior. Medicina e Engenharia de Alimentos são os cursos, dentre os avaliados, com os maiores índices de alunos com pai que cursou o ensino superior; a Enfermagem é o curso de menores índices nesse particular.
Assim mesmo, em Medicina, Engenharia de Alimentos e Artes Cênicas o percentual de estudantes com pai de nível superior é maior entre as alunas que entre os homens ingressantes. Isso é revelador da influência do pai na escolha de carreiras das hard sciences, principalmente para as mulheres.
Por outro lado, é mais comum entre os cursos selecionados o fato das alunas terem um percentual maior de mães com nível superior que seus colegas homens: isso ocorre na Medicina, na Engenharia de Alimentos, nas Artes Cênicas e na Enfermagem, e também nas Ciências Econômicas e na História.
Deduz-se daí não apenas que a presença de pais com nível superior é mais importante como fator de escolha das carreiras Exatas e Tecnológicas para as mulheres que para os homens, mas também que é maior a influência da mãe com nível superior sobre as mulheres do que sobre os homens, que se identificam mais com o pai.
Docentes por gênero – A diferença no número de docentes por gênero na Unicamp ainda é grande. Em 2006 a Universidade contava com 1.761 docentes ativos, sendo 1.163 homens e 598 mulheres, o que significa que as professoras correspondiam a um terço do total do corpo acadêmico (34%). Cerca de 96% do total têm pelo menos o doutorado.
A diferença cresce na medida em que se considera o nível alcançado pelo docente na carreira acadêmica – doutor (MS-3), livre-docente (MS-4, hoje coincidente com MS-5, ou professor adjunto) e professor titular (MS-6) – e principalmente a possibilidade de acesso a funções de direção dentro da Universidade. As mulheres titulares hoje são 19.
Chama a atenção o fato de que havendo uma vez e meia mais homens doutores (MS-3) que mulheres, haja três vezes mais homens livre-docentes e adjuntos (MS-5) que mulheres; e, ainda, cinco vezes mais homens titulares (MS-6) que mulheres. Isso leva ao questionamento da igualdade: mais mulheres no estudo da ciência = mais cientistas. Não se assegura um número suficiente de mulheres cientistas com titularidade e a autonomia requerida para coordenar e obter financiamento para pesquisas.
Por outro lado, o número de mulheres docentes em função de direção era um quinto do total em 1987 e passou a um terço em 2006. Esta progressão da participação das docentes nas funções comissionadas é uma notícia alvissareira, sem dúvida, mas deve ser vista com cuidado.
Se a presença de mulheres nas chefias de departamento das unidades acadêmicas quase atinge um terço do total (40 mulheres, 85 homens, total de 125), nos altos postos diretivos, incluindo diretoria de unidades (sem considerar diretores associados), pró-reitorias e reitoria, elas não chegam a um sétimo dos cargos (4 de um total de 29; ou seja, os homens ocupam 25 desses postos).
Quando somamos também os diretores associados, a relação passa a um quarto de mulheres nesses cargos (13 docentes do sexo feminino e 40 homens). Destaque-se que, em 2006, pela primeira vez uma professora assumiu o cargo de Pró-Reitora nos 40 anos de vida da Unicamp. E a Universidade de São Paulo, a maior instituição de ensino superior no país, que faz 73 anos em 2007, também pela primeira vez tem uma mulher como Reitora.
Sandra Negraes Brisolla é professora do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências (IG).
Elza da Costa Cruz Vasconcellosé professora do Departamento de Eletrônica Quântica do Instituto de Física
Gleb Wataghin (IFGW).
Rafael Pimentel Maia contribuiu como consultor estatístico.