Ao receber um paciente, o médico mede sua pressão arterial, temperatura, altura e peso, faz perguntas para delinear um quadro geral e, se necessário, indica exames clínicos até reunir todas as informações para o diagnóstico. Analogamente, o conhecimento do estado e do comportamento de sistemas físicos, químicos ou biológicos pode se dar através de medidas das variações energéticas que eles sofrem ao longo do tempo.
Grupo do IQ tornou-se
referência na América Latina
É medindo as variações energéticas que se chega, por exemplo, aos valores calóricos explicitados nas embalagens de alimentos; que se determina a qualidade do solo e a ação de herbicidas; que se determina a interação entre os compostos de produtos de limpeza e cosméticos; se monitora a ação dos fármacos ou de bactérias no organismo; e se estuda as modificações em uma superfície para dela se extrair contaminantes como metais pesados.
O dispositivo utilizado para determinar as variações energéticas em todos esses processos chama-se calorímetro. Quanto à analogia, ela vem do professor José de Alencar Simoni, que juntamente com os professores Claudio Airoldi, Pedro Luiz Onofrio Volpe e Watson Loh, todos do Instituto de Química, participa de um projeto temático financiado pela Fapesp que visa estender a calorimetria para o leque de aplicações mencionadas anteriormente.
Trata-se de um projeto que desde seu início em 2002, até a conclusão prevista para 2008, terá envolvido mais de 30 pesquisadores de iniciação, mestrado, doutorado e pós-doutorado, com recursos que superaram R$ 500 mil.
Como objetivo, a determinação de dados termodinâmicos de vários sistemas: ancoramento de moléculas orgânicas em superfície; intercalação em compostos lamelares; estudos de adsorção em superfícies de poli-silicatos naturais e sintéticos; ações de microorganismos nos solos; estudos de macromoléculas; energética de crescimento de microorganismos.
Segundo o professor Claudio Airoldi, os objetivos foram plenamente alcançados e, em alguns casos, os estudos avançaram muito além do esperado. “Mas, como se sabe, este é um trabalho que não termina nunca”.
“Agora pretendemos ampliar o uso da calorimetria para outras áreas do conhecimento, como agronomia, medicina, biologia e alimentos, pois a técnica de pesquisa aqui desenvolvida pode oferecer respostas rápidas e de alta sensibilidade, o que nem sempre se alcança por outros métodos comumente utilizados nessas áreas”, acrescenta José Simoni.
Ao antever essas possibilidades, Simoni volta a dar exemplos, explicando que a calorimetria permite determinar a energia de alimentos e estudar sua estabilidade nas condições de embalagem para saber do estado de conservação. Na biologia, a técnica pode ser empregada para acompanhar o crescimento de plantas e o desenvolvimento de sementes, interessando assim à agronomia.
Na medicina, prossegue o pesquisador, a calorimetria auxilia na formulação de fármacos e a determinar sua ação contra vírus e bactérias, quando os métodos usuais trazem muitas incertezas. “A sensibilidade do calorímetro é tão grande que permite acompanhar a termogênese de um ovo de aranha, isto é, a energia liberada durante o seu desenvolvimento”, ilustra.
Com um calorímetro apropriado é possível acompanhar o metabolismo de uma pessoa em diversas atividades, medindo-se diretamente a energia despendida é a calorimetria direta. Em laboratórios voltados para atividades esportivas ou de pesquisa, mede-se o volume do oxigênio consumido ou do gás carbônico liberado, com o uso de máscaras é a calorimetria indireta. “Podemos estudar tanto o metabolismo de homens e animais como de microorganismos”.
Os trabalhos As atividades exercidas pelo grupo de pesquisadores do IQ são bastante diversificadas. No estudo de solos, por exemplo, as amostras são colocadas no calorímetro juntamente com um nutriente que vai promover a resposta energética do solo a ser medida.
No caso de solos cultivados, a resposta energética permite avaliar se eles foram bem ou mal utilizados. “Solos extenuados consomem a matéria orgânica que lhe é adicionada, produzindo mais gás carbônico e, conseqüentemente, liberando mais energia”, observa Simoni.
Claudio Airoldi explica que isso acontece porque em um solo depauperado os microorganismos, que deveriam prepará-lo para atender ao metabolismo da planta, competem mais pelo alimento, comprometendo o desenvolvimento da cultura. Nessas condições, a resposta energética é diferente do que em solo bem tratado.
“O resultado é obtido em três ou quatro dias. Com as ferramentas convencionais utilizadas na agricultura, esse prazo seria de um a três anos”, compara Airoldi.
Os trabalhos também focam as moléculas com implicações ambientais, como dos herbicidas, que têm parte absorvida pela planta, parte retida no solo e parte arrastada pelas chuvas, contaminando córregos, rios, lagos e lençóis freáticos. É um estudo importante para a implantação de políticas de preservação ambiental.
De acordo com os pesquisadores, o mesmo agrotóxico que elimina pragas altera a biota do solo, responsável pela transformação das macromoléculas de celulose em moléculas menores e passíveis de serem absorvidas pelas plantas. Com isso, o solo tem diminuída sua fertilidade.
Um dos primeiros trabalhos do grupo com solos constatou que o sulfato de cobre, aspergido nas parreiras e que as colore de azul, provoca o mesmo efeito quando vai para o solo, empobrecendo-o ao matar parte dos microorganismos. Esses solos comprometidos, ao receberem nutrientes, liberam mais gás carbônico do que os solos não depauperados.
Tempo certo Retomando a analogia, José Simoni ressalta que o calorímetro mede a energia liberada num determinado tempo, pois assim como acontece com um paciente febril, a resposta energética é diferente de quando ele está sadio.
“Esta diferença possibilita, a partir da curva registrada pelo calorímetro, apenas a determinação de uma macro-equação química, como por exemplo: como o substrato adicionado está sendo absorvido pelo solo, quanto está se transformando em matéria incorporada pela planta e quanto está sendo liberado na forma de gás carbônico”, explica o professor.
Com isso, esclarece Simoni, se consegue elaborar uma equação química para descrever o sistema sem utilizar processos estritamente químicos, o que exigiria o manuseio das substâncias produzidas, como se faz convencionalmente. O manuseio significa interferir na amostra, sob risco de destruí-la. “O calorímetro permite ainda trabalhar simultaneamente com várias amostras e compará-las com as oriundas da floresta”.
Sobre fármacos O professor Pedro Luiz Onofrio Volpe, dentro outros trabalhos no grupo, estuda o processo de crescimento e morte de organismos como bactérias e leveduras em tempo real, o que possibilita avaliar a atividade biológica de compostos e fármacos.
“Os microorganismos consomem a glicose conjuntamente colocada no calorímetro e liberam energia. A adição de um fármaco que atua sobre o microorganismo reduz sua população e, conseqüentemente, a quantidade de calor liberada. É um método de avaliar a atividade biológica em um sistema in vivo e de forma muito realista”, afirma Volpe. Ele recorre ao equipamento também para monitoramento da fermentação alcoólica, aplicação que pode otimizar o processo de produção de álcool.
Outro integrante do grupo, o professor Watson Loh concentra-se em processos físicos, basicamente envolvendo soluções: “Utilizamos a calorimetria para entender processos físicos que acontecem em solução entre compostos termoativos e polímeros, que são empregados em detergentes, produtos de limpeza, cosméticos”, explica.
Watson Loh assegura que a calorimetria tem se mostrado uma ferramenta bastante útil para a compreensão de processos de associação das moléculas em solução. “O equipamento é extremamente sensível, oferecendo as determinações mesmo em soluções muito diluídas”.
Centro de referência
Um dos responsáveis pela compra do primeiro calorímetro do Instituto de Química, em 1973, o professor Claudio Airoldi lembra que um longo caminho foi percorrido. Hoje o IQ mantém um laboratório especializado em calorimetria que é um dos mais bem equipados do mundo. São doze instrumentos só em calorimetria convencional e com características bem diversificadas. O laboratório tornou-se referência na América Latina não apenas pela aparelhagem, mas pela qualidade dos trabalhos desenvolvidos.
Airoldi conta que, no inicio da década de 80, quando esteve na Inglaterra centro de referência de calorimetria no mundo quiseram saber onde tinha aprendido a técnica. A reação foi de ceticismo quando respondeu que aprendeu trabalhando. “Aprendemos sobre o funcionamento do equipamento lendo o catálogo e foi estudando que desenvolvemos nossos trabalhos”.
O professor afirma que a preocupação inicial era utilizar o calorímetro para determinar energia de reações químicas, a fim de chegar aos valores das energias de ligação e, com base nelas, propor mecanismos de reações. “Com o tempo, nosso trabalho foi assumindo outros enfoques e despertou o interesse de outros paises, com os quais mantemos cooperação”.
O professor José Simoni comenta um dos trabalhos mais recentes que orientou, levando à construção de um calorímetro capaz de promover a reação entre um sólido e um gás, e que permite medir simultaneamente, pela queda de pressão, a quantidade de gás reagente e a energia envolvida no processo. “É uma idéia que eu tinha concebido há muitos anos e que não realizei antes por falta de oportunidade”, diz com entusiasmo.
De acordo com Airoldi e Simoni, praticamente todas as pessoas que estão capacitadas a trabalhar com calorimetria no Brasil passaram pelo laboratório do Instituto de Química, ressalvando-se apenas aquelas que viajaram para doutorado ou pós-doutorado no exterior.