É exatamente por ser confluência de caminhos e entroncamento de rotas comerciais internas que o governo português decide impor uma intensa tributação sobre o comércio da então capitania de São Paulo. A instalação de registros de passagem (barreiras que funcionavam como pontos de fiscalização e arrecadação do trânsito de mercadorias) demonstra o esforço da Coroa em estabelecer uma malha tributária e um aparato fiscal que garantisse seus interesses na região, sobretudo com o advento das tropas de mulas e da expansão da economia paulista nas décadas posteriores à derrocada do ouro das Minas Gerais.
A implantação do sistema, porém, não se dá sem conflitos, não só por causa da profusão de impostos sobre mercadorias, trânsito de animais e serviços, mas também porque, tal qual como acontece hoje, a administração pública era incapaz de disciplinar a arrecadação e evitar a evasão de divisas decorrentes da prática generalizada de sonegação e corrupção.
A administração tributária em São Paulo no final da época colonial e nas primeiras décadas do império foi tema da tese de doutorado Economia Mercantil de Abastecimento e Rede Tributária: São Paulo, Séculos XVIII e XIX, defendida por Maria Isabel Basilisco Celia Danieli no Instituto de Economia (IE) da Unicamp. Orientada pela professora Wilma Peres Costa, a pesquisadora, que é graduada em História e trabalha na área de História Econômica, analisa as mudanças e variações das comunidades rurais estabelecidas ao longo dos caminhos paulistas, bem como a sua estrutura política, econômica e social pautada na formação de um comércio interno e na construção de uma rede tributária capaz de assegurar a arrecadação associada a essa economia mercantil de abastecimento.
“Povoados e posteriormente vilas têm vida social marcada pela produção agro-exportadora de açúcar e integram uma economia caracterizada pelo comércio de gado e por um sistema de tributação que não obstante a sua importância para a vida econômica de São Paulo, ainda continua a ser pouco estudado”, argumenta Maria Isabel, que destacou em seu trabalho as atividades entre os anos de 1765 e 1835 da região denominada pelo historiador Caio Prado Júnior “quadrilátero do açúcar”.
A área por ele caracterizada compreendia as localizações de Mogi-Guaçu, Jundiaí, Porto Feliz e Piracicaba. Todavia, a pesquisadora Maria Thereza Petrone, em seu estudo A lavoura canavieira em São Paulo: expansão e declínio (1765-1851), ampliou a área com a inclusão de Campinas e a substituição de Porto Feliz por Sorocaba, justificando que em Sorocaba o cultivo de cana-de-açúcar ainda teve relativa importância e, porque, dessa maneira, Itu, importantíssimo centro canavieiro e outras áreas produtoras de açúcar, ficariam decididamente enquadradas. A nova configuração regional constituiu, então, o objeto da pesquisa de Maria Isabel.
Ciclo do muar Sorocaba, conforme demonstra a tese de doutorado, ocupa posição privilegiada como pólo irradiador do comércio da capitania de São Paulo e também no sistema tributário implantado: era a vila mais próxima ao sul da capitania e convergência de caminhos que seguiam para Minas e Cuiabá, mercados consumidores de muares, além de São Paulo e regiões do Sul.
Em 1762, pouco mais de um século após a sua fundação, Sorocaba não passava de uma vila pequena e pobre que, aos poucos, graças ao comércio de mulas, adquire importância na economia paulista. O lugar era rota obrigatória para a passagem das tropas de muares que, partindo do Sul do País, alcançavam a capitania de São Paulo e seguiam para Minas Gerais e Rio de Janeiro. A mula de carga servia como suprimento para estes mercados.
A então tradicional feira de muares organizada na localidade atraía negociantes de diversas partes da capitania de São Paulo e mesmo de regiões mais afastadas, como Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul, que se dirigiam até lá para negociar suas mercadorias, comprar animais ou equipar suas tropas. O denominado “ciclo do muar” contribui para o progresso e a riqueza da modesta vila, mas também despertou a cobiça da Coroa portuguesa.
“Obviamente, por tratar-se de uma vila localizada em ponto de entroncamento de caminhos que interligavam três capitanias, Sorocaba recebeu uma intensa fiscalização quanto à arrecadação de tributos que deveriam ser cobrados pelo trânsito de animais e mercadorias em suas paragens”, observa Maria Isabel. As informações detalhadas das atividades do tesouro provincial durante o Império foram levantadas em paciente e minuciosa leitura da documentação denominada coleção do Tesouro da Província de São Paulo, no Arquivo do Estado de São Paulo.
O chamado “Novo Imposto sobre os animais em Sorocaba” e outros dois tributos da época (“Registro instalado no Rio Negro” e “Contribuição para Guarapuava”, no atual Estado do Paraná) tornaram-se uns dos mais vultosos da renda provincial de São Paulo e surgem na esteira de tentativas da coroa e depois dos governos provinciais para garantir, por meio da estrutura viária, o controle do comércio de animais com o Sul, e, através desse mecanismo, assegurar a arrecadação de impostos aos cofres públicos.
As iniciativas para se abrir uma estrada que ligasse diretamente São Paulo ao Sul esbarraram inicialmente em dificuldades operacionais e na resistência de fazendeiros e negociantes de gado, até que em 1733, abriu-se o caminho de São Paulo a Curitiba e, a partir de seu traçado original, implantou-se a Estrada Geral, entre Sorocaba e Viamão, possibilitando à Coroa portuguesa articular uma rede fiscal bastante lucrativa e sólida ligada não unicamente ao trânsito de animais, mas através do imposto alfandegário incidente em mercadoria importada ou exportada, taxando não só a entrada de produto estrangeiro, mas também de uma capitania (depois província) para outra.
Para a cobrança desse direito foi criado o Registro de Animais em Curitiba, transferido após alguns anos para o Rio Negro, na divisa dos atuais Estados de Santa Catarina e Paraná. Apesar dos lucros obtidos nesse Registro, a Fazenda Real sofria com a falta de fiscalização mais eficaz que controlasse os descaminhos de condutores burlando o posto de arrecadação. A distância com o centro administrativo da capitania reforçava a dificuldade da arrecadação, pois tudo ficava longe e com pouco critério de organização e punição. Na tentativa de resolver o problema, a Coroa criou um novo Registro de Animais em Sorocaba, em 1750, no sentido de coibir as irregularidades sobre o comércio de animais, descreve Maria Isabel.
Ponte estreita Sorocaba tinha um conjunto de elementos facilitadores da fiscalização. Estava perto da cidade de São Paulo, portanto mais próximo do centro administrativo da capitania, ao mesmo tempo em que era a vila mais próxima do sul da capitania, antes dos campos de Curitiba. Sua localização ainda proporcionava o controle de animais para as minas, uma vez que região compreendia a convergência de caminhos que seguiam para Minas e Cuiabá, mercados potenciais de muares, além de São Paulo e das partes do Sul. A taxação era variável: cavalos pagavam duzentos réis, mulas trezentos réis e cada cabeça de gado vacum, cem réis.
Além disso, havia uma ponte dentro da vila que funcionava como mais uma via de controle no trânsito de tropas, pois exigia uma passagem mais lenta e em menor número de animais. Animais não declarados nas guias eram confiscados pela Fazenda Real.
A instituição do “Novo Imposto” na Capitania de São Paulo foi estabelecida inicialmente por um prazo dez anos. Quando instalado, seu produto e arrecadação destinavam-se a restauração da alfândega de Lisboa destruída por um terremoto em 1755. Após o término do prazo estipulado, entretanto, o imposto continuou a ser cobrado e destinado ao pagamento de oficiais e a obras públicas, já que os lucros que eram obtidos com o tributo sobre os animais cobrados em Sorocaba, constituíam fator importante para as rendas de São Paulo.
Essa categoria representava cerca de 50% da receita provincial e rivalizava em renda produzida com os tributos ligados diretamente a entrada e saída de mercadorias na província, os chamados Direitos de Saída da Província, que eram os antigos dízimos e as Taxas de Barreiras. Os impostos sobre o consumo de mercadorias, como a carne e a aguardente, foram também destaques na arrecadação das rendas provinciais.
As rendas obtidas com os três principais impostos (registros, direitos de saída e trânsito de animais) permitiram à província de São Paulo não só manter seus orçamentos equilibrados como ainda garantir saldos que se transformaram em investimentos públicos, sobretudo para as estradas, já que a abertura, conservação e melhoria dos acessos paulistas criavam condições para o aumento da arrecadação, salienta a autora da tese.
Arrecadação ‘terceirizada’
O garimpo de informações nos manuscritos do Tesouro Provincial de São Paulo em 1834 também permitiu à Maria Isabel identificar outra prática singular adotada pelas autoridades fiscais da época: a arrematação da cobrança de impostos. O Estado outorgava a particulares (leia-se a representantes das elites) a tarefa de arrecadar os tributos, mediante a antecipação ao poder público do valor que seria arrecadado, ficando sob a responsabilidade do arrematante a obrigação de manter regularizado e em funcionamento tal imposto. Em uma época em que as necessidades financeiras eram crescentes, o Estado não só antecipava a sua receita, como se livrava das despesas com a manutenção de um quadro de funcionários para coletar e fiscalizar os tributos.
O aspecto pernicioso dessa “terceirização” era a concentração de capitais e dos recursos do Estado nas mãos de um pequeno grupo que arrematava os impostos mais lucrativos formado por donos de engenhos e fazendas mais abastadas da capitania, por negociantes atacadistas e por membros da burguesia portuguesa emigrada e impunha práticas monopolistas, o que tornava a atividade altamente lucrativa, já que tudo que excedesse a cifra estabelecida no contrato seria lucro. As disputas em torno das possibilidades de enriquecimento geradas pela arrecadação foram constantes motivos de tensões entre a esfera pública e a privada, enfatiza a historiadora.