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Suplemento do Jornal Da Unicamp 157

Segurança pública
A polícia fora da lei

Ouvidor prega uma nova corporação e informa que policiais de SP
mataram 7 mil civis em dez anos

PAULO CÉSAR NASCIMENTO

O combate à violência no Brasil passa obrigatoriamente pela mudança do atual modelo de polícia. A estrutura ruim das polícias é que proporciona espaço para a ineficiência do policial. Entre outras mudanças capazes de resolver o problema, é preciso haver a unificação das polícias Militar e Civil, a desmilitarização do policiamento preventivo e o fim da função judiciária exercida pela Polícia Civil.

Estas são as medidas defendidas pelo sociólogo e cientista político Benedito Domingos Mariano, ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo. À frente de um órgão que se tornou uma espécie de ombudsman da segurança pública no Estado, ele argumenta que a insistência na manutenção de estruturas e métodos operacionais que remontam ao período imperial explicam porque órgãos instituídos para garantir a segurança pública, como a Polícia Militar e a Polícia Civil, paradoxalmente mataram juntas, nos últimos dez anos, quase sete mil civis. Pelo menos a metade dessas mortes deveu-se ao uso inadequado da força policial, o que revela a face perversa de uma polícia que, além de ser incapaz de agir preventivamente no combate ao crime, contribui para aumentá-lo.

Convidado pelo Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE) da Unicamp para uma conferência que marcou, em outubro, a criação no núcleo da área de estudos sobre segurança pública, o ouvidor lembra que, no Brasil, a polícia nasceu no período imperial como um aparato militar a serviço das oligarquias, encarregado mais do controle social de excluídos do que da segurança pública.

Porém, de acordo com ele, nem os avanços no período republicano nem a transição democrática forjaram um novo modelo policial. Pelo contrário, o viés repressivo das forças policiais se acentuou nos períodos autoritários. É nessa cultura militar histórica que está a raiz das atuais mazelas das polícias Militar e Civil, aponta Mariano.

"Quando uma instituição militar vai para a guerra é para vencer o inimigo, não é para fazer policiamento preventivo e ostensivo. Como, historicamente, a polícia foi criada para fazer controle social, os inimigos do Estado e da própria polícia são os pobres. E são esses que morrem, porque a violência policial no Brasil recai sobre a parcela pobre da sociedade", afirma o sociólogo, amparado por relatórios da Ouvidoria.

Os dados revelam que, na década de 90, a polícia de São Paulo matou 6.672 civis (95% por tiros disparados por policiais militares), a maioria negros pobres, com idade entre 18 e 25 anos, e sem antecedentes criminais (veja quadro na página 2). No mesmo período 946 policiais morreram em confrontos.

Mariano argumenta que a inadequada estrutura das polícias, baseada em regimentos disciplinares incompatíveis com as funções de natureza civil que hoje exercem, interfere na eficiência do policiamento preventivo, incentiva o uso da violência e desestimula os policiais vocacionados e idealistas que constituem, na opinião dele, a maioria dos efetivos. Ele observa ainda que, mal pago, o policial é obrigado a realizar serviços extras para complementação salarial, geralmente como segurança particular nas horas de folga. É quando, ironicamente, morre o maior parte deles: sete em cada dez policiais militares mortos.

A população também padece nas mãos da Polícia Civil. Por causa dos inquéritos policiais, a corporação ganhou um poder inquisitorial que coloca em xeque, na opinião do ouvidor, o princípio constitucional da presunção da inocência. "A pessoa indiciada, mesmo que tenha sua inocência posteriormente comprovada, ficará com o nome registrado na polícia, sem contar que é nessa fase do inquérito que ocorrem muitos dos casos de tortura e corrupção denunciados", argumenta Benedito Mariano. "De cada dez denúncias que chegam à Ouvidoria sobre extorsão e corrupção, sete envolvem policiais civis", informa.

De acordo com ele, o inquérito policial é um instrumento extremamente burocratizado e não dá a necessária contribuição para o combate ao crime. Cerca de 90% dos boletins de ocorrência instaurados nas delegacias não se transformam em inquérito policial no Brasil. E dos 10% aproveitados, só 25% viram denúncia formal do Ministério Público. Por isso, conta Mariano, o Fórum Nacional de Ouvidores Policiais propôs emenda constitucional para acabar com o caráter inquisitorial da Polícia Civil, que passaria a se dedicar exclusivamente à investigação do crime.

A face autoritária da Polícia Civil também se manifesta no péssimo atendimento prestado à população nas delegacias. A qualidade dos serviços nos distritos virou a segunda principal denúncia relacionada a esses policiais no Estado. "Isso nos levou a propor – e houve algumas iniciativas nesse sentido – que o atendimento fosse incumbência de assistentes sociais e não de delegado, investigador ou carcereiro", afirma o ouvidor.

Política do óbvio

A ausência de órgãos de controle interno autônomos e rigorosos para fiscalizar as polícias é outro ingrediente histórico que colabora para a manutenção das arbitrariedades e da ineficiência policial no país, observa o cientista político. "Em nenhum lugar do mundo a polícia é eficaz sem um órgão interno forte de corregedoria", comenta. Segundo Mariano, o fortalecimento desses organismos conhecidos como "polícia das polícias" é essencial para que se coloque o dedo em algumas feridas ainda expostas nas corporações.

"Acho imoral e perverso que um agente policial do Estado seja empresário de segurança privada. Essa é uma situação vergonhosa, que não se apura com rigor. Porque um policial que tem uma empresa de segurança pensa no lucro de seu negócio e torce para que a situação da segurança pública fique cada vez pior", ilustra.

Isso ocorre, conforme o ouvidor, por causa de brechas existentes no regulamento disciplinar da Polícia Militar e na lei orgânica da Polícia Civil, que permitem ao policial ser cotista – e não proprietário - de empresa privada. "Existem casos esdrúxulos em que os donos das empresas de segurança são a avó, a mãe, a prima ou o filho do policial, e este aparece apenas como cotista. Mas todo mundo sabe que ele é o verdadeiro dono."

Mariano também considera fundamental, para a maior eficácia dos mecanismos de segurança pública, acabar com o que chama de "política do óbvio", presente há décadas nas decisões dos governos estaduais para o setor. Um exemplo: exigir eficiência na investigação policial realizada pela Polícia Civil com viaturas e agentes caracterizados.

"O Fórum das Ouvidorias propôs que de 50% a 70% das viaturas fossem descaracterizadas", informa. "A situação é tão óbvia que só posso atribuir esta insistência ao objetivo de se fazer propaganda de viaturas, o que não é possível se não estiverem identificadas."


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