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Jornal da Unicamp - Dezembro de 2000

Páginas 18 e 19

LIVRO

A história dos infames

ALVARO KASSAB

A figura de um cavaleiro de capa preta, recolhendo esmola numa caneca colocada na ponta de um bastão, marcou a infância de Italo Tronca. Não raro as incursões do menino pelas ruas de terra da Moóca dos anos 40 eram interrompidas pelos gritos de alerta da mãe ou de vizinhos: o espectro da lepra rondava os portões. Tronca desconfia, para ficar no campo da suposição, que foi a força imagética do personagem que o moveu, cinco décadas depois, a escrever o livro As Máscaras do Medo - Lepra e Aids (Editora da Unicamp), finalista do Prêmio Jabuti.

Da infância paulistana ao primeiro contato com as vítimas da doença, passaram-se quatro décadas. No final dos anos 80, Tronca, já na condição de professor do Departamento de História da Unicamp, produziu dois vídeos nos asilos-colônias de Pirapitingui (região de Sorocaba) e de Paricatuba (Amazonas). Irrompia, na empreitada, o embrião do livro. O desfile de personagens classificados de infames por Tronca – "sem voz, sem fama, na maioria anônimos"-, uma noção inspirada em Michel Foucault, não só abria uma das frentes de sua pesquisa, como também colocava a nu a força do preconceito milenar que jogou milhares de pessoas na vala do isolamento e do desterro, em pleno mundo civilizado, o mesmo que recebeu perplexo o advento da Aids, logo batizada de nova peste.

Tronca buscou uma forma peculiar de abordar a ligação entre o científico e o filosófico: recorreu à força da alegoria que, segundo ele, não é uma figura de linguagem, mas parte estruturante de uma visão de mundo. Baseado nesse princípio teórico, o autor buscou traçar uma história da doença que não se confunde com a história da Medicina. O professor abriu mão da narrativa acadêmica convencional – linear e dirigida a iniciados –, para mergulhar na ironia sutil, entremeada com referências filosóficas, antropológicas e literárias, e imagens recolhidas em compêndios médicos, livros de arte e até guias turísticos. O resultado final é um surpreendente mosaico historiográfico a ser lido de enfiada, recheado com o rigor da pesquisa e com as múltiplas leituras oferecidas pela arte. Não é à toa que o autor avisa na apresentação da obra: "Este livro pertence a um gênero bastardo, filho de uma união profana entre história e poesia". Sua cria, filha direta do tripé raça, sexualidade e geografia, foi profícua. O professor esgarça os sentidos ocultos no medo ancestral, jogando luz no campo pantanoso do preconceito.

ÉPICO- O primeiro dos textos usados por Tronca é o épico Hawai, do escritor norte-americano James Michener, mais conhecido por encabeçar listas de best-sellers na década de 50 do que propriamente por suas virtudes literárias. Ambientada no século passado na ilha-ossário de Molokai, isolada pelo mar e por montanhas, onde eram despejados e confinados leprosos chineses e havaianos, a obra é emblemática à medida que leva a alegoria às últimas. Michener carrega na tinta ao menor vacilo. Manipula as emoções do leitor por meio de recursos estilísticos, cujo clímax são o sublime e as imagens grotescas e mórbidas – na descrição dos doentes, por exemplo. As teorias racistas da época, sobretudo a sinofobia, o chamado "perigo amarelo" que tomou conta dos Estados Unidos no século passado, estão presentes em toda a narrativa, da mis-em-scéne à suposta superioridade da medicina ocidental, personificada na figura dos colonizadores, um pouco antes de o Havaí ser anexado, em 1900, pelos norte-americanos.

"Doenças chinesas não eram percebidas na América no sentido comum; surgiam representadas como mais letais e, acima de tudo, incuráveis. Eram qualificadas como ‘inomináveis’, ‘epidêmicas’ e ‘pestilentas’ ", observa Tronca em seu livro. Na verdade, segundo o autor, as imagens apocalípticas sobre os chineses contidas nos discursos oficiais, peças de convicções racistas, abriram caminho para a regulamentação da imigração futura. Nesse vale-tudo da exclusão, os médicos ocupavam papel de destaque no imaginário da paranóia coletiva. Um exemplo foi o alerta feito em 1876 pelo presidente da Associação Médica Americana, J. Marion Sims, no qual advertia que, espalhada pelos escravos chineses, a sífilis havia atingido escala epidêmica.

Não foi coincidência, portanto, o fato de Michener colocar lenha na fogueira ao ressuscitar, quase um século depois, a velha alegoria cristã que colocava, lado a lado, a lepra e a luxúria, tradição que remonta aos tempos bíblicos. Muito menos foi casual a discurseira de médicos e políticos, na qual os chineses apareciam, sem nenhuma comprovação científica, como depositários de "doenças hereditárias", entre eles a escrófula, um dos nomes dados à lepra. A "degenerescência" era uma ameaça à assepsia da nação que começava a ganhar ares de potência.

Tronca esmiuça essas relações e tudo que existe de subliminar por trás delas, recurso também utilizado pelo autor ao comentar o conto Koolau, de Jack London, que fez um libelo carregado na alegoria, denunciando os horrores a que eram submetidos os doentes do leprosário de Molokai, mesmo cenário usado na narrativa de Michener. Escritor socialista, London reforça o estigma que marca os leprosos ao empregar o pitoresco como efeito temático.

GROTÕES - Tronca insere no livro textos de dois autores brasileiros: Bernardo Élis e Valdomiro Silveira. Do primeiro são extraídos trechos do conto a Morfética, no qual o escritor narra, em primeira pessoa, um episódio ocorrido durante viagem de caminhão no interior de Goiás. "Élis introduz o pitoresco para intrigar, despertar a curiosidade. Como London, também utiliza os elementos estéticos da alegoria – o pitoresco e o sublime – para condenar o estigma que pesa sobre a lepra e o leproso", diagnostica Tronca, para, em seguida localizar a diferença. "Contrariamente a London, que transforma Koolau numa espécie de super-homem nietzchiano, Élis desumaniza o doente, conferindo-lhes traços vampirescos, como se o leproso necessitasse ferir, atacar os sãos, para vingar do mal que o acometera ou mesmo para curar-se. Ambas as versões pertencem a uma longa tradição oral, cujos primeiros registros surgiram na Idade Média". As diferenças, contudo, desaparecem no resultado final, com o significado alegórico que os escritores deixam transparecer, em pleno século 20, em suas obras. "Seja como super-homem habitando ilhas inexpugnáveis, seja como criatura diabolizada refugiada em ranchos de estradas desertas, o leproso e sua doença estão encapsulados em lugares seguros, distantes de nós, do mundo dos sãos, e, ao mesmo tempo, próximos, graças ao acaso de um ‘acidente’ de percurso".

As análises feitas por Tronca não são aleatórias. A arte é usada deliberadamente pelo autor, que vê nela um lenitivo e um eficaz mecanismo de controle para o medo da morte. "A arte proporciona este sentimento de incolumidade, de controle sobre o mal, pela sua capacidade de criar uma prótese indispensável à sustenção de nossas fantasias, ansiosas pelo domínio, impossível, sobre o fluxo do mundo sensível", observa. Esta certeza fez o autor buscar em Valdomiro Silveira, escritor regionalista brasileiro do início do século, a visão simbólica na qual a lepra fincava um pé na magia que reveste a doença com mistério e terror– de resto, segundo Tronca, pensamento anterior ao nascimento de Cristo. Em Camunhengue, palavra dieletal de Minas e Goiás para designar o leproso, Silveira usa a figura de um curandeiro como protagonista do enredo ambientado nos sertões, onde populações sobrevivendo à mingua eram alvo de campanhas governamentais duvidosas contra a lepra, que se estenderam por 40 anos (1920-1960) no Brasil.

Isso explica, em parte, a manutenção da moléstia no centro do terror plantado no imaginário popular. Tronca mergulhou em documentos para concluir que a doença era manipulada pelos governantes para desviar a atenção de problemas mais graves. Se nos Estados Unidos o inimigo vinha de fora, no Brasil da primeira metade do século 20 o holofote se dirigia para os marginalizados dos grotões, por onde circulavam, por ramais secundários, trens abarrotados de pessoas e famílias supostamente infectadas. O destino? Asilos-colônias, 35 ao todo, de onde a maioria dos doentes nunca mais saía. Na época, a lepra estava longe de ser o problema mais grave de saúde pública. A tuberculose, por exemplo, matava 20 mais nas cidades, sobretudo no Rio de Janeiro e em São Paulo. Nada mais cômodo para elite dirigente – formada também por médicos –, que a doença funcionasse como escape de problemas mais graves, entre eles as péssimas condições de vida e de trabalho nos grandes centros urbanos. "A lepra e suas vítimas prestavam-se sobretudo a uma função politicamente metafórica, manipulada para desviar a atenção das carências sociais e da responsabilidade das elites", escreve Tronca numa legenda encimada pela foto de um vagão de trem de moléstias contagiosas. Um trem que não tinha bilhete de volta. Hoje, apesar de a lepra ter sido erradicada em todos os países industrializados, o Brasil figura em segundo lugar no ranking mundial da enfermidade, só superado pela Índia em número de casos.

A NOVA ESTRELA MÁ - A Aids toma os dois últimos capítulos do livro. Tronca seguiu os passos da doença, trabalho iniciado em 1994 nos Estados Unidos, onde morou durante um ano e meio. A abundância do material disponível levou o autor a não só historiar o advento da doença, como também a ilustrar a parte final do livro com exemplos gritantes da ignorância dos meios científicos, da mídia e de dirigentes políticos no trato com a nova peste que se estabelecia. Boa parte desses exemplos foi pinçada no clássico do jornalismo investigativo produzido por Randy Shilts, repórter do San Francisco Chronicle. Foi ele o primeiro jornalista a desconfiar que a doença daria naquilo que deu. Foi ele, também, o primeiro a revelar os inúmeros tiros n’água disparados por epidemiologistas do Centro de Controle de Doenças (CCD), de Atlanta, a começar pela crucificação dos homossexuais e dos haitianos, alvos preferenciais a figurar no índex do preconceito, que mais tarde seria engrossado por mais dois Hs- hemofílicos e heroinômanos.

Tronca, mais uma vez, recorre à desconstrução dos discursos – sejam cientítificos ou literários - para chegar aos componentes alegóricos da doença. O professor desmonta teses e revela as similaridades simbólicas entre a lepra e a aids, entre elas o confinamento geográfico, o racismo, a satanização da sexualidade e do desejo, a intolerância da Igreja, o medo do desconhecido e a impotência da ciência. São múltiplos efeitos da idéia de doença que vazam para todas as dimensões do social – ou seja, a questão da enfermidade não se esgota nos limites estreitos da doença ou das políticas públicas de saúde, mas alcança as entranhas da sociedade.

O autor, porém, não teve a pretensão de chancelar uma verdade final. "Procuro deixar as questões em aberto. É uma história que não se encerrou e não vai se encerrar nunca. É uma aventura permanente, é uma aventura da desrazão, é uma aventura da quebra de parâmetros oficiais, que, em seu dramático percurso através da história, revela as irremediáveis insuficiências da nossa cultura". Uma aventura que, no caso de Tronca, pode ter começado numa rua de terra da Moóca.

Entrevista Com O Vampiro

A epidemia da Aids foi também o momento de descobertas de dimensões até então inconscientes ou acobertadas da sexualidade. A complexidade da cultura gay, por exemplo, trouxe à tona a ignorância da maioria dos epidemiologistas dos EUA sobre a diversidade e os traços exóticos do desejo, transfigurados em linguagens alegóricas, freqüentemente eivadas de preconceito e medo. Durante os anos iniciais da síndrome, personalidades como a do fotógrafo Robert Mapplethorpe, que representava a si mesmo como uma criatura da noite, "um demônio sexual" sem nenhum controle sobre o seu apetite voraz, acabaram convertidas, num movimento delirante da linguagem científica, em hipótese geral de investigação do Centro de Controle de Doenças, em sua angustiante busca de "culpados". Os freqüentadores das saunas da Castro Street e dos bares leather de Nova York, com suas práticas bizarras, ajustaram-se sob medida à prefiguração dos técnicos de Atlanta, que os elegeram espécimes típicos do comportamento homoerótico. (Italo Tronca)

Estética do Medo: do Sublime...

"Impressionante foco epidêmico de lepra no Oeste de Minas", diz a legenda do médico que descreve uma família de doentes em 1943, numeradas de 1 a 13. Imagens e textos compõem linguagens alegóricas que recorrem a um estilo sublime – paralisante dos sentidos – pelo sentimento de medo que veiculam, até mesmo no meio científico. De forma subliminar, essa estética do terror justifica e implementa políticas de saúde pública, vigentes até os anos 60 no Brasil, que seqüestravam contagiados e submetiam-nos, muitas vezes, a disciplinas que reativam a memória de Molokai, no Havaí do século XIX. O arco alegórico como que dissolve o tempo e os lugares da história, unindo-os numa concepção circular, marcada por um eterno retorno. (Italo Tronca)

...Ao Pitoresco

"Poucos acreditarão tratar-se de leprosas", congratula-se o doutor Souza-Araujo na legenda do diapositivo que exibiu na Inglaterra, na London School of Tropical Medicine and Hygiene, em 1938. As internas do sanatório Padre Bento, em São Paulo, paramentadas de Ziegfeld Girls, oferecem um espetáculo aos visitantes, em 1937. O estilo pitoresco - agradável aos sentidos - estabelece um contraste com a pobreza e os sinais de mutilação presentes na imagem sobre a lepra. Esse movimento pendular entre o pitoresco e o sublime tece as alegorias da doença numa linguagem delirante comum à arte e à ciência. (Italo Tronca)


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