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Boneca na mochila
Educadores analisam como lidar com as chacotas
que meninos e meninas fazem ao distinguir os sexos

JOÃO BATISTA CÉSAR

Menino pode brincar com boneca? A pergunta, que parece retirada dos compêndios de educação da metade do século passado, continua a perturbar professores e pais de alunos das escolas de primeiro grau neste início de terceiro milênio. As respostas são confusas, o preconceito parece generalizado e a ignorância sobre formas adequadas de abordar o assunto é grande entre os próprios educadores e a comunidade. Tais questões envolvendo a distinção entre os sexos, essenciais ao processo de socialização dos estudantes, surgem com freqüência nas salas de aula e invariavelmente descambam para chacotas e brincadeiras preconceituosas, eternizando variadas formas de discriminação. Mas o problema precisa ser encarado.

Professores da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, de diversas especialidades, reuniram-se para criar o Núcleo Temático “Escola, Diversidade e Educação”. A proposta do grupo é formar, junto aos alunos da FE, educadores mais críticos e comprometidos com uma postura ética e respeitosa frente às diferenças. Por meio de enfoques variados – linguagem, direitos humanos, sexualidade, questão racial – o núcleo aborda, com espírito crítico aguçado, temas que remetem a processos de diversidade, acessibilidade e inclusão social.

Na última semana de outubro, o núcleo temático promoveu o debate “Boneca na mochila”, tratando das relações de gênero na escola. Uma das participantes foi Érica de Souza, doutoranda do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, que possui mestrado em Antropologia Social no mesmo instituto com o trabalho “Gênero na sala de aula”. Em sua palestra, Érica ressaltou que é difícil falar em gênero sem pensar em feminismo.

Entendido como um movimento social iniciado na década de 60, no feminismo a mulher aparece como indivíduo, um sujeito moral inconformado com seu papel na sociedade e reivindicando uma posição política, ou seja, direitos sociais, educação, trabalho e respeito. “A partir desse momento, começa o questionamento sobre a divisão entre o privado e o público: a mulher confinada ao doméstico e o homem destinado ao espaço público, ao espaço político”, explica. Na época, adotar esta perspectiva implicava colocar tudo de cabeça para baixo.

Gênero – O feminismo denunciava o preconceito ocasionado pela diferença sexual – biológica, física, corpórea – entre homem e mulher. A opressão contra a mulher era tomada como um valor universal. Hoje, porém, esta diferença não é considerada apenas sexual, mas de gênero. A desigualdade não aconteceria por diferenças biológicas, mas por tudo o que é criado e inventado socialmente a respeito dessas diferenças ao nível das idéias.

Esta opressão universal contra a mulher, porém, passou a ser questionada a partir da década de 90, com o surgimento do movimento teórico conhecido como pós-modernismo, que se preocupou em abordar as várias oposições existentes na sociedade, inclusive aquela entre masculino e feminino: “O que é homem, o que é mulher? Não existe nada entre esses dois termos? São os únicos termos capazes de questionar a complexidade do ser humano?”.

Tais indagações abalaram a base do movimento feminista de que “mulher é mulher em qualquer lugar e que mulher é sempre oprimida”. Dentro da visão pós-modernista, há homens, crianças, negros e outros segmentos igualmente oprimidos. O ser humano e suas ações são marcados pela pluralidade e nenhum grupo atrai, só para si, condições e características do oprimido.

Os estudos começaram a enfatizar as relações sociais, os processos de construção da desigualdade, as perspectivas de ser homem e de ser mulher. Por meio dessas expectativas, incorporadas pelas pessoas, a desigualdade será sustentada. A diferença que se acreditava estar no corpo, na verdade se situa ao nível das idéias. E, se o gênero é relação, é impossível estudar a mulher sem ao mesmo tempo estudar o homem.

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Aprendendo antes de entrar na escola

Ramos da sociologia americana preconizam que, ao entrar na escola, as crianças já têm noção das expectativas da sociedade quanto a comportamentos apropriados enquanto meninos ou meninas. As conversas em sala de aula, bem como a linguagem não-falada, são apenas meios de estruturar as relações de desigualdade construídas anteriormente. A linguagem incorpora e sustenta valores, inclusive sobre o que é ser feminino ou masculino numa determinada cultura.

Se a criança constrói um sistema interno de regras e gêneros – por meio da escrita e fala e das imagens lingüísticas e não lingüísticas com as quais interage –, também não se deve sugerir que ela seja um recipiente passivo de mensagens sociais, uma tábula rasa determinada pela estrutura de linguagem. “As crianças estão sempre renegociando suas relações com os outros”, observa Érica de Souza. Quando chegam à escola, elas já começaram a aprender como falar diretamente com uma garota ou garoto, ou como falar sobre eles. Esse aprendizado vai prosseguir durante toda a vida escolar.

A pesquisadora insiste que o social é incorporado na linguagem, na relação da criança com as expectativas de gênero em torno dela, na relação com as outras crianças e com as diferenças de gênero que estas demonstram. “Mas esta divisão vai além. Existe uma hierarquia da diferença, onde a fala das meninas deve ser do tipo educado, discreto, submisso. Ao mesmo tempo, as mulheres são estigmatizadas como o sexo falante, em oposição ao sexo silencioso que seria o do homem”, observa.

Resistência – Existem padrões sociais para o masculino e o feminino, mas isso não significa ausência de um movimento individual de resistência, de oposição a um padrão.
No que se refere a mulheres, surge um arcabouço de opções para identificar quem está fora da ordem. A linguagem aparece, por exemplo, como um dos instrumentos de controle sobre o comportamento sexual delas, enquanto não se vê a mesma gama de termos pejorativos para a promiscuidade dos homens. Da mesma forma, as crianças chegam à escola com variedades de linguagem e modos de falar à disposição. Alguns modos serão encorajados e outros não, com o envolvimento de julgamentos morais nessas discussões.

Dentro deste enfoque, parece haver concordância quanto a um modo de pensar “falocêntrico” (dominado pelos homens) dentro da escola. Isto é limitador de qualquer tentativa de ação por parte das meninas. Assim, os meninos tentariam manter certas estratégias de controle da sala de aula e as alunas e professoras acabariam envolvidas nesse processo, o que exigiria um permanente processo de conscientização por parte da ala feminina.

Estereótipos – Também são questionados os estereótipos veiculados pelos livros didáticos, que apresentam as mulheres como incompetentes para atividades como a de cientista ou outras especialidades ligadas ao domínio masculino. Além disso, tende-se a apresentar a mulher como mais emocional e menos dotada de energia física que o homem. Sugere-se inclusive que escrever e ler são atos passivos, o que justificaria o sucesso das mulheres nas séries iniciais da vida escolar.

Continua



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