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Do
fundo do baú
Vasculhando o passado das famílias,
a demografia histórica consolida-se como ferramenta
importante para historiadores, geógrafos, antropólogos...
JOÃO
BASTISTA CÉSAR
Ramo
relativamente recente do conhecimento, a demografia histórica
nasceu durante a década de 50 na França,
chegou ao Brasil na década de 70 e conquistou uma
infinidade de adeptos. Por sua objetividade, tornou-se
importante ferramenta de trabalho para historiadores,
geógrafos, demógrafos, antropólogos,
estatísticos, dentro de uma perspectiva multidisciplinar
de conhecimento. Atualmente, a facilidade na tabulação
de dados propiciada pelo avanço da informática,
coloca a demografia histórica num momento de revisão
e novas perspectivas.
Alguns dos principais especialistas da área no
país estiveram reunidos no auditório do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
da Unicamp, na segunda quinzena de outubro. Eles participaram
do seminário Demografia Histórica:
reflexões e experiências recentes,
tendo como público os estudantes de pós-graduação,
com o objetivo principal de discutir e repensar a atividade.
O
Brasil é um laboratório imenso e de extraordinário
interesse para o estudo da demografia histórica,
porque apresenta uma população extremamente
diversificada, que sofreu um processo intenso de mestiçagem.
À população autóctone, juntaram-se
conquistadores e colonos portugueses, escravos africanos
que por cerca de três séculos alimentaram
a força de trabalho, e, na segunda metade do século
19 e primeira do século 20, recebeu uma numerosa
imigração européia e asiática
que enriqueceu a já complexa sociedade brasileira,
explica a coordenadora do evento, professora Maria Silvia
Bassanezi. O seminário foi promovido pelo Núcleo
de Estudos da População (Nepo) e pelo Programa
de Doutorado em Demografia do IFCH, também fazendo
parte da coordenação os professores Daniel
Hogan e Rosana Baeninger.
Origem
na França Quem introduziu a demografia
histórica no Brasil foi a professora Maria Luiza
Marcílio, do Departamento de História da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
da USP. Na tese Cidade de São Paulo: População
e Povoamento, ela analisou 100 anos de arquivos
paroquiais da Capital, inaugurando a nova metodologia
no país. Em sua apresentação no seminário
da Unicamp, a professora relembrou as origens deste campo
do conhecimento.
A
demografia histórica nasceu pelas mãos de
Louis Henry, engenheiro de um instituto francês
de recenseamento populacional. A França, após
a Segunda Guerra Mundial, apresentava queda nas taxas
de fecundidade e o governo, preocupado, encomendou ao
pesquisador um estudo para tentar identificar as causas.
Retrocedendo até os primeiros censos franceses
(a partir de 1821), Henry percebeu que as taxas já
eram historicamente baixas em comparação
ao restante da Europa. Diante desta realidade, ele
sentiu a necessidade de recuar no tempo o mais possível.
Mas, aí, não tinha mais dados para utilizar,
recorda Maria Luiza Marcílio.
Foi então que Louis Henry, em trabalho conjunto
com o estatístico Michel Fleury, voltou sua atenção
para documentações que possibilitassem recuperar,
retrospectivamente, o passado demográfico das populações:
tais como as genealogias, os registros paroquiais e as
listagens nominativas de habitantes das mais diversas
qualidades. O engenheiro, que nada conhecia daquele universo,
ficou maravilhado com as possibilidades que se descortinaram.
Percebeu que aquelas fontes documentais, embora não
produzidas para fins estatísticos e de recenseamento
populacional, poderiam ser trabalhadas por meio de uma
metodologia bastante rigorosa, permitindo melhor conhecimento
dos padrões demográficos de populações
do passado.
Famílias
burguesas A demografia histórica nasceu,
assim, com o estudo de algumas famílias burguesas
de Genebra, cuja cuidadosa genealogia cobria de maneira
completa o período do século 16 até
os dias de hoje. Com a publicação dessa
primeira pesquisa, Henry e Fleury tornaram público
seu famoso manual de demografia histórica, que
seria insistentemente aplicado aos registros paroquiais
da França nos anos posteriores. Portanto, o método
de reconstituição da família deu
origem ao estudo da demografia histórica de forma
científica.
Estas
análises, num primeiro momento, foram centradas
na época moderna, nas situações em
que não eram realizados censos ou outros tipos
de estatísticas populacionais confiáveis.
Porém, a aplicação do método
de reconstituição de família começou
a oferecer desdobramentos inesperados para seus próprios
criadores. Novas e complexas realidades iam sendo descobertas:
casamento, mortalidade, morbidade, natalidade, domicílios,
enfim, uma realidade social nunca estudada daquela forma.
Foi
formado um grupo de estudo em Cambridge (Inglaterra),
que se valeu de outro tipo de documentação
para aprimorar o método, visto que a Grã-Bretanha
oferecia situações peculiares. Britânicos,
escoceses e irlandeses apresentavam populações
com religiões diferentes e não existiam
registros paroquiais para calvinistas e batistas. Era
farta, entretanto, a documentação sobre
as minorias católicas e anglicanas. Para realizar
os estudos, recorreu-se às listas nominativas.
Abandono
infantil Os diversos temas correlatos passaram
a ser abordados pela demografia histórica à
medida que os estudos se aprofundavam. Os pesquisadores
adentraram pelo estudo da família, do concubinato,
da ilegitimidade, dos idosos, e chegaram a alguns dados
estarrecedores, como as elevadas taxas de crianças
abandonadas no século 19, em regiões da
França, Portugal e Espanha. A história parecia
ignorar, mas a recém-criada área de conhecimento
atestou: a Europa praticou o abandono infantil em massa
naquele período.
A
demografia histórica trouxe ainda a percepção
de uma vida cotidiana antes invisível; uma história
da família e das instituições, que
esboçava novos elementos inclusive para a própria
história da cultura. Eram métodos muito
precisos, nascidos das necessidades do empírico
e não por meio de ensaios ou teorias construídas
abstratamente. Tudo era fruto de pesquisas árduas
nos mais variados arquivos, em busca de fontes nominativas
que abrangessem de modos distintos as populações
do passado, desde as elites letradas até a grande
multidão anônima.
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Censo
surgiu com finalidades militares
As listas nominativas, que se tornaram tão conhecidas
como fonte documental, foram temas de um trabalho do professor
Carlos de Almeida Prado Bacellar, da Universidade Fundação
Educacional de Osasco e das Faculdades Integradas de São
Paulo. Sob o título de Listas Nominativas
de Habitantes: uma análise crítica e resultados
de pesquisas, o professor pesquisou levantamentos
populacionais no Estado de São Paulo elaborados
de maneira sistemática a partir da segunda metade
do século 18.
Tais
séries documentais tinham, num primeiro momento,
finalidades militares, a fim de se saber a disponibilidade
de homens para recrutamento; posteriormente, sofreram
alterações de forma a também descrever
a economia dessas populações. Uma
documentação preciosa, vasta e rica, que
constitui uma série completa de levantamentos populacionais
a cobrir todo um território por quase um século,
fato quase único nos países ocidentais,
conta Bacellar.
Principalmente
a partir de 1792, começam a acompanhar tais listas
alguns resumos denominados mapas de população.
Eram executados a partir de dados colhidos durante o levantamento
populacional e tabulados por faixa etária. Toda
vila deveria contar com esses resumos de população,
que seriam enviados em seguida para a autoridade portuguesa.
Em 1798, a Coroa ordenou que os censos fossem enriquecidos
com uma coleta mais completa de dados. Passaram a englobar
os escravos e incluíram a cor, estado civil e idade
do entrevistado, além da atividade econômica
do domicílio. Já não se levava em
conta apenas a motivação militar, mas também
a condição econômica da vila. Esses
mapas refinados seriam produzidos sistematicamente até
1836.
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