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Calhamaços de ameaças
Médico exibe volumes contendo praticamente todas
as pesquisas realizadas sobre agentes químicos

CARLOS LEME PEREIRA

Ronan Vieira, do Centro de Controle de Intoxicações da Unicamp, chega a interromper a entrevista para exibir alguns exemplares das 130 pesadas publicações que, religiosamente, lhe foram sendo remetidos dos serviços de saúde públicos norte-americanos, à medida que concluía os estágios de atualização. “Cada volume trata de um agente químico; na totalidade, abrangem quase todas as pesquisas existentes no mundo”, explica. “Numa ocorrência, você precisa de informações que normalmente não estão disponíveis em títulos comuns. É preciso uma literatura altamente especializada. Um evento catastrófico pode não ocorrer no prazo de um, dez, vinte anos, mas quando e se ocorrer, os dados têm que ser precisos e rapidamente acessáveis”.

Os calhamaços ricamente ilustrados que entopem as estantes de sua sala de trabalho levam Vieira a comentar: “Os EUA estão muito à nossa frente nesse campo e isso não é à toa. Lá, eles realmente investem nisso, mas nós não invejamos o motivo que os leva a fazê-lo; afinal eles se sentem ameaçados num nível que está muito longe de nossa realidade”. O Congresso de Toxicologia, ocorrido em 1999 nos EUA, foi um marco desse “nó no peito” dos cidadãos daquele país. “Eu estava lá. Foi muito antes da tragédia de 11 de setembro deste ano, mas eles já tinham motivos de sobra para priorizar a questão”, recorda-se o médico.

Ele não se esquece de observar, criticamente: “A estratégia deles é forçada pelo receio do terrorismo a que se acham sujeitos pelos países que, no jargão da direita norte-americana, são rotulados de ‘países sem lei’, entendendo-se que ‘país com leis’ é o deles; ou seja, referem-se às nações que praticam uma linha de oposição mais ferrenha aos EUA”.

“Mas, o que importa, para nós, é aproveitar a experiência deles, no sentido de construirmos uma via na qual possamos evitar ou, no mínimo, reduzir as conseqüências de qualquer eventualidade do tipo”, completa. Vieira ressalta que, ante os acontecimentos de setembro, essa preocupação já se propaga pelo Brasil: “Houve recentemente um congresso no Rio Grande do Sul e a Sociedade Brasileira de Toxicologia convocou uma mesa-redonda para debater o papel dos CCIs numa possível guerra”.

‘Zona quente’
Na sua concepção, qualquer grupo que se volte para a prevenção e combate às conseqüências de uma emergência química ou biológica de larga escala deve ter um caráter multidisciplinar. “Nessas situações há sempre um componente extra-hospitalar”, justifica. Ronan observa que, diante de atentado ou acidente com produtos letais, um grupo invariavelmente tem que enfrentar a emergência no local do evento, a chamada “zona quente”. “No geral, não são médicos, mas técnicos treinados para atuar ali e que, além de saber como livrar as vítimas do pior, são obrigados a conhecer as regras e os equipamentos certos para auto-proteção, como máscaras a vestes pressurizadas. Também os cuidados com o transporte dos resíduos são primordiais e obedecem a normas rígidas de segurança”.

Vieira acrescenta que a capacitação para identificar a substância nociva ainda no local de contágio – o que nem sempre é fácil, em se tratando de planos terroristas – é outro item vital. “Quanto mais intenso for o risco e mais difícil a neutralização da substância tóxica, mais caro é o custo desse aparato de controle. No entanto, temos que nos conscientizar de que, nesse estágio, a regra básica é ‘proteja a você antes de mais nada, para que possa ser útil aos outros’. Sendo assim, não há como se dar ao luxo de fazer economias irresponsáveis”.

Depois de cumprido todo esse corre-corre na “zona quente”, o atendimento a uma ocorrência de alto risco está longe de se encerrar. O coordenador do CCI passa a discorrer sobre a operação intra-hospitalar. “Aí temos uma gama de problemas sérios. E não falo só do preparo especial das equipes médicas, em termos de conseguirem fazer uma triagem adequada, que indique rapidamente a abordagem medicamentosa e o isolamento de fatores que levem risco de contágio a quem está atendendo ou mesmo a outros pacientes”, adverte. “Me refiro também à capacidade de absorção do volume de pacientes que, se for muito grande, quase nenhuma instalação de saúde daria conta isoladamente”.
Vieira ressalva que “um grande número de pessoas precisando de atendimento simultaneamente, provoca tumulto em qualquer lugar do mundo, mas no Brasil isso se torna particularmente delicado, tendo em vista que os serviços públicos já vivem naturalmente saturados”.

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Efeitos potencializados

m suas explanações, como a que ocorreu no último dia 13 de novembro no HC, Ronan Vieira tem abordado mais detalhadamente os aspectos da guerra ou terrorismo químicos. Mas isso se deve unicamente ao fato de ser a área pela qual ele optou por se aprofundar melhor. “Na verdade, os agentes químicos tão somente compõem um grupo de armas não convencionais que podem ter – e têm tido – seus efeitos potencializados em proporções assustadoras”, alerta. Os outros “micro-inimigos” se agrupam em agentes biológicos e toxinas.

Com relação aos agentes químicos, segundo o especialista, um dos fatores mais temíveis é sua utilização via tecnologia binária, que por si já é uma tecnologia bélica desenvolvida há tempos. A denominação se deve ao emprego dos produtos em dois estágios: no primeiro, os compostos são compartimentados no dispositivo de um foguete, por exemplo, de maneira a não produzir o efeito tóxico de imediato, uma vez que ainda não se misturaram. Mas isso é calculado para ocorrer no lançamento ou trajeto, e o que chega ao alvo já tem grande capacidade de devastação. “É uma bomba, propriamente falando”, resume Vieira.

Dentre os produtos mais conhecidos estão gases como o mostarda, cianídrico e o cloro. “Os gases provocam queimaduras na pele e nos pulmões e, mesmo quando não alcançam sua meta fatal, deixam seqüelas graves”, descreve o médico. Longe de serem qualquer novidade, foram largamente empregados na Primeira Guerra Mundial.

Há ainda os organofosforados. Inicialmente desenvolvidos para funções inseticidas, enquadram “vilões” pouco conhecidos do grande público, como tabun e soman. Mas também o sarin, aquele que, pelas mãos de uma seita extremista japonesa, causou uma catástrofe no metrô de Tóquio alguns anos atrás. “São intoxicantes. Agem no sistema nervoso, aumentando as secreções do corpo, como suor e saliva, até causar a morte por insuficiência respiratória”, explica o coordenador do CCI. “Estes foram desenvolvidos pelos alemães. Só que há a nova geração, norte-americana, surgida na década de 1950. Caso do VX, muito mais letal, pois sua toxidade é produzida em doses relativamente mínimas. Mata rápido, além de induzir ao coma e a convulsões”, relaciona o cientista.

Ainda na linha dos códigos misteriosos, algo como 2, 4, 5-triclotofenoxiacético com dioxina soa como o “último grito da moda” dos laboratórios da morte. Nada disso: é só o nome científico do velho “agente laranja”, o desfolhante que os norte-americanos juram até hoje que lançaram no Vietnã “apenas” para privar os inimigos da camuflagem natural que a selva lhes oferecia. “Só que, ‘coincidentemente’, os vietnamitas sempre estavam debaixo daquelas árvores”, ironiza Vieira.

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O segredo do negócio

Quanto ao grupo dos agentes biológicos, o “segredo do negócio” bélico-terrorista está em modificar geneticamente microrganismos, como bactérias e vírus, para torná-los mais resistentes nas operações de “transporte”, facilitar sua disseminação e aumentar sua resistência a drogas imunizadoras.

Toxinas são produtos químicos sintetizáveis por seres vivos, vegetais ou animais (mais propriamente fungos e bactérias). É o caso da ricina encontrada na semente da mamona (Ricinus communis). Quando em “boas mãos”, servem para salvar vidas, a exemplo da insulina fabricada modernamente, ou da toxina botulínica, que em situação controlada é usada para tratar paralisias, empregada na oftalmologia, além do uso em tratamentos estéticos. Mas, como para fins destrutivos, as bactérias, fungos ou vegetais podem ser modificadas geneticamente de modo a aumentar a produção de toxinas ou acentuar a sua toxidade, a ricina, por exemplo, seria potencialmente utilizável para provocar botulismo”, observa Vieira.

A simples menção dos efeitos desse trio inseridos numa guerra é de dar calafrios. O coordenador do CCI relativiza, porém: “Esses elementos são mais temidos em relação ao terrorismo, pois vários deles podem ser desenvolvidos sem grandes recursos tecnológicos, mais à base de conhecimento”. O que não deixa de ser também muito preocupante, concorda Ronan Vieira.

 


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