Boca dos Sonhos
LUIZ SUGIMOTO
O cinema da Boca do Lixo é comumente tratado com ironia nas raras menções da cinematografia brasileira, apesar de sua importância no mercado dos anos 1970. Daí, o cuidado do professor e cineasta Nuno Cesar Pereira de Abreu em se despir de preconceitos e lançar, como diz, "um olhar generoso" sobre aquela comunidade peculiar de diretores, produtores, atores e técnicos que agitou a zona do baixo meretrício em São Paulo. Sua pesquisa tem como matéria-prima entrevistas com quinze personagens da época (veja box com a ex-atriz Matilde Mastrangi) e resultou em Boca do Lixo: Cinema e Classes Populares, tese de doutorado defendida em novembro no Instituto de Artes. O texto, organizado em formato de documentário, deve virar livro.
"Boca do Lixo" é uma designação depreciativa forjada pela polícia e por isso evitada por quem viveu aquela indústria. O "cinema da Boca", para seus trabalhadores, ficava na Rua do Triunfo, esquina com Rua Vitória, logradouros de uma região deteriorada mas com nomes que remetem a sucesso e nobreza. O ponto de encontro, onde se planejava as produções e se distribuía empregos, era um botecão de pratos-feitos que ostentava a placa "Soberano". E a atriz Helena Ramos, musa que garantia a lotação das salas e uma das entrevistadas na pesquisa, refere-se ao lugar como "Boca dos Sonhos".
"O ambiente me atraía muito. Ao invés do estúdio tipo galpão de fábrica com seus patrões, era uma área por onde circulavam pessoas de todos os tipos - gente de circo, rádio, desempregados eventuais da televisão. Havia um prédio com escritórios da Columbia, Paramount, Warner ou de empresas nacionais por andar. No entorno estavam gráficas e lojas de insumos para a indústria cinematográfica", descreve Abreu, que atualmente dirige o Centro de Comunicação da Unicamp.
As elites que falassem mal, mas fazer cinema, mesmo na Boca, significava ascensão, a possibilidade de trabalhar em algo mais importante. "Dizia-se que, quando o fulano virava a esquina da Rua do Triunfo, logo empertigava o corpo fazendo pose", brinca o pesquisador. Com o tempo foram surgindo os "heróis" do pedaço: pelos códigos locais, eram os novos ricos, bem sucedidos artística e financeiramente.
Diretores como David Cardoso, Tony Vieira e Jean Garret, e estrelas como Matilde Mastrangi, Helena Ramos e Aldine Muller podiam se gabar: "Meu filme está no Marabá, tenho público cativo, saí no Notícias Populares...", respaldados por uma rede midiática popular. "Ia-se muito aos filmes por conta desse star system precário, porém eficiente, e tudo à margem dos esquemas de televisão", ressalta o pesquisador.
Similar nacional - Nuno CesarAbreu contextualiza a explosão do cinema da Boca. Afirma que a lei de obrigatoriedade de exibição de filmes nacionais (1968), criando uma espécie de reserva de mercado, está na raiz do desenvolvimento desta indústria dita marginal. Em todos os setores vingava a lógica do incentivo à produção de um similar nacional, reduzindo as importações. No cinema, o instrumento oficial para isso seria a Embrafilme, mas que financiava a elite do audiovisual.
A turma da Boca cresceu sobre as próprias pernas. "Ela atraiu um investidor incomum: o pequeno comerciante, dono de bar ou posto de gasolina, que apreciava esses filmes B e, ao mesmo tempo, tinha condições de se associar aos produtores porque os custos não eram altos. Houve casos de vendedores de queijo e rapadura que compraram cotas de filmes", ilustra o cineasta.
Por outro lado, a lei de obrigatoriedade permitiu uma aliança inusitada. "Os exibidores, tradicionalmente a serviço da distribuição internacional, começaram a se associar ou mesmo a co-produzir filmes, lucrando como exibidores e como produtores. Já que a lei os obrigava a passar fitas brasileiras - caso contrário, as salas eram realmente fechadas -, criou-se um círculo virtuoso", observa Abreu. Na década de ouro, de 1970 a 1980, produziu-se a média de 90 filmes nacionais por ano e perto de 40% vinham da Boca. "Isto incomodou o mercado, pois os marginais disputaram de fato o espaço de exibição".
A produção da Rua do Triunfo ficou muito identificada com a pornochanchada, clichê que a rigor deveria se restringir à comédia erótica, mas batizou tudo o que fugisse da áurea cultural exigida para o patrocínio da Embrafilme. Mas de lá também saíram faroestes, cangaços, kung-fus, melodramas e aventuras de segunda linha. "Havia público para isso: o pequeno funcionário, o mecânico, o mensageiro. Minha tese trata de cinema e classes populares porque aquele era um cinema popular feito por populares. Quem foi fazer filmes na Boca pertencia aos mesmos estratos dos espectadores e era tão aficionado quanto", diz o pesquisador.
A decadência - A agonia do cinema da Boca é notada no início dos anos 1980 e coincide com a agonia do regime militar. A Embrafilme perde força política, abrindo flancos para desobediência à lei de obrigatoriedade de exibição de produções brasileiras, por pressão das distribuidoras internacionais. Nota-se também o esgotamento da fórmula "erotismo, produção barata e público numeroso". "Como diz um dos meus entrevistados, o público ficou mais inteligente que os filmes", ressalta Abreu.
De fato, a abertura política também trouxe mais liberalização de costumes e as gerações seguintes não eram como aquela, que fazia sua cabeça no cinema, buscando se reconhecer como seres eróticos. "As pornochanchadas, vistas hoje, são de enorme ingenuidade, com sexo apenas insinuado: coisa de voyeur, de buraco de fechadura. Em seguida, passou-se a negociar filme a filme junto à censura: um seio pode, mas dois seios, não; dois nus na mesma cena, não. As cenas ficaram pesadas somente nos anos finais", recorda Abreu.
Sexo explícito - Segundo o cineasta, o cinema da Boca viu-se liquidado com a entrada dos filmes de sexo explícito. Apesar da polêmica em torno do pornográfico "Garganta profunda" ou do apelativo "Calígula", o grande vilão, ironicamente, foi um filme considerado de arte, mas com cenas explícitas: "Império dos Sentidos". Sob argumento de se evitar a pecha de atraso cultural, o filme de Nagisa Oshima acabou exibido por força de mandado de segurança, abrindo a porteira para um mandado atrás do outro.
"O sexo explícito atingiu a produção nacional e também a exibição, porque estigmatizou os cinemas. Desapareceram as salas nos centros urbanos e cines como o Art Palácio e o Marabá viraram templos ou estacionamentos", lamenta Nuno Cesar Abreu. Ele soma um último item ao pacote da agonia da Boca: "O ingresso custava 80 cents de dólar. Se dez pessoas pagavam 1 real, agora temos uma pessoa pagando 10 reais. Perdemos o público, as salas e a perspectiva de continuar produzindo filmes populares. As classes populares não vão mais ao cinema".