Saudação ao mestre
MARISA
LAJOLO
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Marisa Lajolo é professora titular do Instituto
de Estudos e Linguagem (IEL) da Unicamp. O presente
texto é uma reprodução, com
pequenas alterações, de saudação
feita a Antonio Candido por ocasião da
homenagem que lhe foi prestada no Memorial da
América Latina em 2 de outubro de 2003. |
Tenho
para mim que a melhor homenagem que se pode fazer
a um mestre é discutir-lhe a obra, e seguir-lhe
as lições. Principalmente quando entre
as lições inclui-se a de pensar pela
própria cabeça e seguir seu próprio
caminho e mais principalmente ainda quando mestres
e discípulos sabem que nem sempre os percursos
têm o mesmo ponto de chegada. Afinal, o mundo
é cheio de caminhos, um diferente do outro,
mas todos conduzindo homens e mulheres ao longo da
vida e da arte.
É para um mestre deste feitio
a homenagem que representa o recém-lançado
História e Literatura: homenagem a Antonio
Candido, um trabalho de muitas mãos. Iniciou-se
em um seminário na Cidade do México
em 2001, amorosamente orquestrado por Jorge Ruedas
de la Serna e por Ignácio Díaz Ruiz,
o querido Nacho, a quem devemos a generosa acolhida
que nos fez (ao professor Antonio Arnoni Prado e a
mim, brasileiros convidados para o seminário)
a Faculdade de Letras da Universidade Nacional Autónoma
de México.
Todos nós isto
é, os autores do livro tínhamos
sido desafiados por Jorge a levar para o seminário
trabalhos que articulassem diferentes aspectos do
pensamento de Antonio Candido a nossos objetos de
pesquisa. O resultado foram dias de animados e instigantes
debates. À agenda apertada não faltaram
lances divertidos como o grupo que de tão grande
quase não cabia na foto, ou a dupla de brasileiros
perdida pelos longos corredores da UNAM em busca de
uma sala cujo número tinham esquecido.
O processo de transformação
das apresentações do Congresso em livro
contou com o apoio do então diretor do Instituto
de Estudos da Linguagem da Unicamp, professor Luiz
Carlos Dantas, que apresentou a idéia à
Editora da Unicamp. Finalmente, o professor Paulo
Franchetti, agora à frente da Editora, arrematou
o projeto, trazendo para ele a chancela da Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo e da Fundação
Memorial da América Latina.
Como sabe quem leu a obra do professor
Candido, até agora mapeei o que Antonio Candido
chama de fatores externos. Passo agora aos internos.
Entre as várias lições que Candido
nos ensinou, esse livro materializa uma das maiores:
a necessidade constante de diálogo de uma obra
com outras. Tendo ocorrido simultaneamente ao lançamento
de uma antologia mexicana de seus ensaios Estruendo
y Liberación o seminário que
produziu os textos que ora se editam representou nosso
diálogo com sua obra polifonia de textos
, idéia que fundamenta e sustenta a noção
de sistema literário, tão seminal em
seu pensamento. Fator externo que passa a interno.
História e Literatura: homenagem
a Antonio Candido consolida, na materialidade de suas
quase quinhentas páginas e na dualidade das
línguas de seus ensaios espanhol e português
a homenagem latino-americana a um mestre que
é Mestre porque é lido. O livro
rico, colorido e variado como um mural mexicano
é um caleidoscópio de temas e assuntos:
categorias tradicionais da historiografia literária,
estudos de diferentes escritores da tradição
mexicana, um estudo apaixonado do teatro anarquista,
a história do encontro e interpretação
de um documento precioso da tradição
literária brasileira, vêm lado a lado,
cartografando diferentes formas da presença
de Antonio Candido no panorama dos estudos literários
latino-americanos.
Pois sua obra debruçou-se sobre tantos e tão
diferentes aspectos da cultura desta nuestra América
que tem muito a dizer a pesquisadores e professores
de diferentes formações, pontos de vista
e interesses. Creio que a obra de Antonio Candido
sai deste livro lida e debatida com entusiasmo, de
forma polifônica, num vai-e-vem de pressupostos,
conclusões provisórias, hipóteses
de trabalho e de projetos.
Em uma palavra, fizemos a lição de casa,
que agora entregamos ao respeitável público
e ao respeitabilíssimo mestre, com aquele fiapo
de medo que sempre acompanha a entrega de qualquer
trabalho...
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O professor Antonio Candido: mestre é homenageado
em trabalho de muitas mãos |
Por isso, contamos que o professor
Antonio Candido receba os ensaios deste livro como
tantas vezes recebeu os projetos, rascunhos, versões
provisórias e definitivas de nossas dissertações
e teses. Receba-os como nosso mestre. Nosso mestre,
sim, mas não porque sejamos ou queiramos ser
seus clones: mestre não se clona, ele é
quem nos fecunda. Tampouco ser discípulo é
padecer da desastrosa síndrome de Peter Pan,
que impede de crescer.
Crescemos, viramos gente grande,
damos aulas, escrevemos livros, orientamos alunos.
Podemos até divergir e meus botões acham
que Candido gosta quando alguém diverge, aquela
história de se pensar pela própria cabeça.
Mas Candido continua nosso mestre e, nesta pauta da
relação professor/aluno, quero frisar
a feliz coincidência de esta homenagem ocorrer
no mês de outubro, vésperas do Dia do
Professor, profissão para a qual também
nos ensinou muito.
Ensinou-nos a lição
da humildade do mestre que jamais fez de seu rigoroso
aparato crítico e de sua imensa erudição
instrumento de tormento alheio e de humilhação
do outro. Seus textos e suas aulas são elegantes,
simples e claros. Claros como diria a Emília
de Monteiro Lobato como água do pote.
E esta clareza e simplicidade com que Antonio Candido
diz e escreve o que escreve e o que diz foi lição
muito importante para quem chegou a suas aulas na
USP vindo de cidadezinhas quaisquer.
E continua sendo para quem ensina
hoje em cursos de Letras tanto os cursos cinco
estrelas quanto os que se desenrolam nos arrabaldes
mais longínquos da cidade das letras.
Creio que é esse respeito
pelo outro que lhe deu os olhos generosos com que
leu todos os nossos trabalhos, sublinhando sempre
o que neles havia de melhor e sugerindo com mão
leve como corrigir e melhorar o que precisava ser
melhorado e corrigido.
É esta crença que
dá a certeza de que os generosos e sábios
olhos do mestre ensinam hoje a seus ouvidos a paciência
necessária para tolerar mais estas arengas
de seus alunos. Pois paciência, sabedoria e
tolerância marcas maiores de quem é
Mestre nunca lhe faltaram. E por isso lhe somos
profundamente gratos.