Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 239 - de 1º a 7 de dezembro de 2003
Leia nessa edição
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Mouse para deficientes
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Do fado de Mizia
à desinvenção de Camões

EDGAR DE DECCA

Casario do Bairro Alto e faixa da Câmara Municipal de Lisboa mostra roupas dependuradas nas janelas: símbolo do patrimônio histórico da capital portuguesa

Há ventos novos no fado português. Trata-se da cantora Mizia, cujos CDs não sei se já podem ser encontrados no Brasil. Canta de modo despojado e aproxima-se do fado tradicional, sem ser antiquada. Mizia canta com sensibilidade e muita graça. Não recorta os versos com melancolia exagerada. Apenas interpreta-os com uma dor contida, quase imperceptível. Não há exagero na sua voz e o som acústico do violão ou do piano que a acompanha é surpreendentemente próximo do blues americano de alma negra.

De certa forma faz muito sentido. Ambas as vertentes musicais originaram-se da cultura negra. O fado, segundo os seus próprios historiadores, nasceu do lundu afro-brasileiro e se transportou para Portugal com a volta das cortes de D. João VI para casa. Assim também reconhecemos a trajetória do blues, que nasceu nos campos de algodão dos escravos do sul dos Estados Unidos e aos poucos se urbanizou. Duas tradições com o mesmo fundo comum, isto é, a cultura negra transplantada da África para a América. Na própria língua portuguesa, lundu é sinônimo de amuo, quer dizer, “mau humor, enfado, traduzido no aspecto, nos gestos ou no silêncio; arrufo, calundu”.

A melancolia aproxima o canto do blues com o do fado e estas novas cantoras portuguesas estão fazendo uma releitura, abrindo novos significados. Esta releitura não deixa de ter um significado político e cultural muito interessante, porque o fado, como símbolo nacional, até muito recentemente esteve associado ao Estado Novo salazarista. (Re)traduzi-lo em uma outra linguagem não deixa de ser um modo de reinventar o território de suas origens no leito de uma longínqua cultura africana que deitou raízes no Brasil. Além disso, em seu modo de cantar, Mizia faz do fado um parceiro do blues negro americano em seus traços de tristeza e melancolia. A sua interpretação do clássico de Amália Rodrigues, Lágrima, é simplesmente inesquecível, principalmente nos versos: “Se eu soubesse, se eu soubessse que morrendo, tu me havias, tu me havias de chorar, por uma lágrima tua, que alegria, me deixaria matar”. Mizia, em seu exílio voluntário, assim como outras figuras da cultura portuguesa, como Eduardo Lourenço, lança a sua voz desde uma França distante.

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Por sinal, Eduardo Lourenço tem sido uma boa companhia aqui em Portugal. Ajuda-me a decifrar os signos e os símbolos polissêmicos desta cultura. No domingo passado fui visitar o Mosteiro dos Jerônimos, obra magnífica da arquitetura manuelina, muito associada aos descobrimentos portugueses. Próximo ao mosteiro estão o famoso monumento dos descobrimentos e a Torre de Belém. Neste mosteiro manuelino há uma mistura da arquitetura gótica com a renascentista, como que a reafirmar a fusão da dimensão laica e humanista com o sagrado, do Estado com a Igreja. Foi um cenário importantíssimo da época em que Portugal se projetou para o mundo e, recentemente, foi simbolicamente escolhido para a assinatura do acordo de adesão de Portugal à Comunidade Européia.

No mosteiro estão os túmulos de dois grandes personagens da literatura portuguesa, Fernando Pessoa e Alexandre Herculano. Não vou falar aqui do segundo, mas foi ele quem construiu o edifício da moderna historiografia portuguesa de cunho liberal e anticlerical, reescrevendo de modo polêmico Uma História da Inquisição em Portugal, obra que lhe custou sérios embates com a Igreja católica nos meados do século 19. Mas, antes, gostaria de me referir a este poeta de heterônimos, Fernando Pessoa. Em seu túmulo, estão gravados os versos mais emblemáticos que li sobre o modo como a cultura portuguesa deveria lidar com a sua identidade. Dizem assim: “Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. Assim, em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive” (ass. Ricardo Reis).

Destes versos se projetam as angústias de uma cultura que sempre se vê maior do que é, mas ao mesmo tempo acredita que o outro lhe veja menor do que ela, realmente, existe. Por um lado o excesso, a expansão de si, as viagens, o mito dos descobrimentos; por outro, o medo de um olhar exterior que o veja diminuído e decaído. Uma estranha dialética da grandeza e da miséria. Nunca viver na medida certa, nunca estar por inteiro, mesmo que alma seja pequena. Mas pensando bem, este traço tão português não seria característico de todas as culturas e de todos os homens e mulheres em sua fase adulta, quando começam a olhar o seu passado? Não existiria sempre um desajuste de medidas entre o olhar interior e o olhar exterior. Não seria esta desproporção entre o de dentro e o de fora o que explicaria o mal-estar de todas as culturas que procuram a sua própria identidade? Não é por acaso que os versos de Pessoa foram gravados em um dos monumentos representativos do passado glorioso de Portugal.

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Mosteiro dos Jerônimos, local escolhido simbolicamente para a assinatura do acordo de adesão de Portugal à Comunidade Européia

Preparem-se. O verão português de 2004 vai ser quentíssimo. Excitação e emoção à fartura. Rock’n Rio-Lisboa e Eurocopa 2004. Futebol e rock’n roll. Estas novas “logomarcas” são os sinais de um enorme empenho empresarial, político e cultural de integração de Portugal na Europa. Aproveitando-se inclusive da sua condição de zona de fronteira entre a Europa e a América, a “logomarca” brasileira do rock também vai estar aqui presente. Deixando a saudade para trás, os portugueses reelaboram os símbolos mais fortes do antigo salazarismo. Eram, então, conhecidos como os “Três Fs”, Fátima, Fado e Futebol.

Do fado eu já fiz o comentário. As suas novas interpretações o aproximam do mundo das culturas populares transatlânticas, que se criaram na grande diáspora negra do período da escravidão. O mesmo acontece com o futebol. Ao invés de um jargão excessivamente nacionalista, a Eurocopa traz o símbolo da integração das diferentes culturas do continente. Apenas nos últimos três meses foram inaugurados três estádios de futebol magníficos. Dois em Lisboa; o terceiro foi inaugurado na semana passada na cidade do Porto. Dizem os comentaristas de futebol de plantão, com todas as rivalidades futebolísticas postas de lado, que o estádio do Futebol Clube do Porto supera o do Benfica e o do Sporting de Lisboa. Juro que eu irei conhecê-lo ainda antes de voltar para o Brasil. As expectativas são imensas e até a Igreja católica já se manifestou, preocupada com o provável esvaziamento das missas durante estes eventos. Só está faltando a releitura de virgem de Fátima. Quem sabe ela não reapareça para os jovens, vestida com os trajes de Like a Virgin, de Madonna...

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Agora, uma nota que me deixou decepcionado e outra muito gratificante. Lembrei-me, ultimamente, das aulas de português no Colégio Culto à Ciência de Campinas. Dos tempos em que aprendíamos fazer a análise sintática dos versos de Camões. Pois é, para o pessoal da teoria literária esta notícia pode não ser nova, mas para mim foi uma surpresa. Como todo o grande personagem histórico, Camões também tem uma origem meio nebulosa, mas na memória de um de seus poemas mais conhecidos, alimentamos a idéia de que no dia de seu nascimento, houve um eclipse do sol, que deixou às escuras a sua terra natal.

Lembram-se dos versos: “o dia em que eu nasci moura e pereça/ não o queira jamais o tempo dar/ não torne mais ao mundo, e, se tornar/ eclipse nesse paço o sol padeça...Ó gente temerosa não te espantes/ que este dia deitou ao mundo a vida/ mais desgraçada que jamais se viu”? Pois é, descobriram recentemente que estes versos não foram escritos pelo poeta. Mais uma tradição recentemente (des)inventada. Os versos seriam de autoria de alguém empenhado em encenar o imaginário dos descobrimentos, quem sabe em que época e em que lugar do passado. Mas a (des)invenção de Camões não pára por aqui. Voltarei ao assunto na semana que vem, pois descobri, em minhas últimas pesquisas, que o projeto dos Lusíadas também já tinha sido esboçado por ninguém menos do que um escritor italiano. Outra vez se aproximam Portugal e Itália na época dos descobrimentos. Obrigado, meu caro Sergio Buarque!

Mas antes de terminar dou-lhes a notícia de que na próxima quinta-feira estarei na livraria Ler Devagar, do Bairro Alto, para discutir o livro Rebeldes Primitivos, de Eric Hobsbawm. Não poderia haver lugar mais apropriado para esta exposição. O bairro é tradicionalíssimo e repleto de símbolos do imaginário popular. Tanto é verdade, que passeando por suas ruas estreitas no final de uma tarde de domingo, me veio à memória os versos de Orestes Barbosa, que recita um passado de forte tradição popular portuguesa, ainda vivo nos barracos do Rio de Janeiro: “nossas roupas comuns dependuradas, tal qual bandeiras agitadas, pareciam um estranho festival”. Acreditem, as roupas dependuradas nas janelas das casas são o símbolo do patrimônio histórico de Lisboa na recuperação dos bairros tradicionais da cidade.

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Historiador e professor do IFCH, Edgar Salvadori de Decca assumiu a cátedra Brasil-Portugal em Ciências Sociais no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), em Lisboa, em convênio firmado entre essa instituição e a Unicamp. A convite do Jornal da Unicamp, De Decca aceitou o desafio de escrever semanalmente um relato de sua permanência na capital portuguesa.

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