Crer ou não crer, eis a questão
RACHEL
LEWINSOHN
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Formada pela Faculdade Fluminense de Medicina,
a professora Rachel Lewinsohn (acima) fez pós-graduação
(dois mestrados, doutorado, pós-doutorado)
nas universidades de Londres e Cambridge, Inglaterra.
Desde 1982 pesquisou, lecionou e ministrou cursos
de História da Medicina na FCM da Unicamp.
Em março de 2003 foi lançado o seu
livro Três Epidemias: Lições
do Passado (Editora da Unicamp). Aposentada,
continua ativa como professora colaboradora voluntária
da Unicamp. |
São
de longa data as preocupações e o mal-estar
suscitados pela ciência e tecnologia. Em 1920,
nos primórdios das pesquisas sobre a energia
nuclear utilizável, escrevia o químico
inglês Frederick Soddy: Suponhamos que
se torne possível extrair, tão rápido
quanto se queira, a energia que está a vazar,
por assim dizer, da matéria radioativa há
bilhões de anos. De uma libra (massa) de tal
substância obter-se-ia a mesma quantidade de
energia resultante da queima de 150 toneladas de carvão.
Esplêndido! Ou uma libra (massa) poderia realizar
o trabalho de 150 toneladas de dinamite. Ah, aí
é que está o problema...Concebe-se que
uma descoberta dessa natureza seja feita amanhã,
e, o que é quase certo, cedo ou tarde ela será
feita pela ciência, desenvolvida e aperfeiçoada
para o uso ou a destruição...das próximas
gerações. Certamente não será
necessária a demonstração concreta
disso para convencer o mundo de que está condenado
se brincar com as realizações da ciência
como tem feito por tempo demais no passado. A menos
que...seja encontrado um uso melhor para as dádivas
da ciência, a guerra não seria a agonia
prolongada que é atualmente. Qualquer região
do mundo, ou o mundo todo se necessário, poderia
ser despovoado com uma rapidez e eficácia que
nada deixariam a desejar.
Dez anos depois, R. A. Millikan
descartava essas preocupações com desdém:
Desde que o sr. Soddy evocou o espectro de perigosas
quantidades de energia suba-tômica utilizáveis,
[a ciência] aduziu boa evidência de que
este fantasma específico tal como a
maioria dos fantasmas que abarrotam a mente ignorante
era um mito, (insulto inédito,
mormente por se tratar de dois detentores do prêmio
Nobel). A nova evidência nascida de recentes
estudos científicos demonstra que é
altamente improvável que existam quantidades
apreciáveis de energia subatômica passível
de ser usada. Podemos dormir sossegados, conclui
Millikan, certos de que o Criador inseriu na
sua obra...elementos protetores infalíveis
que impedem que o homem possa lhe infligir danos físicos
catastróficos.
Rutherford, outro prêmio Nobel,que
partilhava essa opinião, morreu em 1937; mas
os dois outros ainda eram vivos quando a visão
apocalíptica de Soddy foi comprovada por Hiroshima
e Nagasaki.
Na década 1920-1930, cientistas
e público devem ter imaginado que esses problemas
de física nuclear, novos para a vasta maioria
deles, eram meros tópicos de discussão
acadêmica ledo engano que seria revelado
em todo o seu horror no curto espaço de 15
anos. Porém, jamais poderia haver equívoco
semelhante a respeito do impacto direto das descobertas
médicas. Sobretudo depois da II Guerra Mundial,
a magnitude e as implicações dos novos
achados deixaram o mundo atônito. Embora houvesse
quem alertasse para o perigo de expectativas exageradas,
parecia a médicos e leigos que não existiam
limites ao poderio da ciência e da tecnologia
de resolver a maioria, senão a totalidade dos
problemas da saúde e doença.
Mas há muito tempo o pêndulo
vem se inclinando para o lado oposto: a euforia e
fé no médico e sua ciência transformaram-se
em suspeita e rejeição, não obstante
os feitos prodigiosos que a medicina tem produzido
nos últimos 50 anos. A medicina já
foi a mais respeitada de todas as profissões.
Hoje em dia, quando possui...tecnologias para tratar
(e curar) doenças... simplesmente incompreensíveis
há alguns anos, [ela] é atacada por
toda sorte de razões. (Lewis Thomas,1985)
Por que esse desencanto? Uma das principais queixas
é a desumanização da medicina
devido ao predomínio da biotecnologia, e conseqüente
deterioração da relação
médico-paciente.O médico tornou-se um
biotécnico que solicita exames e os analisa,
em vez de examinar o paciente. Ele não tem
mais tempo para ouvir o paciente; cada vez mais depende
da tecnologia, haja visto o imenso aparato
instrumentos, equipamentos, procedimentos mobilizado
para examinar ou tratar o paciente, assustado e inseguro.
Por outro lado o indivíduo, doente ou são,
depende cada vez mais do médico e da pílula.
O poder do médico sobre o paciente, e da profissão
sobre a sociedade como um todo; a impotência
(absoluta ou relativa) da medicina frente à
eclosão de epidemias e infecções
emergentes e ao ressurgimento de doenças supostamente
erradicadas ou controladas; o marketing agressivo
da ciência e tecnologia, inclusive da medicina,
asseverando que cada pesquisa se justifica por si
mesma; cada inovação é um progresso,
um benefício acima de qualquer dúvida,
quando muitas vezes a verdade é exatamente
o oposto: estes são apenas alguns dos
inúmeros problemas, que muitas vezes não
dependem da vontade ou do poder do médico para
sua solução, enquanto outros exigem
soluções de ordem socioeconômica
e sobretudo política muito mais do que médica.
As torrentes de informação
que jorram dos meios de comunicação
raros fatos e muita fantasia são
de pouca valia para a orientação de
quem busca informação. Em recente painel
na TV Cultura (SP) que analisou a qualidade dos dados
divulgados pela imprensa e TV sobre a soja transgênica,
um comentário acerbo referiu-se à certeza
com que os cientistas opinavam sobre o assunto, sem
jamais aludir às limitações do
seu saber, ao passo que as pesquisas mostram o muito
que falta para se chegar a conclusões definitivas.
A confiança excessiva do biotécnico
em seu próprio juízo é alvo da
mesma crítica: É regra e não
exceção a adoção de novas
técnicas pela clínica médica
com base em evidência insuficiente de sua eficácia
ou segurança... Os advogados de novas técnicas
costumam sofrer de um estranho distúrbio chamado
certeza. (A.Oakley,1992)
Esses exemplos mostram o quanto
são dúbias a objetividade e busca da
verdade, não como máximas absolutas
do cientista mas como princípios que observa,
e em que bases frágeis são decididas
as prioridades: o que ensinar, pesquisar, produzir;
como diagnosticar e tratar o doente; em que investir
o dinheiro público, etc. E há, finalmente,
os interesses comerciais, óbvios, inegáveis:
aquela descoberta, aquela invenção,
apontada como benefício ímpar (ex.:engenharia
genética) que na realidade serve sobretudo
para ganhar milhões ou converter um milionário
em bilionário; enquanto a pesquisa básica,
órfã, sem lucro à vista, vai
mendigando ou morre por falta de verba.
Não podemos ignorar
o contexto sócio-cultural no qual a [ciência
e] tecnologia funcionam. Nesse contexto, nos séculos
XVII a XIX as conseqüências da maioria
das inovações tecnológicas eram
benéficas. Seja devido a mudanças na
sociedade e cultura ou a alterações
na natureza e eficácia da tecnologia, no século
XX em algum momento o equilíbrio começou
a se deslocar... Somos de fato dependentes da tecnologia...que
tornou populações [inteiras] incapazes
de subsistir sem a sua ajuda. (Sinsheimer, 1979)
Acrescente-se que a ciência e (bio)tecnologia
assumiram a supremacia na medicina, efetivamente eliminando
dela uma dimensão essencial: o humanismo. E
na corrida frenética do cientista e tecnocrata
pela inovação a qualquer preço,
perdeu-se, além da visão de qualquer
objetivo (exceto o financeiro), algo indispensável
à sobrevida humana: o bom senso. Nós,
o público, precisamos readquirir a confiança
no nosso julgamento e a coragem de reagir à
pressão intolerável do marketing da
inovação. Não é verdade
que terça-feira é necessariamente melhor
do que segunda-feira; nem que aquele aparelho, remédio,
procedimento de última geração
é melhor do que o penúltimo ou mesmo
o de dez anos atrás.E quanto a nós,
os cientistas? Bem, se quisermos ter uma chance de
tornar a merecer a confiança do público,
creio que precisamos antes de mais nada parar de correr,
olhar aonde vamos, e mudar de rumo se for necessário.
Referências
F.Soddy (1877-1956; PrNob 1921), Science and
Life, London: John Murray, 1920
R.A.Millikan (1868-1953; PrNob 1923), Alleged
Sins of Science, Scribners Mag.1930, 87/2:119-130
E.Rutherford (1871-1937; PrNob 1908) Apud Physics
Today, Outubro 1970, p.33
A.Oakley, apud J.Mitford, The American Way of
Birth, Dutton (Penguin) NY, 1992, p.115
R.L.Sinsheimer, The Presumptions of Science,
in Limits of Scientific Inquiry (ed. G.Holton
& R.S. Morison), NYork, Norton 1979
L.Thomas (1913-1993), The Youngest Science,
Oxford University Press, 1985, p.54
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