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Os idosos e seus baús fotográficos
Jornalista resgata experiências
de vida a partir da linguagem
visual em Retratos da Velhice
RAQUEL
DO CARMO SANTOS
LUIZ
SUGIMOTO
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A pesquisadora Fabiana Bruno: lembranças
de menina que visitava a tia-avó no asilo |
Aqui é... aqui foi...
olha aqui...
São sinais indicativos de tempo e de espaço
que pessoas idosas utilizam quando nos mostram seus
álbuns de fotografia. A importância
dos baús fotográficos para
a velhice representa algo incomensurável,
escreve a jornalista Fabiana Bruno, em sua pesquisa
para mestrado em multimeios do Instituto de Artes
(IA) da Unicamp. Fabiana tinha apenas 6 anos quando
se deixou comover por sensações que
pairavam no mundo do asilo, durante visitas à
tia-avó Isa. Guardo as lembranças
daqueles rostos de pessoas velhas. São retratos
que foram despertados e que se fixaram na minha memória,
afirma.
Adulta, a jornalista reaproximou-se
do universo dos idosos e explorou seus baús
para tentar descobrir, junto com eles, como constroem
a memória na velhice. Para isso, fez uso de
duas ferramentas da comunicação: a verbalidade
nas entrevistas e a visualidade nas fotografias. Experiências,
até então cravadas no silêncio
singular da fotografia, vão se rompendo pelo
desvendamento e voz que emergem da memória
do idoso, num momento de vida em que suas lembranças
se cruzam com o tempo do envelhecimento, comenta.
A dissertação Retratos da Velhice. Um
duplo percurso: metodológico e cognitivo, será
apresentada em 16 de dezembro e teve a orientação
do professor Etienne Samain.
Em geral, os estudos
que focam a memória como tema são centrados
na história oral, cuja importância reconheço.
Mas uma das características marcantes deste
trabalho é que ele ultrapassa esse modo de
investigação, reconstruindo o filme
da vida dos idosos a partir da linguagem visual. As
fotografias são formas que, ao se deslocarem,
produzem seu próprio pensamento, afirma
Etienne Samain. Faço uma reflexão
também sobre a educação do olhar,
sobre pensar naquilo que se vê, acrescenta
a mestranda.
Para constituir o que define
como rede de informantes, Fabiana Bruno
optou desta vez por idosos que encontramos em ruas
e praças. Os sujeitos da pesquisa não
eram idosos asilados ou doentes, que não vivessem
uma velhice escondida. A concepção da
rede pedia idosos que se mantivessem atuantes enquanto
representantes de uma classe social, etnia e gênero.
Um requisito essencial era que dispusessem também
de acervos pessoais de fotografia, os baús
fotográficos, explica.
Como ponto de partida, a autora
recorreu a uma lista de 60 antigos moradores de Jaguariúna,
que participaram de uma série de entrevistas
no programa Memórias, concebido,
produzido e apresentado pela própria pesquisadora
na Rádio Educativa da cidade. A longa relação
acabou reduzida a cinco sujeitos, que tiveram como
primeira tarefa eleger do baú, sem que se estabelecessem
critérios, um conjunto de 20 fotografias. Todos
ultrapassaram este limite na pré-seleção
e um deles chegou a separar 80 fotografias.
Cada idoso, então,
compartilhou a escolha final com a pesquisadora, que
ao mesmo tempo gravou os depoimentos. Naquele
contato inicial, pretendíamos apenas reunir
dados primários como data da fotografia, local
da tomada, autoria, tamanho, tipo de papel, quantidade
de cópias etc. Mas surgiu uma complexa interação
entre pessoas e universos, em longos e espontâneos
diálogos que permitiram tecer a memória
e os caminhos da memória, em especial os do
envelhecimento, recorda Fabiana.
A segunda tarefa foi de reduzir
o número de fotografias para 10, com nova rodada
de entrevistas. Ao todo, foram mais de dez horas de
gravações e quase dois anos de pesquisa
de campo. O processo de escolha parece simples,
mas não é desvinculado de um princípio
de organização. Na realidade, o idoso
desenvolve um sofisticado trabalho intelectual para
a seleção das fotografias e, não
por acaso, existem associações entre
as imagens, observa a jornalista.
Reconhecença
Para ajudar a entender o que representou para os idosos
a tarefa de escolher somente um punhado de fotografias,
dentre centenas de outros documentos que sossegavam
nos baús, Fabiana Bruno traduz o termo reconhecença,
que faz parte do vocabulário dos marinheiros:
ela afirma que, segundo Antônio Houaiss, designa
um aspecto notório de terra que permite
ao navegante saber em que parte do litoral está,
como um boqueirão, um declive rochoso, uma
praia de areia fina. É como se os idosos,
colocados diante de outra paisagem a do desenrolar
de toda uma existência , tivessem que
navegar à procura de reconhecenças
no horizonte e na trama de suas vidas: o bordado de
um vestido de casamento, o picadeiro de um circo,
a construção da primeira casa, o dia
da formatura, o melhor amigo.
Formas visuais que pensam
e acordo com Fabiana Bruno,
ao trabalho dos idosos de demarcação
e de balizamento, chamado de reconhecença,
sucedem-se duas outras operações
cognitivas: a triagem das fotografias e a sua
montagem em um novo ordenamento. Trata-se
de uma intervenção dupla no interior
do corpus de imagens fotográficas. Num
primeiro momento, o conjunto é desmembrado
e parte das fotos é descartada; em seguida,
os elementos que permanecem são reestruturados,
à maneira de uma montagem cinematográfica,
em uma nova composição de significâncias
visuais, compara.
Celeste Pires da Costa Ferrari,
de 81 anos, levou à pesquisadora seu
baú fotográfico conservado em
uma pequena mala. Apesar da liberdade para apresentar
o conjunto na forma que quisesse (em ordem cronológica,
temática ou mesmo em desordem), dona
Celeste fez uma clara ordenação
em quatro tempos: as mais antigas,
as (do tempo) do circo, a
época difícil, as mais recentes.
Percebia-se várias ligações
entre os anos passados no circo e a constituição
de uma própria família. Dona
Celeste guarda forte na memória o fato
de ter sido uma mulher de circo em época
de preconceitos acirrados, e ainda assim se
casar com o farmacêutico Walter Ferrari
e gerar filhos. Não me amiguei,
guardei a foto para provar que casei,
é o que ela enfatiza na entrevista,
conta a jornalista.
Dentro da proposta de uma
nova metodologia de leitura das fotografias,
Fabiana Bruno promoveu arranjos visuais
da memória, dispondo as imagens
em sentido horizontal, vertical, circular e
híbrido, e chegando a importantes representações.
São formas visuais que pensam.
Se existe um pensamento próprio às
imagens, certamente é o pensamento associativo,
o pensamento que se estrutura ao se deslocar,
justifica.
No traçado horizontal
escolhido pelos idosos para organizar as fotografias,
o olhar corre facilmente pela prancha, seguindo
um percurso similar ao encadeamento das sílabas
e das palavras. Construímos um
pensamento através do sistema de escrita,
da esquerda para a direita, forma clássica
da alfabetização visual,
ilustra Fabiana Bruno. Porém, quando
as imagens são associadas de cima para
baixo, o olhar se agita e se perturba. Cria-se
um embaralhamento visual e mal-estar, um sentimento
de quem perdeu o fio da meada, ao procurar uma
estrutura significativa que conectaria as imagens
entre si, compara.
O traçado circular
foi o que mais surpreendeu a pesquisadora. A
circularidade permite uma multiplicidade de
novas leituras: ora o olhar se desloca no sentido
horário (ou não), ora se desfaz
em recortes sucessivos, laterais, transversais,
diagonais, à procura de possíveis
associações. É um olhar
que conduz à exploração
de conexões, correspondências e
aproximações entre fotografias
que antes apareciam distanciadas, ou simplesmente
impensadas, comenta a jornalista.
A primeira foto de dona Celeste, aos 5 anos,
entrando na família circense, tem como
vizinha a última imagem, aos 68 anos,
no centro de toda sua família reunida.
Mais que um marcador impenitente do tempo,
o círculo remete ao movimento mais amplo
de um ciclo vital, com o seu começo e
fim, conclui Fabiana Bruno.
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Ver um filme não é olhar para uma fotografia.
São atos de observação, posturas
do olhar, muito diferentes. Assiste-se
a um filme, mergulha-se numa fotografia.
De um lado, um olhar horizontal, do outro, um olhar
vertical, abissal. As imagens projetadas levam o espectador
num fluxo temporal contínuo, que procura seguir
e entender; as fotografias, por sua vez, o fixam num
congelamento do tempo e o convidam a entrar na espessura
de uma memória. Diante da tela, somos viajantes
e navegadores; diante da fotografia, tornamo-nos analistas
e arqueólogos.
(Etienne Samain)
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