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¿Qué pasa con la izquierda?
REGINALDO DE MORAES
Nos últimos anos, na Espanha, essa pergunta foi enfrentada por uma grande variedade de estudos, acadêmicos ou não. Alguns deles procuram decifrar a trajetória da esquerda que chegou ao governo, o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE). Outros tentam entender aquela que, acreditem, ainda sonha em chegar lá, o Partido Comunista de Espanha (PCE) e sua quase-fachada, a Izquierda Unida (IU).
Registro aqui alguns dos achados e perdidos desse debate, que, vocês verão, não interessa apenas aos espanhóis. Selecionei três livros que me pareceram mais polêmicos e sugestivos: Cambio y adaptacion en la izquierda. La evolución del Partido Comunista de España y de Izquierda Unida, de Ruiz Ramiro Fernandez (ed. CIS, Madrid, 2004; El Control de los Políticos, de José Maria Maravall (ed. Taurus, Madrid, 2003); La estrategia organizativa del Partido Socialista Obrero Español (1975-1996), de Monica Méndez Lago (ed. CIS, Madrid, 2000)
Infelizmente, neste espaço, só poderei sublinhar algumas impressões e condensar poucas das ricas informações desses estudos. Julgue, o leitor brasileiro, o quanto a elas se aplica a frase célebre: é tua a história contada.
Uma dessas informações: apenas 15% dos filiados da UGT, central sindical socialista, votam no PSOE, o partido socialista. E apenas 25% dos filiados da CCOO, a central comunista, votam no PCE ou na IU. Uma baixa relação nesse nível, o dos eleitores. Baixa também é a filiação partidária entre os associados de sindicatos. E baixa é a filiação sindical entre os afiliados ou eleitores mais fiéis dos partidos. Esse é apenas um dos sinais da fraca relação entre “esquerda social” e “esquerda política”. Verdade que a esquerda social não esta apenas nos sindicatos, mas em numerosos movimentos populares. Mas, estes, também, só se condensam e coincidem em frentes políticas comuns em momentos muito específicos e especiais (e por razões também muito pontuais), como nas manifestações contra a invasão do Iraque e, principalmente, contra a participação espanhola nessa aventura.
Há uma base material para essa fragmentação e “tribalização” da política e dos movimentos sociais (reivindicatórios, de afinidades e identidades)? Sim, parece haver. A flexibilização do emprego, a descaracterização de carreiras e postos de trabalho, a transitoriedade das ocupações e hábitos (e, claro, também da moradia e dos laços de vizinhança) tudo isso ajuda e muito. A tal da globalização parece ter substituído a famosa frase do Manifesto Comunista pelo slogan publicitário do leite em pó: tudo que é sólido se desmancha... sem bater.
Mas, além da base material, inegavelmente importante, é preciso ver outros fatores. Um deles: essa base material resulta, pelo menos parcialmente, de decisões cumulativas anteriores desses próprios sujeitos, os partidos, os sindicatos, os movimentos sociais. E entre essas decisões cruciais está o modo como partidos e sindicatos foram se acomodando às instituições reguladoras do conflito. Sobretudo, como foram se acomodando à legislação, às normas sobre funcionamento, ao calendário institucional, etc.. Essas instituições regulam, depois disciplinam, modelam e, por fim, definem as identidades e comportamentos.
Sobre os sindicatos, muito haveria para falar, talvez tenha oportunidade de voltar ao tema. Vejamos, porém, os partidos, IU-PCE, mais exatamente. E toquemos num ponto que também foi fatal para a deterioração do outro partido da esquerda, o PSOE: a sustentação e a autonomização da máquina. Mais de 0% das finanças de IU resultam de transferências de dinheiro público, proporcionais e dependentes de suas votações e cargos. A cotização de militantes é absolutamente insignificante. E 80% das rendas do PCE são... transferências de IU. Ou seja: mesma origem. E, sublinho, esses dados ainda subestimam a vinculação e dependência que estou a sugerir. Seria necessário computar ainda que muitos dos profissionais de IU-PCE são, de fato, funcionários públicos (trabalhando em cargos de confiança, geralmente). Desse modo, não espanta que a vida interna e a vida extra-eleitoral de IU-PCE sejam tão reduzidas. E que seus dirigentes sejam cada vez menos originários das fábricas e cada vez mais de dentro do próprio aparato como uma oligarquia que se auto-recruta. Não há, aqui, juízo meu sobre o caráter das pessoas. Não se trata de uma condenação moral a burocratas, oligarcas, caciques. Deixemos isso temporariamente de lado. Tentemos ir um pouco além. Temos aí um círculo vicioso, tal como a lei de ferro de oligarquização dos partidos? Pode ser rompido? Como?
O livro de Mendes-Lago mostra a crise dos partidos nessa combinação: menor implantação social, crise de legitimidade, falta de democracia interna e declínio organizativo. A experiência do PSOE é assombrosamente educativa, uma lição que vale a pena estudar.
Eu disse que questões como essas interessam não apenas a espanhóis. Nós, brasileiros, por exemplo, vivemos a experiência dos “autênticos” do PMDB e da transformação de muitos deles, incluindo os que se diziam comunistas, em obreiros na máquina de caciques desse partido. Vivemos o surgimento do PSDB, revolta “ética” contra o quercismo e similares, logo depois entrando no mesmo rumo e, inclusive, incorporando líderes do quercismo que apedrejavam. E, agora, vivemos as metamorfoses do PT, ainda em andamento, condensando, em tempo recorde, muitas dessas fases.
São esses, também, os problemas tratados no livro de José Maria Maravall. O autor não é pouca coisa. Peso pesado da ciência política espanhola, dirigente do PSOE e ministro de Felipe Gonzalez. O livro, El control de los políticos, tem duas caras, que vão se revezando diante do leitor. Por um lado, diálogo com modelos explicativos da ciência política sobre partidos, eleições, lógica da ação coletiva, corrupção. Por outro lado, a base empírica apresentada pelo autor para ilustrar problemas que levanta: a Espanha do PSOE, ou o PSOE dessa Espanha. Para o leitor não especialista, esta é, me parece, a mais fascinante. Até pelas transposições, analogias e comparações que pode sugerir.
Quando o PSOE chegou ao governo, em 1982, Alfonso Guerra, o apparatchik-mor do partido, disse que eles iriam transformar tanto a Espanha que não a reconheceria “ni la madre que la parió”. Não se tem noticia de entrevista com a citada figura materna, mas, se vale um testemunho alternativo, aqui vai. Tive oportunidade de conhecer o feto, ainda em 1982, e o adolescente resultante (em 1998) e, agora, o adulto (já submetido a uma fase de reeducação pela nova direita, o PP de José Maria Aznar). Pois bem: aconteceu também o inverso, ou seja, a Espanha real mudou o PSOE de tal modo que não há mãe que o reconheça. E é esse processo que Maravall tenta exibir. Não tenho espaço, evidentemente, para descrevê-lo. Apenas para sugerir a relevância da coisa. Se alguém tiver interesse, empresto os livros...
Volto ao tema dos imigrantes, que já comentei em crônica anterior. Eles são responsáveis por 90% do crescimento da população espanhola nos últimos dez anos. E são bastante convenientes para Espanha do ponto de vista econômico e, sobretudo, no balanço fiscal. Trabalham, geram renda e tributos. Pagam impostos e seguridade social e... consomem poucos benefícios (ainda são jovens...). Os jornais têm acentuado essa questão, sobretudo por conta da crise dos “sem papéis” que o governo Zapatero tem tentado resolver. Há quase dois milhões de imigrantes com permissão de residência e filiados à seguridade social. Com permissão, filiação, contribuição.
Aos olhos do observador atento, o metrô de Madrid, mesmo nas suas linhas mais próximas do centro, exibe uma população usuária que não tem nada a ver com aquilo que vi em outras ocasiões, há vinte anos ou mesmo agora pouco, há uns seis ou sete anos. Fenômeno semelhante se deu em Barcelona ou em grandes cidades bascas, como Bilbao. Fico me perguntando a quem se dirige, de fato, o nacionalismo burguês do Partido Nacional Basco. Parece-me que, justamente por isso, o PNV namora a ETA e tem diante dessa organização uma posição ambígua. Uma parcela significativa, senão a maioria da população das províncias bascas nasceu longe, bem longe dali e, claro, não fala seu idioma, mas o castelhano. O mesmo ocorre na Catalunha. ETA e a ideologia do nacionalismo basco viraram uma coisa de duvidosa identidade, muito duvidosa. Acaba de estrear aqui um filme baseado em relato real: Lobo é a estória de um agente que o serviço secreto infiltrou na ETA. O filme tem um ritmo forte, parece ficção policial, mas... é uma parte importante da vida da Espanha que nele aparece. E não é uma parte fácil de entender nem de engolir. Dos serviços secretos das ditaduras (e de muitas democracias...) já sabemos muita coisa indigesta. Mas o filme mostra também o outro lado, menos politicamente correto, talvez, dessa contenda. Por exemplo, o modo como ETA “resolveu” e, parece, segue resolvendo suas divergências internas. Pouco apaixonante, digamos.
A alta hierarquia católica espanhola, agora apoiada pelo cardeal Ratzinger, uma espécie de versão vaticânica de Condoleezza Rice, segue apedrejando Zapatero e suas medidas laicizantes na educação, o casamento de homossexuais, o aborto. Há quem discorde: os dominicanos opinam que a Igreja deveria compreender melhor os novos tempos. A divergência foi tímida. Ainda mais tímida foi a divulgação. Afinal, a Igreja do novo Paulo sabe calar o bico de seus dissidentes. O Vaticano tem as suas sibérias e gulags espirituais. Quando um intelectual católico é censurado ou condenado ao “silêncio obsequioso”, isso é mais do que uma prisão, é a criação de um espaço de morte no melhor de sua vida.
A Igreja sempre marcou a vida dos espanhóis, há séculos. Alguns deles, ela marcou a ferro e a fogo. Na alma e no corpo. Para aqueles que não sabem, terminada a guerra civil, o papa Pio XII, notório simpatizante do nazifascismo, emitiu uma mensagem radiofônica saudando a vitória franquista contra os criminosos inimigos do cristianismo. A notável peça da cristandade, depois editada, se chamava nada menos que... “Con inmenso gozo”. Ah, o mal que faz condenar o verdadeiro gozo! Fica-se tentado a substituí-lo por esse imenso gozo ressentido. No inicio dos anos 50, acostumados a meter o nariz em tudo que era espaço da vida, os sicários de sua santidade organizaram uma coisa chamada “Primeiro Congresso Nacional de Moralidade em Praias e Piscinas”... Dá para ter uma idéia do circo (ou hospício) que tentaram montar, pela segunda vez, na península ibérica.
Imperdível a reedição do livro de Margarita Riviere - Joan Manuel Serrat (Ediciones Algaba, Madrid). Cruza episódios da história espanhola nos últimos 50 anos com passagens da vida de Serrat e com suas canções. Serrat é, em minha opinião, o mais importante compositor popular espanhol deste meio século cantautor, como dizem aqui. Retratou, como ninguém, as transformações da sociedade espanhola, mas como poeta, por dentro dos diferentes tipos humanos cujas almas fazia falar através de sua poesia. Além disso, Serrat musicou magistralmente os poemas de Antonio Machado e Miguel Hernández. Enquanto produzir gente como Serrat, Machado, Hernández, a espécie humana ainda tem uma chance de demonstrar que não é o câncer do planeta. Infelizmente, as provas em contrário são muito numerosas. E, pior, são fortes.
Os acadêmicos brasileiros e os responsáveis pelas políticas de ensino superior deveriam prestar mais atenção a um notável experimento espanhol, a Uned, Universidade Nacional de Ensino a Distancia. Não se deixem enganar pelo nome que tem sido utilizado, tantas vezes, para recobrir picaretagens grosseiras ou para confundir educação com deslumbramentos cibernéticos. Voltarei a esse tema. Mas adianto que vale a pena entender as virtudes e especificidades, limites e dificuldades dessa aventura, que já tem 30 anos e absorve, hoje, quase 10% do estudantado de nível superior na Espanha.
É impressionante o quanto se publica, na Europa, a respeito da história norte-americana recente. As grandes livrarias de Paris e Madrid reservam pelo menos uma estante para os últimos lançamentos. Aqui, na Espanha, saíram três livros imperdíveis: de Alex Callinicos, Los Nuevos Mandarines del Poder Americano (ed. Alianza); de Michael Mann, El Imperio Incoherente (ed. Paidós), de Chalmers Johnson, Las Amenazas del Império (ed. Critica). O livro de Callinicos é uma síntese da ascensão dos neoconservadores e de duas principais idéias e interesses. Os dois outros são estudos mais alentados. E não foram escritos por franceses, espanhóis, italianos ou palestinos. Os autores são professores da Califórnia, um deles, Chalmers, ex-consultor da CIA. Trabalhos notáveis pela documentação e aterradores pelas conclusões (muito lógicas) que adiantam. Referindo-se a Bush, Mann, logo de cara, adverte: “Para o bem do mundo, devemos detê-lo”. Já sabemos o que ocorre, não? Chalmers, em certo ponto, permite a si mesmo um otimismo que me deixou quase deprimido. Traça um paralelo com o império romano e diz: “não está escrito em lugar algum que os Estados Unidos, em sua modalidade de império mundial, deva durar para sempre”. Impossível não lembrar que o império de Alexandre, tal como o de Napoleão, o Romano, o Britânico não tinham a chance que tem este outro: o de acabar, sim, mas levando junto o planeta. Pela primeira vez a humanidade tem talento acumulado para tanto. E, na história do globo terrestre, é a primeira espécie dominante que o tem. Não é confortador. Em todo o caso, se queremos impedir o desastre, comecemos por entendê-lo. Estes livros são indispensáveis para isso.
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Reginaldo Carmello Correa de Moraes é doutor em Filosofia, professor do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH) e do curso de pós-graduação em Relações Internacionais (Unicamp-Unesp-PUC/SP). Assumiu uma cátedra junto ao Centro de Estudios Brasileños da Universidad de Salamanca, onde ficará até dezembro, para um ciclo de seminários sobre problemas brasileiros, além de atividades de pesquisa sobre a transição política na Espanha e sobre os experimentos de expansão do ensino superior naquele país. A iniciativa ocorre no âmbito do Programa Cátedras Unicamp & Universidades Espanholas.
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