Mitos argentinos:
reafirmações e revisões
FERNANDO DE TACCA
À parte mitos históricos que parecem ter uma vitalidade eterna, como Evita, Perón, Gardel, Chê e Maradona, que permeiam o imaginário argentino, alguns novos ícones surgem e outros estão sendo revistos. Em meio a “Personajes del siglo XX”, nos saquinhos de açúcar da marca Clamor, junto com Sartre, Einstein e outros, encontramos os mitos argentinos citados acima. Cartazes peronistas sempre aludem aos dois próceres do Partido Justicialista e, como sempre, Evita em plano mais destacado. Muitas vezes, Perón aparece de forma inusitada e em espaços inimagináveis, como um destaque na abertura de uma exposição de fotos na mostra El Che Guevara por los fotógrafos de la Revolución. A fala creditada a Perón poderia ser de qualquer um, não tinha nada diferenciador; perguntei a dois jovens presentes se sabiam porque havia aquele texto na abertura e eles não souberam explicar, somente disseram que não viam sentido estar ali, mas, no espaço da exposição, ouvia-se o som de bandoleones e um grupo de jovens encontrava-se para bailar “el tango” entre fotos de Che e a fala de Perón, no Centro Nacional de la Música. De certa forma, acontecia ali um encontro inconsciente de mitos. As idas e vindas de Maradona para Cuba parecem reafirmar alguns desses laços do imaginário argentino.
“Madres y Abuelas”
Todas as quintas-feiras elas estão lá. Infalivelmente às 15h30, juntam-se em fila, ombro a ombro, e dão três voltas na Praça de Maio, em frente da Casa Rosada. O acontecimento político da dor pelo desaparecimento de seus filhos, como primeira manifestação pública contra a ditadura militar, continua como reivindicação da vida e de novos momentos da política. Todas se cobrem com um lenço branco, os pañuelos, como são chamados os panos que cobrem a cabeças das Madres de Plaza de Mayo.
São duas ondas de velhas senhoras a dar voltas, muitas delas com dificuldades para andar, e o atento observador verá que existem duas linhas: Madres de Mayo - linea fundadora e a Asociación de las Madres de Mayo. As diferenças para os estrangeiros não são muito visíveis, mas transparece que a Associação das Mães da Praça de Maio assumiu um novo papel na política argentina e também se expressa com conteúdos internacionalistas, enquanto a chamada Linha Fundadora se detém mais nos objetivos fundadores de reivindicar a verdade sobre seus filhos desaparecidos. A prática política da Associação se estende para amplos setores da sociedade argentina, e até criaram uma Universidade Popular com forte marca de formação política. Entre os cursos oferecidos estão, por exemplo, a formação em Direitos Humanos, Educação Popular e Cooperativismo. Distingue-se claramente das inúmeras entidades privadas que estão na esfera recente do ensino universitário focadas em administração e business.
A luta de mães e avós é uma luta pela identidade, pela não aceitação de um passado esquecido e, assim, marca a história da Argentina até os dias de hoje, sendo constante assunto de mídia, principalmente quando a associação Abuelas de Plaza de Mayo localiza uma criança filha de pais desaparecidos ou mortos pela ditadura, e consegue o reconhecimento legal dessas crianças adotadas geralmente por militares. Há vinte anos, Luz (tradução brasileira, Editora Objetiva), um romance de Elsa Osorio, escritora argentina que reside em Madri, é um drama sobre a brutal repressão da ditadura militar e conta a história de uma criança separada de seus pais, presos políticos. O romance inicia com um prólogo, o encontro de pai e filha, e segue para uma construção de características do período argentino durante a ditadura e as seqüelas dolorosas da arbitrariedade.
Recentemente, no começo de novembro, um preso político teve o primeiro encontro com seu filho, depois de 30 anos! Com prisão legal em 1975 e depois libertado, exilou-se na França em 1979. Sua companheira não teve a mesma sorte, morrendo na prisão depois de seqüestrada com o filho de apenas nove meses, em 1976. E em outubro, uma das doze fundadoras das Abuelas, Leontina Puebla de Pérez, reencontrou sua neta de 27 anos. Através de exames provou-se com 99,9999% a consangüinidade com a família. Leontina soube da neta no Canadá, onde mora atualmente. São histórias que emocionam qualquer pessoa, e não como uma simples “porta da esperança”, mas como uma busca pessoal e uma luta política diária.
Os pañuelos, marca indicial desse movimento na lembrança de fraldas de bebês, se tornaram um símbolo contemporâneo de luta por justiça social, liberdade e pela vida, e encontramos esse símbolo em muitos espaços da cidade, no próprio chão da praça.
Pueblos Originários
Nesse sentido, quase como uma vertente “anarquista”, Osvaldo Sayer, um historiador reconhecido que escreveu o livro A Patagonia rebelde, sobre o massacre de um grupo de trabalhadores anarquistas no começo do século XX, encabeça um grupo de pessoas que se encontram pelo menos uma vez ao mês, sempre às quintas-feiras, em frente da estátua do General Julio Argentino Rocas, na tentativa de fazer uma revisão desse mito militar. Nesse encontros, em meio ao barulho dos carros e ônibus, em um pequeno espaço ao lado do portentoso monumento, Sayer faz comentários de passagens históricas da chamada Campana del Desierto e mostra fatos pitorescos e trágicos. A morte de milhares de indígenas na ocupação do interior argentino cobre de sangue a construção desse mito e, na parte mais pitoresca, Sayer demonstra que o comandante militar raramente subiu em um cavalo, e o fez somente para as fotografias, não estando nas batalhas, ou seja, nem como militar pode ser lembrado. Existe hoje uma Comisión Anti-monumento a Roca, que reivindica a imediata remoção e destruição de monumentos com a figura de Roca, a retirada de circulação das atuais notas de 100 pesos, substituindo Roca por um novo desenho, e pede a expropriação e devolução das terras. Ou seja, reivindicam uma revisão da história oficial levando em conta que os crimes de lesa-humanidade não devem ser esquecidos.
A avenida que cerca a estátua leva também o nome do general Roca. Entretanto, há mais de um ano foi rebatizada pelos movimentos populares de Pueblos Originários, e assim ficou, e se assim ficar mudará o nome por iniciativa popular, uma história que se constrói nas ruas. Nas tardes de domingo, podemos estar na calle Peru, ao lado da estátua, e um grupo de pessoas se encontra para bailar a chacarera, com os lenços brancos marcando os envolvimentos dos casais que ali se encontram de forma espontânea para uma convivência de busca de suas tradições, e aqui os pañuelos são de sedução. Daí podemos ver as manchas de tinta vermelhas, e as marcas de mãos também vermelhas, marcando o sangue indígena derramado, como também os eficientes grafites que marcam uma derrubada de Roca de seu cabalo, em tons variados, do preto ao dourado. E nós, paulistas, ainda homenageamos figuras históricas questionáveis, como os bandeirantes, até com nome de palácio.
Os olhos de Cabezas
Uma imensa ampliação fotográfica do olhar do fotógrafo José Luis, da revista Noticias, está na entrada da redação da revista, calle Chacabuco quase Av. Pueblos Originários, e pode ser vista de fora do prédio mesmo pela noite com uma iluminação especial. José Luis Cabezas foi assassinado quando trabalhava fotografando para esse semanário político e estava cobrindo as férias de políticos, atores e desportistas em praias ao sul de Buenos Aires. Seu assassinato foi amplamente difundido pela imprensa mundial. A mando do empresário Oscar Andreani, descontente por ser fotografado, foi maltratado até a morte com dois tiros na cabeça. Seu companheiro de reportagem, o jornalista Gabriel Michi, faz um relato minucioso de todo o acontecimento e de seus trâmites na justiça, acompanhando passo a passo o processo e outros fatos ligados ao assassinato. Para ele, a morte de Cabezas era um recado mafioso para os jornalistas. Algumas pessoas estão presas, mas, segundo ele, fatos ainda não foram aclarados, como, por exemplo, a participação da polícia no episódio, na tentativa de encobrir o assassinato e atrapalhar as investigações. Os olhos tristes de Cabezas, como um mito recente, parecem nos dizer que existe hoje um novo olhar sobre a Argentina, fiscalizador e reivindicatório.
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Fernando de Tacca é fotógrafo, mestre em Multimeios (Unicamp), doutor em Antropologia (USP), professor no Departamento de Multimeios/IA, e editor da Revista Studium. Assumiu a Cátedra de Estudos Brasileiros na Universidade de Buenos Aires, com curso de pós-graduação sobre Antropologia e Imagem no Brasil, pelo Programa Cátedras Unicamp & Universidades Espanholas. A Cátedra Unicamp/UBA é apoiada financeiramente pelo Grupo Santander-Banespa.