LUIZ SUGIMOTO
O escritor e tradutor Millôr Fernandes, ao ouvir o célebre ditado “uma imagem vale mais do que mil palavras”, retrucou: “Então, diga isso com imagens”. Quem lembra o episódio é o jornalista e dramaturgo Paulo Jorge Dumaresq, em artigo criticando a tendência no teatro contemporâneo de se valorizar os gestos e símbolos em detrimento da sedução da palavra. O jornalista questiona por que os signos roubam a cena no tablado, proporcionando montagens cada vez mais abstratas e experimentais, se o teatro é considerado a arte da dialética. “O homem está perdendo a capacidade de pensar, de refletir, de falar. Ninguém fala com imagens”, alfineta.
Por concordar que a palavra vem sendo negligenciada no teatro brasileiro, a atriz Theda Cabrera esmiuçou diversos autores até chegar a um romance de Clarice Lispector Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres para dar continuidade ao seu projeto de mestrado e dar voz a um espetáculo que enriqueceu a dissertação defendida em 2 de dezembro, no Instituto de Artes (IA) da Unicamp. “Mais que uma história, a palavra expressa emoções, e me parece que Clarice trabalha a palavra de uma maneira que apela à sensibilidade”, afirma. No seu entender, porém, esta negligência, no Brasil, decorre menos de uma opção e mais de uma imposição. “Por conta da censura na ditadura, as pessoas do teatro procuraram transmitir em movimentos tudo o que gostariam ter dito. Talvez isso tenha levado a uma maior ênfase na expressão corporal, ao passo que a pesquisa da palavra foi esquecida. Devemos considerar também a influência da nossa tradição de danças dramáticas populares como mais um fator que condiciona a opção por um teatro que enfatiza um corpo sem voz”, pondera.
Theda Cabrera, a propósito, recebeu uma formação como atriz com ênfase no aspecto expressivo do movimento, participando do Grupo Interdisciplinar em Teatro e Dança, que é associado ao Núcleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora (Nics), e também como atriz-pesquisadora colaboradora do Lume Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais. “Esta relação entre emoção, movimento e voz me fez entender o que é a palavra cênica. No dia-a-dia, existe uma integração entre o que pensamos, o que falamos e como agimos. Se eu tenho o impulso de gritar ‘socorro’, todo o meu corpo reage a isso. Como a arte é uma construção, precisa-se de treino para compor esses elementos tornando-os verossímeis para o espectador”, explica.
O foneticista Domingos Sávio Ferreira de Oliveira, em artigo que pretende contribuir para o estudo da voz falada no teatro, enaltece a força da palavra por trás de cada gesto corporal e vocal, na tentativa de despertar no espectador uma gama de sensações, crenças e reflexões. “O ator é um artista que joga e inventa com as palavras; precisa tirar de sua voz o que ela tem de melhor (matizes, nuanças, voracidade, suavidade) como um verdadeiro instrumentista que manipula com virtuosidade e agilidade o seu instrumento musical. É, assim, um compositor vocal”, compara.
Sabores Theda Cabrera fez uma livre adaptação do romance de Clarice Lispector, montando o espetáculo Uma Aprendizagem de Sabores, que ficou três dias em cartaz no Barracão Teatro, em Campinas. O monólogo aborda a temática do amor de um ponto de vista feminino, enfatizando o aprendizado da alegria como uma via para o auto-conhecimento. A história se passa no Rio de Janeiro de 1969 e conta a trajetória da professora primária Loreley ao longo das quatro estações verão, outono, inverno e primavera. Filha de família abastada que perde a fortuna, “Lóri” sai da cidade natal em busca de maior liberdade pessoal e se apaixona por Ulisses, professor de filosofia, que a conduz no aprendizado do amor e da alegria.
Para levar ao espectador o conceito abstrato de palavra cênica, Theda Cabrera, graduada pelo IA, teve a orientação da professora Verônica Fabrini de Almeida, coordenadora do Departamento de Artes Cênicas, e a co-orientação de Carlos Simioni, ator-pesquisador do Lume. Geralmente requisitada como modelo vivo em disciplinas de artes plásticas e de arquitetura, a atriz convidou professores e outros artistas a documentar o seu processo de pesquisa. “Nosso esforço foi o de criar uma história analisando as ações físicas que correspondiam aos estados de espírito propostos no livro. Clarice escreve sobre as pulsações de vida. Mais do que a palavra articulada, me interessou a vitalidade existente por trás da palavra. Por isso, embora seja um monólogo portanto preenchido de falas , há sempre a preocupação de aliar ao texto o movimento e a emoção”.