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A palavra cênica
 

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Num teatro que enfatiza a expressão corporal,
atriz recorre a Clarice Lispector para dar voz ao espetáculo

A palavra cênica



LUIZ SUGIMOTO


A atriz Theda Cabrera em cenas do espetáculo Uma Aprendizagem de Sabores: preocupação de aliar ao texto o movimento e a emoção (Fotos: Antoninho Perri)O escritor e tradutor Millôr Fernandes, ao ouvir o célebre ditado “uma imagem vale mais do que mil palavras”, retrucou: “Então, diga isso com imagens”. Quem lembra o episódio é o jornalista e dramaturgo Paulo Jorge Dumaresq, em artigo criticando a tendência no teatro contemporâneo de se valorizar os gestos e símbolos em detrimento da sedução da palavra. O jornalista questiona por que os signos roubam a cena no tablado, proporcionando montagens cada vez mais abstratas e experimentais, se o teatro é considerado a arte da dialética. “O homem está perdendo a capacidade de pensar, de refletir, de falar. Ninguém fala com imagens”, alfineta.

Por concordar que a palavra vem sendo negligenciada no teatro brasileiro, a atriz Theda Cabrera esmiuçou diversos autores até chegar a um romance de Clarice Lispector – Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres – para dar continuidade ao seu projeto de mestrado e dar voz a um espetáculo que enriqueceu a dissertação defendida em 2 de dezembro, no Instituto de Artes (IA) da Unicamp. “Mais que uma história, a palavra expressa emoções, e me parece que Clarice trabalha a palavra de uma maneira que apela à sensibilidade”, afirma. No seu entender, porém, esta negligência, no Brasil, decorre menos de uma opção e mais de uma imposição. “Por conta da censura na ditadura, as pessoas do teatro procuraram transmitir em movimentos tudo o que gostariam ter dito. Talvez isso tenha levado a uma maior ênfase na expressão corporal, ao passo que a pesquisa da palavra foi esquecida. Devemos considerar também a influência da nossa tradição de danças dramáticas populares como mais um fator que condiciona a opção por um teatro que enfatiza um corpo sem voz”, pondera.

Theda Cabrera, a propósito, recebeu uma formação como atriz com ênfase no aspecto expressivo do movimento, participando do Grupo Interdisciplinar em Teatro e Dança, que é associado ao Núcleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora (Nics), e também como atriz-pesquisadora colaboradora do Lume – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais. “Esta relação entre emoção, movimento e voz me fez entender o que é a palavra cênica. No dia-a-dia, existe uma integração entre o que pensamos, o que falamos e como agimos. Se eu tenho o impulso de gritar ‘socorro’, todo o meu corpo reage a isso. Como a arte é uma construção, precisa-se de treino para compor esses elementos tornando-os verossímeis para o espectador”, explica.

O foneticista Domingos Sávio Ferreira de Oliveira, em artigo que pretende contribuir para o estudo da voz falada no teatro, enaltece a força da palavra por trás de cada gesto corporal e vocal, na tentativa de despertar no espectador uma gama de sensações, crenças e reflexões. “O ator é um artista que joga e inventa com as palavras; precisa tirar de sua voz o que ela tem de melhor (matizes, nuanças, voracidade, suavidade) como um verdadeiro instrumentista que manipula com virtuosidade e agilidade o seu instrumento musical. É, assim, um compositor vocal”, compara.

Sabores – Theda Cabrera fez uma livre adaptação do romance de Clarice Lispector, montando o espetáculo Uma Aprendizagem de Sabores, que ficou três dias em cartaz no Barracão Teatro, em Campinas. O monólogo aborda a temática do amor de um ponto de vista feminino, enfatizando o aprendizado da alegria como uma via para o auto-conhecimento. A história se passa no Rio de Janeiro de 1969 e conta a trajetória da professora primária Loreley ao longo das quatro estações – verão, outono, inverno e primavera. Filha de família abastada que perde a fortuna, “Lóri” sai da cidade natal em busca de maior liberdade pessoal e se apaixona por Ulisses, professor de filosofia, que a conduz no aprendizado do amor e da alegria.

Para levar ao espectador o conceito abstrato de palavra cênica, Theda Cabrera, graduada pelo IA, teve a orientação da professora Verônica Fabrini de Almeida, coordenadora do Departamento de Artes Cênicas, e a co-orientação de Carlos Simioni, ator-pesquisador do Lume. Geralmente requisitada como modelo vivo em disciplinas de artes plásticas e de arquitetura, a atriz convidou professores e outros artistas a documentar o seu processo de pesquisa. “Nosso esforço foi o de criar uma história analisando as ações físicas que correspondiam aos estados de espírito propostos no livro. Clarice escreve sobre as pulsações de vida. Mais do que a palavra articulada, me interessou a vitalidade existente por trás da palavra. Por isso, embora seja um monólogo – portanto preenchido de falas –, há sempre a preocupação de aliar ao texto o movimento e a emoção”.

Pulsações de vida ou "trechos do espetáculo"

(Clarice Lispector)


“Então é verdade que eu não imaginei: eu existo!”

“Pode-se aprender tudo, inclusive a amar. E o mais estranho, é que se pode aprender a ter alegria. Uma das coisas que Ulisses aprendeu foi a viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive, muitas vezes é o apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que deu a Ulisses uma angústia que insatisfeita foi a criadora de sua própria vida. Foi o apesar de que fez com que Ulisses parasse na rua e ficasse me olhando enquanto eu esperava um táxi. E desde logo me desejando, esse corpo que nem sequer é bonito, ele me disse, mas que é o corpo que ele quer. Mas ele me quer inteira, com a alma também. Por isso, ele prometeu que vai esperar o tempo que for preciso, até que eu me aconselhe a mim mesma, até eu também estar mais pronta para ser”.

“Quando eu estiver mais pronta, caminharei de mim para os outros. O meu caminho são os outros. Quando eu puder sentir o outro a partir de mim mesma, estarei salva e compreenderei: eis o meu porto de chegada”.

“É como se eu fosse um tigre ferido com uma flecha fincada na carne. E tivesse rondado as pessoas medrosas para ver quem me tiraria a dor. E este homem, o meu homem, Ulisses, sentiu que um tigre ferido não é perigoso, e se aproximando, sem medo de tocar-me, retirou com cuidado a flecha fincada”.

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