As práticas amorosas entre mulheres são nocivas, perversas, doentias, e as lesbianas precisam de tratamento para que possam ter uma vida decente. Este discurso médico-legal permeou a sociedade brasileira pelo menos até a metade do século 20 e justificou a exclusão dessas mulheres da sociedade, sendo que muitas acabaram asiladas em manicômios. “São pessoas que viveram sob o estigma da perversão, de que o homo-erotismo é uma doença associada à criminalidade, em que se mata e morre por amor”, afirma a professora Nadia Nogueira, autora de tese de doutorado visando resgatar a discussão sobre o lesbianismo no Brasil.
Invenções de Si em Histórias de Amor: Lota Macedo Soares e Elizabeth Bishop é o título do trabalho que tem a orientação da professora doutora Luzia Margareth Rago e foi apresentado em dezembro, junto ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. “Na verdade usei o romance entre essas duas mulheres, que viveram juntas por quase 20 anos entre a serra de Petrópolis e o Rio de Janeiro, para alimentar a discussão sobre lesbianismo. Elas foram capazes de criar vínculos afetivos e sexuais fora dos espaços institucionais como a família e a maternidade. A escolha do título se deve ao fato de Lota e Bishop terem se reinventado com esta forte relação amorosa, a primeira construindo obras arquitetônicas e a segunda produzindo a maior parte de sua obra poética”, explica a historiadora.
Lota Macedo Soares veio de família da elite carioca. Dirigia um Jaguar, usava calça jeans e camisas. Não fez universidade, mas teve aulas com ilustres como o pintor Cândido Portinari e tornou-se uma esteta com conhecimentos profundos em arquitetura e urbanismo. Sua obra de maior visibilidade foi o Aterro do Flamengo, que lhe rendeu desavenças, sobretudo com o paisagista Roberto Burle Marx. Elizabeth Bishop é considerada a maior poetisa norte-americana do século 20. O melhor de sua produção se deu nos anos de reclusão com Lota Soares, na Casa da Samambaia em Petrópolis. Ali produziu Poems, que lhe valeu o prêmio Pulitzer (1956) e o reconhecimento internacional. Para Lota, ela escreveu Banho de Xampu, que reproduzimos nesta página.
“No Brasil, Bishop livrou-se de um passado negativo: era alcoólatra e tinha problemas com a falta de uma família. O pai morreu quando ela tinha oito meses e a mãe, que entrou em surto psicótico a partir disso, passou o resto da vida em clínicas psiquiátricas”, lembra Nadia Nogueira. A escritora chegou ao Brasil em novembro de 1951, fugindo de mais uma crise. Consultora de poesia na Biblioteca de Washington, mas julgando-se incapaz para o cargo, caiu em depressão e buscou refúgio numa colônia de escritores. “Quando bebia demais, ela mesma se internava. Achou que era hora de realizar o sonho de uma viagem de circunavegação pela América do Sul”, conta a historiadora.
A casa Pode-se dizer que o motivo inicial da permanência de Bishop no Brasil foi a ingestão de um caju, que lhe provocou uma crise alérgica, inchando e deformando suas mãos e rosto. A atenção dispensada pelos brasileiros a encantou, e mais ainda a declaração de amor que Lota lhe fez. Nadia Nogueira analisa na tese dois contos da escritora. “Na Aldeia (In The Village), como a própria escritora afirmou, ‘é absolutamente autobiográfico’. Tendo vivido com os avós maternos numa aldeia de pescadores, a paisagem de Petrópolis fez com que retomasse um olhar sobre sua própria infância. Por volta dos sete anos foi morar com os avós paternos, cercada de pessoas sisudas. No conto A Ratinha do Campo, escreve que se sentia ‘com o mesmo status do cachorro da casa’”, recorda a pesquisadora.
Lota Macedo Soares também sofreu com problemas familiares. Desgastada emocionalmente com a separação dos pais, resolveu morar sozinha aos 25 anos, o que já significou um pequeno escândalo na alta sociedade. Retornando de um período em Nova York, quis construir seu retiro no terreno da serra recebido como herança, no bairro de Samambaia, em Petrópolis. Com ajuda do arquiteto Sergio Bernardes projetou a casa de Samambaia, um marco da arquitetura brasileira moderna. “Nos sete anos que duraram as obras, Lota e Bishop viveram em condições inóspitas, sem água, sob a luz de lampião”, diz a historiadora.
O aterro Carlos Lacerda tornou-se governador da Guanabara no final de 1960. Em nome da amizade pessoal, Lacerda convidou Lota a realizar uma obra pública. Depois de semear idéias, ela levou o governador até a janela do apartamento onde ele morava, apontando resoluta: “Quero isto”. Na área onde era riscado o asfalto para desafogar o trânsito do Centro com a Zona Sul, Lota quis erguer o maior parque da cidade. “Começou então o tumultuado processo de construção do Aterro do Flamengo, encabeçado por uma mulher sem diploma universitário, e que impressão de seus contemporâneos assumiu o cargo apenas por sua amizade com o governador. A briga, pública e notória, seria com Burle Marx, responsável pelo paisagismo”, afirma Nadia Nogueira.
Para aterrar a área, o morro de Santo Antonio foi desmanchado a jatos d’água. Para criar a praia do Botafogo, retirou-se areia do fundo do mar, com a mesma draga que abriu o Canal do Panamá. “Tudo aquilo foi concebido por Lota. Ela também enfrentou Burle Marx para manter a iluminação com postes de 45 metros de altura, permitindo passeios noturnos no parque. Outra sugestão de Lota foi a grande quantidade de quadras de esportes, que hoje são alugadas em todos os dias do ano, inclusive de madrugada, quando ficam tomadas por times de porteiros de edifícios e taxistas”, acrescenta.
O trágico Com a derrota do candidato de Carlos Lacerda em 1965, Lota foi retirada do comando dos trabalhos, o que resultou em três meses de internação para sonoterapia. Ela enfrentou ainda uma campanha de difamação incentivada por Burle Marx, que a acusava de prepotência nas decisões. Quanto à relação com Elizabeth Bishop, houve um desgaste inevitável devido aos cinco anos de obras no Parque, com Lota trabalhando de 12 a 14 horas por dia. Relegada, a poetisa voltara ao álcool e não mais produzia, acabando por aceitar um convite para dar um curso em Seattle.
Quando voltou em meados de 1966, Bishop já tinha outra companheira, bem mais jovem. Preterida, Lota tornou-se neurótica e transferiu a obsessão pelo trabalho para a ex-companheira, que saiu de cena a pedido dos médicos. Em setembro de 1967, Elizabeth Bishop recebeu em Nova York a visita de uma mulher totalmente fragilizada, física e mentalmente. “Não era aquela Lota que esperava reencontrar”, escreveu. Na mesma noite da chegada, Lota tomou um vidro de Valium. Depois de uma semana de coma, seu coração parou. Afinal, morreu por amor?
Códigos e pontos de encontro das lesbianas nos anos 50 e 60
Entre dezembro de 2003 e junho de 2004, Nadia Nogueira entrevistou cerca de vinte mulheres que se dispuseram a falar sobre suas práticas afetivas e sexuais com outras mulheres no Rio de Janeiro dos anos 50 e 60. “Não foi tarefa fácil convencer senhoras de mais de 60 anos a comentar o passado, mas tive a sorte de encontrar seis delas no mesmo lugar, o restaurante Alcazar, onde se realizava uma festa de aniversário”, admite. Com acesso liberado a um mundo muito particular, a pesquisadora pôde marcar novas entrevistas para conhecer os códigos e mapear os pontos de encontro de mulheres na época.
“Na década de 50 esses espaços eram quase inexistentes, pois a lesbiana tinha horror de ser identificada como ‘mulher-homem’, sob pena de internação em manicômio. De qualquer forma, a bossa nova já abria locais de convivência para um grupo eclético, de prostitutas a cantoras da noite”, conta a professora. Os primeiros bares, restaurantes e boates freqüentados abertamente por lesbianas surgem na década de 60, anos de transgressão. “Havia o El Jerez, o Bistrô, a boate do Hotel Vogue, e o Alcazar, que ainda está na avenida Atlântica”, acrescenta.
A respeito dos códigos, Nadia Nogueira observa que as lesbianas tinham apenas a norma heterossexual como referência. “Muitas me disseram que não sabiam como namorar outra mulher. Imaginavam que deviam se comportar como um homem. Daí que as lesbianas de classe social mais baixa se masculinizavam, usando o próprio corpo para conquistar o espaço público, não tinham outros meios de romper com o discurso dominante”, afirma.
As lesbianas da elite, por outro lado, mantinham-se reservadas, preferindo organizar festas particulares. “Ser não significa parecer”, era a expressão que usavam. “Detectei somente dois lugares que se encontram no embricamento entre o público e o privado: o Bar da Fernanda, na Tijuca, e o Clube das 12, em Jacarepaguá, onde em certas ocasiões um terno era mais elegante. Ainda que de terno, elas não se achavam masculinas, mas ‘exóticas’, livrando-se do estigma”, comenta.