O interior do estado de São Paulo, mais especificamente a Região Metropolitana de Campinas (RMC), é um dos grandes pólos de concentração de riqueza e desenvolvimento do País. Mas cidades dessa rica região apresentam bolsões de pobreza em que se desenvolvem ainda determinadas patologias características de países subdesenvolvidos. É o caso da shiguelose ou disenteria bacilar, provocada pela bactéria Shigella, enfermidade endêmica que anualmente acomete 163 milhões de pessoas no mundo, levando à morte cerca de um milhão delas, verificando-se 70% dos casos em crianças de um a cinco anos. Devido à ausência de notificação compulsória, não existem dados da incidência da doença no Brasil, mas não é difícil imaginar sua extensão em regiões de muito menos recursos e que não contam com assistência médica regular.
O professor Mario Paulo Amante Penatti, da Universidade Federal de Uberlândia, realizou pesquisas envolvendo a caracterização biológica e molecular de amostras de Shigella isoladas na região de Campinas, que deram origem à tese de doutorado apresentada ao Departamento de Microbiologia e Imunologia do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, orientada pelo professor Wanderley Dias da Silveira.
Penatti utilizou amostras de Shigella isoladas em diferentes surtos ocorridos, do fim da década de 80 até 2000, nos municípios de Campinas, Bragança Paulista, Cosmópolis, Itapira, Jundiaí, Limeira, Mogi Guaçu, Vinhedo e São João da Boa Vista. As amostras pertenciam à coleção do Instituto Adolfo Lutz de Campinas. A transmissão fecal-oral se dá através das mãos ou de alimentos ou água contaminados e decorre da falta de saneamento básico como esgoto não-recolhido, água não-tratada e das condições higiênicas precárias das populações contaminadas. A pesquisa mostra que a contaminação é facilitada devido à grande mobilidade das populações das macro-regiões que se dirigem às cidades mencionadas para estudar e trabalhar e que depois voltam às suas casas nos municípios de origem.
Segundo Penatti, o quadro levantado deve alertar as autoridades sobre uma patologia que há muito deveria ter sido erradicada de regiões consideradas desenvolvidas: “As decisões sobre saúde pública e saúde coletiva devem conduzir à melhora do saneamento básico”.
Os estudos mostraram também que a aplicação indiscriminada de antimicrobianos, sem um exame prévio que determine o tipo de bactéria presente no organismo da criança doente o que possibilitaria a aplicação de medicação compatível leva a multi-resistência das bactérias e à necessidade de utilização de drogas cada vez mais potentes para debelar a infecção provocada pela Shigella e responsável pela disenteria bacilar.
O autor do trabalho diz que pretendeu despertar a atenção das autoridades sobre uma bactéria extremamente perigosa e que invade as células epiteliais intestinais, conforme previsto na literatura, e que pode causar a morte de crianças e imunodeprimidos. Em crianças, a infecção é severa e revela-se através de alguns sintomas como febre, distúrbios neurológicos (convulsões), diarréia com muco, sangue e pus. Pode levar também à chamada síndrome erêmica hemolítica, que é o comprometimento do aparelho renal. Ele ressalva que em adultos, na maioria das vezes, a Shigella faz interação autolimitada com o hospedeiro e o próprio organismo se encarrega de debelar a infecção.
Penatti acha que as populações devem exigir dos governantes condições dignas de vida, com água e esgotos tratados e controle sobre a salubridade do meio em que vivem. Mas entende que o mais importante é a população exercer o controle sobre o que as autoridades municipais, estaduais e federais deveriam fazer para garantir o bem estar coletivo. Para tanto, diz ele, a população deve estar consciente “e aí cabe a nós oferecermos subsídios para que ela se conscientize, de forma que possa cobrar seus direitos, cumprindo naturalmente seus deveres. Para que isso ocorra, precisamos de programas de elucidação, de conhecimento, de informação. Talvez fosse o caso de utilizar agentes de saúde do próprio Programa de Saúde da Família (PSF) para executar esse papel, implantado recentemente pelas autoridades governamentais”.
O trabalho ateve-se ao estudo das características biológicas sorotipagem, perfil de resistência a antimicrobianos, adesão e invasão, análise do perfil de DNA plasmidial de diferentes amostras de Shigella spp, relacionando-as através de técnicas de biologia molecular, o que permitiu determinar-lhes a clonalidade epidemiológica.