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Ao contrário dos teólogos, cuja aventura intelectual tem como base a verdade revelada por Deus, o filósofo não possui um apoio sólido quando pesquisa. Deste modo, apenas os capazes de suportar a solidão, iniciando novos modos de ver, podem ser dignos filósofos, amigos da sabedoria. Os outros, bem, os outros, constituem a grande massa dos ideólogos (na cortante descrição de Jean Paul Sartre), ou dos ideósofos, na feliz invectiva de Maritain. A história da filosofia exibe a crônica de poucos nomes, todos eles em luta contra o saber estabelecido, abrindo sendas difíceis no mundo noético. Eles produzem o alimento que nutre a legião dos parasitas espirituais aboletados nas cátedras, imersos nas quadrilhas acadêmicas, no Estado ou nas Igrejas. Todos, com suas certezas, fórmulas torturadas e extraídas dos pensamentos realmente especulativos, estão sempre a um passo de se tornarem os censores do espírito, guardiões de uma ortodoxia (grande ou pequena), queimadores de livros. Na tarefa de impor seu modo filistino de vida, semelhante malta usa todos os recursos pouco nobres, entre eles o de bajular colegas ou estudantes, enodoando a existência dos que não se conformam com os dogmas das capelas universitárias. Gérard Lebrun foi um filósofo. Lendo-se todos os seus escritos, nenhuma frase é encontrada onde possa aninhar-se à intimidade do pensador por ele discutido. Em A Paciência do Conceito, livro em que procura demonstrar as dificuldades trazidas pelo juízo sobre o suposto dogmatismo de Hegel, Lebrun foge das respostas imediatistas, como os patéticos ensaios de Jacques D Hondt. Este último, para rebater as críticas à legenda sobre Hegel (ideólogo do Estado prussiano...) gasta livros e livros repetindo que o pensador seria um jacobino disfarçado... Nada disto em Lebrun. As análises sobre o dogmatismo hegeliano, nele, nunca descem para os ataques ou desculpas subjetivas. O mesmo ocorre no caso de Kant e o fim da metafísica. A vida de Kant é prato cheio para todas as hienas acadêmicas ou para os piedosos apologetas. Lebrun discute, sine ira et studio, o pensamento estético de Kant, com as conseqüentes mudanças que produziu na política e na história. Nessas duas obras- primas de hermenêutica filosófica, Lebrun pergunta, demonstra, sugere, mas sobretudo conversa com os leitores e com os autores originais. Esta marca de seu estilo surge de modo mais evidente nas aulas, conferências, seminários de que participou. Seu método, poder-se-ia dizer, é efetivamente dialético. Nunca aceitou verdades estabelecidas, mas também jamais os adversários. Em certos escritos, como os reunidos em Passeios ao Léu, a sua mente polifacetada e crítica mostra-se em plenitude. Tendo sido um dos que mereceram sua análise, sobre um livro explosivo que tratava das relações entre Igreja e Estado, pude constatar que Lebrun ia direto às fraquezas e forças de seus autores. Ele notou, no meu caso, algo que a maioria dos pares e inimigos sequer suspeitavam, a inspiração mais próxima de Nietzsche do que da vulgatas ortodoxas, na interpretação dos discursos religiosos. Alguns de seus textos merecem reedição crítica, até mesmo no plano gráfico. O livrinho sobre Pascal, um dos escritos mais agudos e inteligentes sobre o solitário de Port-Royal, foi publicado com lamentáveis erros tipográficos. Tive a sorte de receber, do próprio Lebrun, um exemplar corrigido. Em algumas páginas, o azul da tinta corretiva suplanta as letras de imprensa. A maior característica de Gérard Lebrun foi a generosidade, algo raro no mundo acadêmico. Esta marca determinou sua presença na universidade brasileira, no instante em que um cordão de isolamento foi definido, como sempre à socapa, pela "comunidade" internacional de intelectuais. A partir das cassações de professores, pela ditadura, permaneceram na USP docentes que lutavam para preservar a universidade como espaço de pensamento e de oposição crítica. Informados de modo tortuoso, não raro pelas forças ditas "socialistas", os intelectuais europeus assumiram como "fato" a suposta adesão generalizada à ditadura dos que não foram cassados. Foi preciso a presença de Jean Pierre Vernant (homem de esquerda, respeitado ética e cientificamente em termos mundiais) no Departamento de Filosofia da USP, para que o cordão estulto de isolamento começasse a ser rompido. Gérard Lebrun jamais aderiu à pequenez de juízo exibida pela comunidade intelectual européia no fim dos anos 60 em relação à universidade no Brasil. Continuou sua colaboração com o Departamento de Filosofia, assegurando-lhe o peso acadêmico de seu nome. Não aceitando os pressupostos do pensamento de esquerda, ele soube ser solidário na luta silenciosa e trágica que visava manter em nossa terra o digno espírito da pesquisa livre. Só isto deveria garantir o respeito e a gratidão dos seus pares brasileiros. Mas a maior parte deles vive para o instante, tentando apagar da memória coletiva tudo e todos que fogem à lógica das capelas. Com isto, sapam os fundamentos sólidos de sua própria existência e respeitabilidade social ou ética. Eles visam apenas à expansão do próprio nome. Assim, cabe-lhes perfeitamente o dito célebre de Alexandre Kojève sobre o hegeliano "reino animal do espírito": "eles são os ladrões roubados". Ao contrário daqueles pequenos espíritos, com autonomia de pensamento, exibindo uma coragem teórica como poucos no século 20, Lebrun ajudou a ampliar as técnicas de análise filosófica, na França e no Brasil. Com o seu desaparecimento físico, fica o legado maior deste irriquieto dialético, a sua confiança no pensamento, a sua permanente denúncia dos fanatismos, o seu decoroso respeito, sobretudo na imprensa, pelos semelhantes. O que mais chocou a consciência moral dos leitores, por ocasião de sua morte, foi o tremendo filistinismo de alguns colegas brasileiros, algo que foi além da figura pequena que habitualmente exibem os oligarcas do mundo espiritual brasileiro. Estes, para nossa vergonha, ignoraram na ocasião, frontalmente, o trabalho de Lebrun, entrando de modo sórdido na sua existência íntima, sob pretexto de amizade. Isto foi indigno dos que assim agiram, dos leitores e, sobretudo, da filosofia. A Unicamp, que muito se beneficiou com o desvelo daquele pensador, poderia lhe prestar uma homenagem, por exemplo, um seminário sobre os seus livros. A única exigência é que os participantes falem de suas idéias, de permanente interesse no campo teórico, não de sua alcova. Roberto Romano é professor titular de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. |
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