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Jornal da Unicamp - Fevereiro de 2000
Página 8
Entrevista
Frágil argumento
Livro de professor da Unicamp critica a teoria da repressão financeira
A
liberalização dos sistemas financeiros é ou não uma boa receita para o desenvolvimento
das economias latino-americanas? A resposta é dada de forma extensiva pelo professor
Marcos Antonio Macedo Cintra, em seu livro Uma Visão Crítica da Teoria da Repressão
Financeira (Editora da Unicamp, 1999). A obra é uma reflexão sobre o papel das
instituições e dos mercados financeiros no processo de acumulação de capital e no
crescimento econômico. Procura, ainda, desvendar a fragilidade do argumento central da
"teoria da repressão financeira", que apregoa a liberalização dos mercados
como forma de promover o desenvolvimento econômico e social dos países
latino-americanos. Cintra, doutor em Economia pela Unicamp, é técnico da Fundação do
Desenvolvimento Administrativo do Estado de São Paulo (Fundap), onde desenvolve pesquisas
em economia monetária e financeira.
Jornal da Unicamp O que é a "Teoria da Repressão
Financeira"?
Marcos Cintra Essa teoria nasceu na década de 70 e suas raízes
estão no pensamento liberal norte-americano. Ela tenta racionalizar o subdesenvolvimento
dos países latino-americanos. Por repressão financeira entenda-se a ação do Estado,
impedindo o livre funcionamento do mercado financeiro. A intervenção estatal
estabelecendo limites às taxas de juros, que se tornavam negativas diante das elevadas
taxas de inflação, direcionando o crédito público e privado para alguns setores
considerados prioritários e estabelecendo controles sobre os fluxos de capitais externos
reprimiria os sistemas financeiros latino-americanos, dificultando seu
aprofundamento.
JU Qual seria a prescrição de política econômica sugerida por
essa corrente para solucionar o subdesenvolvimento?
Marcos Cintra Seria necessário retirar o Estado do mercado
financeiro e elevar as taxas de juros sobre os depósitos bancários, estimulando a
poupança privada, que por sua vez ampliaria as oportunidades de investimento. O patamar
da produção e do emprego tenderia a se elevar com a eliminação da restrição
financeira à acumulação interna de capitais.
JU Nesta linha de raciocínio, a "desrepressão"
financeira seria a política econômica mais indicada?
Marcos Cintra Segundo esta teoria, sim. O mercado financeiro
reprimido seria a fonte do subdesenvolvimento latino-americano. Quando liberalizado,
porém, se tornaria o instrumento a "mão invisível" que
impulsionaria o investimento, promovendo a adoção dos melhores sistemas tecnológicos e
os recursos financeiros necessários. O sistema financeiro desregulamentado, captando e
emprestando livremente, com taxas de juros reais positivas e sem intervenção estatal,
possibilitaria a retomada do desenvolvimento e do crescimento na América Latina.
JU O senhor concorda com esses argumentos?
Marcos Cintra Meu livro demonstra a fragilidade do argumento
central da "teoria da repressão financeira". Contra-argumentei em dois
âmbitos, no teórico e no histórico. No teórico, a partir do pensamento de Keynes
(1936) e da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal). Procurei mostrar
que taxas de juros elevadas e políticas financeiras liberalizantes não provocam aumento
de poupança, muito menos do investimento. No histórico, analisei os processos de
liberalização financeira, interna e externa, dos países do Cone Sul (Argentina, Chile e
Uruguai), entre 1974 e 1982, os primeiros a adotarem esse modelo.
JU Deste ponto de vista, a fragilidade dos sistemas financeiros
latino-americanos não se relacionaria diretamente com a repressão, mas com a
instabilidade?
Marcos Cintra Correto, o insuficiente desenvolvimento dos sistemas
financeiros latino-americanos não deriva estritamente da "repressão", mas da
elevada instabilidade, da incerteza e da falta de confiança dos poupadores e
investidores. A desregulamentação, elevando a taxa de juros, pode ampliar a
"poupança financeira", mas essa poupança fica concentrada nos bancos em
aplicações/transações de curto prazo. Os recursos financeiros não são canalizados
para o investimento produtivo. Ficam circulando numa órbita financeira, sob a forma de
fundos de curto prazo (poupador) e títulos da dívida pública e privada (investidores).
A compreensão keynesiana da dinâmica financeira permite-nos afirmar que os problemas do
subdesenvolvimento decorrem da ausência de mecanismo de financiamento bem como das
dificuldades de canalizar esses recursos para projetos de investimento, e não de simples
equívocos nas políticas públicas, como afirmam os teóricos da repressão financeira.
JU Como essa discussão pode ajudar a compreender as dificuldades
do desenvolvimento latino-americano atual e, em particular, o brasileiro?
Marcos Cintra No final da década de 90, todos os países
latino-americanos estavam enfrentando graves crises econômicas, exceto o México, que se
associou aos Estados Unidos. Mais uma vez, historicamente, demonstrou-se que os programas
de desregulamentação interna e liberalização dos fluxos de capitais externos não
ampliaram a base de financiamento interno de longo prazo das economias latino-americanas.
O aumento da participação dos bancos estrangeiros nos mercados internos promoveu um
aperfeiçoamento técnico e uma maior concorrência nos segmentos de varejo, mas não
possibilitou um alongamento dos prazos nas suas transações domésticas. O acesso dos
investidores estrangeiros às bolsas de valores, uma vez que os mercados permaneceram
concentrados em poucas empresas recém-privatizadas, também teve impacto pouco
significativo no financiamento produtivo. A ampliação das oportunidades de captação de
recursos no exterior resultou em um enorme passivo externo, que está gerando e ainda vai
gerar um volume formidável de compromissos ao longo dos próximos anos, consolidando uma
dependência sem precedentes do financiamento em moeda estrangeira. Assim, a
estruturação de um sistema financeiro que atenda às necessidades de financiamento de
longo prazo permanece como o maior desafio na área financeira da América Latina.
Entretanto, suas perspectivas ainda continuam remotas.
JU Por quê?
Marcos Cintra Vou ater-me ao Brasil. O acordo do governo
brasileiro com o Fundo Monetário Internacional ratificou uma decisão de política
econômica que vai ampliar a liberalização cambial e dos mercados financeiros privados.
Desde março de 1999, após a desvalorização da moeda brasileira, o presidente do Banco
Central e sua equipe vem procurando implementar mais desregulamentação do sistema
financeiro doméstico redução dos mecanismos de direcionamento compulsório de
crédito e das restrições para determinadas operações e maior integração com
o mercado financeiro internacional, mediante um aperfeiçoamento das regras de supervisão
financeira, dos mecanismos de administração de risco das próprias instituições e das
exigências de capitais mínimos (Acordo de Basiléia). Além disso, o Banco Central
anunciou que pretende instituir a livre conversibilidade do real a possibilidade de
trocar moeda nacional por estrangeira sem restrições no primeiro semestre deste
ano. Atualmente, as pessoas físicas somente podem comprar sem identificação até US$ 10
mil em moeda estrangeira e parte da remessa de moeda estrangeira para o exterior deve ser
realizada pela chamada CC-5 (criada originalmente para transações de investidores não
residentes no país). Pelas novas regras, não haveria limites para a compra de moeda
estrangeira pelas pessoas físicas e a remessa de moeda estrangeira para o exterior
ficaria livre, mas terá de ser declarada no Imposto de Renda. As contas em moeda
estrangeira no país seriam permitidas apenas para alguns setores específicos, como
petróleo e energia. Com essas medidas, o Banco Central pretende ampliar a liberalização
dos movimentos de capitais, desregulamentando o mercado de câmbio, oferecendo maiores
facilidades e garantias para as remessas de rendimentos para o exterior, exatamente o
contrário do que seria desejado.
JU Evidentemente, não há soluções mágicas, mas como seu livro
poderia estimular o debate em direção à montagem de um sistema financeiro voltado ao
desenvolvimento econômico e social da América Latina?
Marcos Cintra Entre as conclusões do livro, duas poderiam
estimular esse debate. Em primeiro lugar, defendo que uma parte crescente do financiamento
de longo prazo deveria ser gerada internamente, para diminuir o grau de endividamento
externo das economias latino-americanas. Em segundo, as experiências analisadas parecem
ensinar que o desenvolvimento financeiro está longe de ser automático e a dinâmica do
mercado não cobre as demandas financeiras impostas pelas necessidades do desenvolvimento
econômico e social. Isso não significa a necessidade de ressuscitar os antigos modelos
de financiamento desenvolvimentistas, mas é imprescindível que os Estados
latino-americanos cumpram suas tarefas de maneira inovadora, uma vez que não é factível
esperar que o setor financeiro privado (interno e externo) seja capaz de desempenhar
sozinho o papel das agências de fomento ágeis e bem-estruturadas. (A.R.F.) |