Política de C&T:
um ano que promete...
RENATO
DAGNINO
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Renato Dagnino é professor do Departamento
de Política Científica e Tecnológica
da Unicamp |
Neste início de ano tem sido
marcado pela discussão que se instaurou após
a última reunião do Conselho Nacional
de C&T entre oposicionistas e governistas sobre
questões que vão do contingenciamento
dos Fundos Setoriais, passando pelo montante de recursos
aplicados em 2003 e em 2002 e a ausência ou
presença de autoridades, até à
competência das equipes atual e passada do MCT.
Alguns participantes da comunidade
científica devem tê-la acompanhado agradavelmente
surpresos: ao contrário do que ocorre em outras
áreas de política pública que
ao longo do último ano sofreram radical transformação,
ela ainda se dá no campo que lhes interessa,
centrando-se na agenda de um passado que não
gostariam que fosse alterado. Outros estão
preocupados: essa discussão, e o debate posterior
em que intervieram pesquisadores ligados ao MCT e
à SBPC, possui escassa sintonia com a agenda
proposta pela esquerda em nível mundial acerca
das relações entre C&T e sociedade.
Esta contribuição
destaca três direções de crítica
da esquerda contemporânea ao pensamento hegemônico
de direita sobre essas relações. Não
é difícil extrair deles uma agenda para
que o debate nacional possa alastrar-se neste ano
que se inicia rumo a questões substantivas
e de longo prazo.
Ao criticar o uso do conhecimento pelas elites para
viabilizar a exploração da classe trabalhadora,
por um lado, e a incapacidade do socialismo real para
gerar uma C&T coerente com o interesse dos trabalhadores
e com o estilo de desenvolvimento sustentável
que desejam, por outro, a esquerda tem revisitado
a análise da história da C&T contada
por pensadores do capitalismo. E o tem feito partindo
da incidência da C&T sobre sua contradição
central, a relação capital-trabalho.
Ou, mais especificamente, da forma como o capital
as usa crescentemente para viabilizar sua reprodução
ampliada tirando partido da característica
singular da mercadoria força de trabalho: o
fato dela poder ser trocada por um não-equivalente
em termos de tempo de trabalho socialmente necessário.
Antes de Marx, outros pensadores
já haviam mostrado que o preço das mercadorias
era uma manifestação social do tempo
de trabalho nelas incorporado na esfera da produção
(o qual regulava a troca de equivalentes em valor),
e não um suposto equilíbrio entre oferta
e demanda logrado através do mercado.
Marx avança evidenciando que esse tempo de
trabalho que determina o valor das mercadorias, entendido
este como uma construção social, é
dividido em três partes; que correspondem às
matérias-primas e depreciação
das máquinas, ao lucro do capitalista, e ao
salário que ele paga ao trabalhador pela mercadoria
força de trabalho. Origem, vale ressaltar,
da acumulação capitalista.
Marx mostra também que esse
lucro mais valia, para ser exato pode
ser aumentado continuamente pelo capitalista através
do emprego de novas tecnologias máquinas,
equipamentos, métodos de gestão da mão-de-obra
etc - que diminuam a terceira parte, correspondente
ao tempo que o trabalhador gasta para produzir as
mercadorias em sua empresa. Ou, então, pela
ação de outras tecnologias, em outras
empresas, que permitam a produção das
matérias-primas ou dos bens que consomem os
trabalhadores num tempo menor.
Ou seja, que o desenvolvimento de
tecnologias que permitam reduzir a parte do valor
da mercadoria efetivamente pago ao trabalhador pelos
capitalistas - donos dos meios de produção
, e maximizar o que Marx chama de mais valia
relativa, é o motor da acumulação
do capital e a condição de manutenção
da exploração da classe trabalhadora.
Marx foi além ao mostrar
como a pesquisa científica passava a incorporar-se
à lógica capitalista ao proporcionar
conhecimentos apropriados para aumentar o controle
do capitalista sobre o processo de trabalho, cada
vez mais parcelizado, alienante (dissociador do trabalho
intelectual do braçal), hierarquizado, heterogestionário.
O caráter de construção social
da C&T é também evidenciado quando
ele aponta como, em dezenas de processos de inovação
que então estavam ocorrendo, alternativas de
igual eficiência técnica eram escolhidas
em função da facilidade com que o capitalista
ou gerente podia diminuir o preço da força
de trabalho. Quer através do controle sobre
o processo de trabalho em sua empresa, aumentando
o tempo de trabalho não pago ou a produtividade
do trabalho, quer diminuindo o número de trabalhadores
necessário para a produção e,
desta forma, ao reduzir-se a oferta de empregos, abaixando
o salário real.
A direita evitou o questionamento
do marxismo apoiando-se no velho mito iluminista -
da neutralidade da ciência que a idealiza
como resultado intrinsecamente verdadeiro, e cada
vez melhor, da relação (individual)
de um Homem curioso com uma Natureza perfeita. Dessa
forma, tem logrado mascarar o caráter de construção
social do conhecimento que, sob a égide do
capitalismo, se verifica em benefício de seu
objetivo de dominação. Um outro mito,
positivista, do determinismo, que confere ao desenvolvimento
tecnológico atributos de endogenia, lineariade
e inexorabilidade que assegurariam eficiência
crescente e a serviço de todos, tem sido usado
para compor no plano ideológico super-estrutural
o suporte para a manutenção das relações
sociais e materiais que, no plano da infra-estrutura
técnico-econômico, garantem a exploração
capitalista.
A esquerda contemporânea,
criticando o novo fetiche unificador a inovação
que a direita ideou para tentar convencer a
sociedade que ela só poderá evoluir
caso incorpore celeremente este fruto desses dois
processos quase supra-humanos, tem atuado em três
direções complementares.
Primeiro, argumentando de modo radical
que o estilo de desenvolvimento alternativo que defende
não pode ser construído tendo por base
o conhecimento, aparentemente neutro e progressista,
mas intrinsecamente excludente e predatório
engendrado por um sistema que só logra manter-se
às custas de violência crescente. Que,
tal como mostrou o socialismo soviético (forçado
a recriar o controle autoritário que a tecnologia
capitalista no qual se fundou exigia, e por esta via
engendrar a degenerescência burocrática),
não basta a mera apropriação
pela classe trabalhadora, e em seu benefício,
do conhecimento que maximiza a mais-valia. Isto é,
que a transformação que ela anseia demanda
a concepção de um conhecimento alternativo
ao existente, por mais difícil e utópico
que isso seja.
Segundo, resignando-se, dialética
e realisticamente, a não jogar a criança
com a água do banho, mostrando como a
adoção de agendas de pesquisa científica
e desenvolvimento tecnológico que internalizem
valores ético-sociais (e sua contrapartida
técnica) coerentes com um estilo alternativo
de desenvolvimento podem levar à concepção
de um outro tipo de conhecimento. Consciente de que
essa reorientação da trajetória
da C&T, embora seja um desafio histórico
sem precedentes, é indispensável para
seu projeto político, a esquerda tem substituído
as receitas totalizadoras, ingênuas e voluntaristas
do passado pela proposição de estratégias
de pesquisa e docência ancoradas nos interesses
dos movimentos sociais que alavanquem processos de
adequação sócio-técnica
coerentes com esse estilo alternativo.
Terceiro, mostrando que a crescente
subordinação da dinâmica de exploração
da fronteira do conhecimento científico-tecnológico
ao interesse das empresas transnacionais não
produz apenas trabalhadores desempregados e pesquisadores
obcecados por uma qualidade enganosa.
Que também empresários pequenos e médios
vêem-se cada vez mais debilitados frente a uma
situação como a atual em que as dez
transnacionais que mais realizam pesquisa gastem mais
do que a Inglaterra e a França juntas.
Ao apontar essas tendências
vigentes na cena internacional, a esquerda contemporânea
tem mostrado o alto grau de convergência política
possível entre esses três atores diretamente
envolvidos com a C&T. Grau este que se torna potencialmente
muito maior em se tratando de países periféricos
como o nosso.
Mas essa crítica ao pensamento formulado pela
direita não alcançou ainda a cena brasileira.
Pelo contrário, tem ecoado aqui, ampliada,
a proposição do neoliberalismo - aparentemente
neutra, mas de fato ideologizada e contrária
os interesses desses três atores e da sociedade
- sobre a importância da inovação
para a competitividade das empresas e
para o progresso dos países num
mundo globalizado.
Por isso, esse pensamento permanece
hegemônico na condução do esforço
nacional de pesquisa e formação de recursos
humanos, mantendo-a infensa à crítica
política da esquerda; como se esta área
de intervenção do estado não
estivesse estado como outras a serviço do projeto
neoliberal.
A existência desse pensamento
tem dificultado também a construção
no âmbito da esquerda de um marco analítico-conceitual
alternativo capaz de integrar a questão do
desenvolvimento científico e tecnológico
na sua proposta global de transformação
sócio-econômica e cultural, e a concepção
de um estilo de Política de C&T com ela
coerente. Como resultado, nas instâncias de
governo que vem logrando conquistar, a esquerda não
tem sido capaz de implementar ações
na área de C&T à altura das demandas
tecnológicas que aquela proposta contém.
Não tem sequer logrado politizar o tema, acompanhando
o movimento protagonizado pela esquerda contemporânea,
no âmbito do aparato do estado e da sociedade,
e dos professores, pesquisadores e gestores que conformam
nosso complexo público do ensino superior e
da pesquisa. Nem mesmo tem conseguido contrapor-se
à ofensiva da direita para seguir implementando
seu projeto político ma área de C&T.
A absoluta precedência desse
processo de politização do tema em relação
à elaboração de um marco analítico-conceitual
adequado necessário para conceber uma política
de C&T de esquerda, tem sido crescentemente percebida
por setores que, entendendo-o como uma prioridade,
o tem colocado em marcha.
A ampliação dessa politização
da C&T no âmbito nacional, supõe
a utilização pela esquerda dos instrumentos,
inclusive institucionais, de que dispõe para
envolver comunidade de pesquisa, gestores públicos,
empresários e ONGs, juntamente com a sociedade
e seus movimentos sociais organizados, na construção
de uma Política de C&T de esquerda. Uma
política que, levando em conta os diferentes
atores e correntes de opinião que compõem
o pacto que lidera, privilegie o interesse daqueles
que estrategicamente representa, os trabalhadores.