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Rivalidade nas 4 linhas
(e fora delas)
As origens da disputa entre Brasil
e Argentina no futebol e em outros campos, segundo
um professor da UBA
LUIZ
SUGIMOTO
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Briga entre jogadores do São Paulo e do
River Plate, em partida realizada no Morumbi,
no final do ano passado: rivalidade histórica |
É um sentimento visceral
e recíproco. A rivalidade entre Brasil e Argentina,
que a partir do futebol contaminou os demais esportes
e, inconvenientemente, é lembrada mesmo durante
negociações políticas e comerciais,
enriquece as pesquisas de Pablo Alabarces, professor
da Universidade de Buenos Aires e torcedor do Vélez
Sarsfield. Dentro do convênio de cátedras
firmado com a UBA, o professor passou quatro meses
na Unicamp oferecendo a disciplina Letrados
e iletrados na cultura argentina, no Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH).
Pablo Alabarces vem se ocupando
do futebol há dez anos, desde que obteve o
doutorado em sociologia do esporte na Inglaterra.
Em fins dos anos 1990, foi convidado pelo Conselho
Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso)
a coordenar o grupo de trabalho Esporte e sociedade,
que pretende localizar e interligar estudos dispersos
pelos países, estreitando laços especialmente
com os brasileiros. Apesar de o futebol ser
um marco da cultura popular na América Latina,
a produção sobre o tema era bastante
escassa, mesmo na Argentina e Brasil, onde os trabalhos
praticamente se limitavam a Eduardo Archetti e Roberto
da Matta, recorda.
Alabarces afirma que o esporte já
é um campo reconhecido dentro das ciências
sociais, oferecendo um foco diferenciado para ler
questões de grande dimensão social,
como violência, exclusão, identidade
e nacionalismo. Em seu último livro, Futebol
e pátria, o sociólogo trata das relações
entre futebol e nacionalismo na Argentina, com base
no que chama de narrativa da nação
e de narrativa da nação no futebol.
No Brasil, acho coerente que Gilberto Freyre,
criador do mito das três raças, assine
o prólogo de O negro no futebol brasileiro,
de Mário Filho. O primeiro autor aborda a questão
étnica de uma nação, e outro
faz o mesmo por meio do futebol, compara.
Porquê do ódio
Na visão de Alabarces, a rivalidade
entre Brasil e Argentina, na realidade, não
possui raízes em nenhum dos dois países.
Lembra que o grande inimigo comum era o Uruguai, que
atingiu seu clímax no famoso Maracanaço,
ao virar para 2 a 1 o placar da final da Copa de 1950,
fazendo chorar os fanáticos do santuário
do futebol brasileiro. Depois, houve nova virada.
O Brasil iniciou um ciclo maravilhoso e conquistou
três títulos mundiais de 1958 a 1970.
A Argentina, ao contrário, foi eliminada de
forma catastrófica em 58 6 a 1 para
os tchecos , caiu também na primeira
fase em 62, e nem se classificou para a Copa de 70.
Naquele mesmo momento surgia Pelé no Brasil
e, na Argentina, ninguém, observa.
No campo econômico, outra coincidência
do período. Temos o milagre
brasileiro e o início do declínio argentino
enquanto potência industrial depois do peronismo.
A longa tradição que vinha do século
19, do argentino vendo-se como europeu, soberbo, pedante,
e que se referia aos brasileiros como macaquitos,
começou a ser discutida em termos de êxitos
e fracassos. Houve um pico de êxitos brasileiros
e um pico de fracassos argentinos. Diante de tanta
carga de significação, ninguém
deve se surpreender que tenhamos caminhado para isso.
Assim se produziu esta exasperação da
rivalidade, conclui o pesquisador.
Ópio do povo
Aquele também foi um tempo de ditaduras, em
que a esquerda atribuía aos militares o uso
político do futebol como ópio
do povo. Segundo Alabarces, esta hipótese
tem sido eficazmente combatida pelas ciências
sociais nos últimos 20 anos. Hoje ninguém
pode afirmar isto seriamente. Um argumento convincente,
para mim, é que não há um exemplo
sequer, na história mundial, de relação
causa-efeito entre um evento esportivo e um êxito
político. A ditadura brasileira não
foi nem mais longa, nem mais exitosa por causa da
vitória na Copa de 70, e tampouco a ditadura
argentina pelo título de 1978, ilustra
o professor.
Todavia, as classes políticas, em sua
mediocridade, ainda pensam que troféus levam
a cargos poderosos. Maurício Macri, presidente
do Boca Juniors, perdeu a eleição para
prefeito de Buenos Aires, apesar do favoritismo que
lhe foi conferido pela conquista da Taça Libertadores
e do apoio de Diego Maradona, conta.
Políticos e parte da imprensa
persistiram no equívoco quando, em meio aos
escombros da crise que explodiu no início de
2001, uma bela seleção argentina floresceu
para oferecer algum prazer à população:
85% dos torcedores estavam convencidos de que o título
da Copa Coréia/Japão seria deles. A
expectativa descomunal gerou duas profecias: na vitória,
a volta à paz social; na derrota, uma revolução.
A seleção fracassou e ficou claro que
política e futebol apresentam duas lógicas
distintas. A crise era política, econômica,
social, cultural, e não esportiva. No caso
de vocês, a vitória do Brasil em 2002
não garantiu a eleição de José
Serra, candidato do governo, observa Pablo Alabarces.)
Argentino ama mais
o clube que a seleção
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O sociólogo Pablo Alabarces, professor
da UBA: investigando a dimensão social
do futebol |
Os
torcedores argentinos demonstram maior paixão
por seus clubes que pela seleção
nacional, ao contrário dos brasileiros,
que vêem a mistura das cores de seus times
resultar no amarelo. De acordo com o professor
Pablo Alabarces, a questão dos êxitos
explica em parte esta diferença de comportamento.
A seleção brasileira vem
ganhando tudo, enquanto a seleção
argentina há muito não ganha nada.
Já os clubes argentinos predominam na
Taça Libertadores e na Copa Intercontinental,
simplifica.
Outro
fator apontado pelo pesquisador é a tribalização
da cultura futebolística. Os torcedores
argentinos firmam uma identidade essencialmente
tribal, em que o bairro é o território
primordial, enquanto a noção de
país fica mais distante. Os times são
locais. A exceção é o Boca,
que possui torcedores em outras regiões,
mas que ainda assim adota como território
específico o bairro de Buenos Aires que
lhe deu o nome, afirma.
A
desaparição de Maradona também
contribuiu para arrefecer o amor pela seleção,
na opinião de Alabarces. Apesar
de contraditório em suas inclinações
políticas veio da esquerda, aliou-se
ao conservador Menem e ama Fidel Castro a ponto
de ter morado em Cuba , Maradona simbolizava
o herói plebeu que chegou no topo e condensava
o significado da pátria. A Argentina
pode contar com belíssimos jogadores,
mas eles sempre vão ser do Boca, River,
Racing, Independiente ou estrangeiros
que atuam na Europa, conclui.
Barra braba
O grande clube argentino possui uma torcida
organizada e uma barra braba. Essas
facções, segundo Alabarces, promovem
ações violentas em troca de benefícios
econômicos, havendo a cumplicidade de
forças policiais e políticas.
A paixão pelas cores do clube é
mera justificativa, diz. Já a torcida
organizada não participaria, por exemplo,
de uma tática usual em que o cartola
encomenda um ataque a determinado jogador para
forçá-lo a deixar o clube. Porém,
num conflito contra simpatizantes de outras
equipes, a torcida muitas vezes se alinha aos
barras brabas. Isto é
preocupante porque o enfrentamento entre torcidas
vem se radicalizando, deixando de ser meramente
esportivo para virar questão de vida
ou morte: uma quer o fim da outra, acrescenta.
Torcidas como a Gaviões
da Fiel ou Mancha Verde, na comparação
do sociólogo, apresentam núcleos
pequenos de militantes, mas estruturas melhores
que atraem número maior de associados.
As torcidas brasileiras, se bem trabalhadas,
podem se transformar em organizações
da sociedade civil. O Brasil já aprovou
seu estatuto do torcedor, reconhecendo-o
como ator social, elogia Alabarces. Ele
avalia que este reconhecimento está distante
na Argentina. As autoridades ainda vêem
os torcedores como bestas, selvagens, e não
percebem a envergadura do fenômeno: trata-se
de mais um problema de exclusão social
gerado na crise, não por causa apenas
da pobreza (nem todo torcedor é pobre),
mas pela falta de acesso a mecanismos de cidadania
como educação e trabalho,
adverte.
Mídia que torce
Em seus trabalhos, Alabarces também
atribui a devida importância ao jornalismo
esportivo, que apresenta um crescimento exponencial
graças à tevê a cabo e aos
satélites. Podemos ficar dias inteiros
vendo somente jogos de futebol, observa.
Ele atenta ainda para o reaparecimento de jornais
como Olé na Argentina e Lance no Brasil.
Esses veículos trazem edições
com 36 páginas de esportes. A isto chamamos
de a importância da minúcia,
ou seja, do detalhe insignificante para preencher
tantas páginas, ironiza.
Uma agravante no caso argentino,
conforme Alabarces, é que o jornalista
está assumindo a linguagem do torcedor,
explicitamente, e já fala na primeira
pessoa: a gente ganhou, a gente perdeu.
O jornal Olé aperfeiçoou este
mecanismo, escalando repórteres conforme
o time, onde assumem a condição
de torcedores. Não acredito na
objetividade da imprensa, mas em nossos países
sempre existiu a tradição de que
o jornalista informa e analisa, de que o jornalismo
é um espaço de alfabetização
e enriquecimento da linguagem. Na área
esportiva, essa linguagem está parecendo
conversa de boteco.
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