Retrato do homem bicentenário
Tataranetos de Hércules Florence
lembram pioneirismo na fotografia e as aventuras do
francês que viveu em Campinas
LUIZ
SUGIMOTO
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Hércules Florence: Centro de Memória
da Unicamp abriga autobiografia do pioneiro |
Em frente à cadeia de Campinas,
então Vila de São Carlos, o guarda de
sentinela permanecia estático. Devia estar
desatento à pequena caixa coberta com paleta
de pintor, instalada havia horas em algum ponto dos
arredores. O orifício na improvisada câmara
escura acomodava a lente dos óculos de Hércules
Florence, que pretendia fixar a imagem da fachada
da cadeia em papel sensibilizado com nitrato de prata.
Queira Deus que se possa imprimir com a luz,
anotou no seu diário, em 3 de julho de 1833.
Já sabia que o papel escureceria no sol
como os tecidos indianos que perdiam a cor
e, por isso, lavou-o em água para diminuir
a reação fotoquímica e guardou-o
dentro de um livro. Segundo relatos, assim ele conservou
várias imagens, que apreciava somente à
noite, sob luz de vela. Mas as provas se perderam.
Inclusive aquela, que seria a primeira fotografia
de um ser humano produzida no planeta.
No Centro de Memória da Unicamp
(CMU), encontra-se uma autobiografia de Hércules
Florence - ou Hercule, seu prenome em francês
-, de 1832, em que descreve seus estudos sobre o processo
fitoquímico. O acervo também reúne
desenhos, reproduções de telas e dez
rolos microfilmados com os manuscritos narrando a
saga da famosa Expedição Langsdorff.
Uma árvore genealógica traz o histórico
dos parentes Florence teve 20 filhos, 13 do
primeiro casamento com Maria Angélica Álvares
Machado, em 1830, ano em que se mudou para Campinas,
e sete com a protestante Carolina Krug. É a
quinta geração, a de tataranetos, que
prepara uma grande cerimônia para 29 de fevereiro,
bicentenário de nascimento do desenhista, pintor,
fotógrafo, geógrafo, tipógrafo
e aventureiro.
Ele nos deixou uma importante
herança genética. Percebo isso claramente,
pois descendo de seu sexto filho, que se casou com
uma prima-irmã. Filhos de casamento entre primos
recebem maior concentração de genes
com as características da família. De
modo geral, os Florence herdaram traços da
personalidade de Hercules e alguns talentos, como
a propensão artística, afirma
o psiquiatra Francisco Álvares Florence Neto,
tataraneto residente em Americana ele compilou
vários dos apontamentos do ancestral. É
nosso dever manter viva a memória de um artista
e homem de ciência que representa o salto tecnológico
ocorrido no século 19, endossa Antonio
Francisco Álvares Florence, também tataraneto
e um dos organizadores do evento no Hotel Royal Palm
Plaza.
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O barão Heinrich von Langsdorff: demência
provavelmente causada pela malária |
Photographie O experimento
da cadeia era um a mais, desde que Hércules,
passeando na varanda de sua casa em agosto do ano
anterior, intuiu sobre a possibilidade de fixar imagens
em câmara escura, utilizando um elemento que
mudasse de cor com a ação da luz. O
boticário Joaquim Correia de Mello foi quem
o informou sobre o nitrato de prata. Ambos batizaram
o processo de photographie, cinco anos
antes de Herschel, a quem historicamente se atribui
a introdução do termo. O jornalista
Boris Kossoy tem o mérito da reconstituição
obstinada dos métodos e técnicas desta
descoberta isolada, divulgando-a ao mundo e colocando
o nome de Florence entre dois conterrâneos:
Joseph Niépce e Louis Daguerre, que depois
anunciariam a invenção da fotografia.
O professor José Joaquín
Lunazzi, do Instituto de Física Gleb
Wataghin (IFGW) da Unicamp, lembra que havia
dois grandes problemas na época. O primeiro
era a fixação das imagens. Segundo o
professor, Hércules conseguiu preservar desenhos
em vidro, que eram copiados sobre sais de ouro, mas
não as fotografias, feitas sobre sais de prata.
A solução para o segundo problema, o
da sensibilidade (exigia-se exposição
de horas ao sol), com o processo de revelação
e a fixação atingida para os sais de
prata, é atribuída a Daguerre. Como
um apaixonado pela fotografia, que me levou à
ciência da óptica, posso imaginar Florence
trabalhando: suas emoções quando algum
resultado evidenciava progresso, a esperança
em um novo material, seu desespero com o tempo passando
e o progresso não chegando. A decepção,
alegria e curiosidade simultâneas ao saber que
o alvo tinha sido atingido, embora por outra pessoa,
comenta Lunazzi.
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O psiquiatra Francisco Álvares Florence
Neto, tataraneto de Hércules: memória
preservada |
Florence chegou à photographie
ao perceber a escassez de tipografias no país.
O professor da Unicamp Jacques Vielliard, que escreve
artigo nesta página, conta que o autor foi
obrigado a publicar por conta própria Recherches
sur la voix des animaux, no Rio, e ficou irritado
com a quantidade de erros tipográficos. Havia,
também, a premência de publicar sua pesquisa
sobre Zoophonia, em que descrevia o som
produzido pelos animais vistos durante a Expedição
Langsdorff. Já morava em Campinas quando criou
a poligrafia técnica similar à
do mimeógrafo , que permitia a impressão
das cores simultaneamente. Graças ao apoio
do sogro Álvares Machado, instalou uma tipografia
completa no largo da Matriz do Carmo. Ali foi impresso
O Paulista, primeiro jornal do interior de São
Paulo, em 1842; e o Aurora Campineira (1858), que
inaugurou a imprensa na cidade.
Viagem trágica
A Expedição Langsdorff partiu de Porto
Feliz em 22 de junho de 1826, visando atingir o rio
Amazonas por via fluvial. Alcançou o porto
de Cuiabá em 30 de janeiro de 1827, mas a viagem
só recomeçou em 5 de dezembro, em dois
grupos. O primeiro, com o barão Heinrich von
Langsdorff e Hércules Florence, subiu o Tapajós
e chegou a Santarém em 1º de julho de
1828. Nesse trajeto, o barão adoeceu gravemente,
assim como muitos dos expedicionários, ficando
mentalmente perturbado. No segundo grupo, o primeiro
desenhista Adrien Taunay sofreria pior sorte, morrendo
afogado no rio Guaporé. A expedição
só se reuniu em Belém, regressando de
navio ao Rio de Janeiro, em 13 de março de
1829.
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Desenhos feitos por Hércules Florence durante
a Expedição Langsdorff: originalidade |
Num caderno de bolso, Florence descreveu
os acontecimentos trágicos, aspectos das regiões,
costumes da população e dos índios.
Baseado em cópias de diários, Francisco
Florence, o tataraneto de Americana, chegou à
conclusão aceita por estudiosos
de que a demência de Langsdorff se deveu a malária.
Tenho comigo publicação do Hospital
do Juqueri, onde trabalhei, com casos antigos de pacientes
em que a malária desencadeava a psicose. O
barão sofria de picos febris toda tarde, entrando
em delirium; depois de certo dia, não mais
voltou ao estado normal, diz o psiquiatra.
Os registros científicos
da expedição referentes a zoologia,
botânica, mineralogia, etnografia, medicina,
lingüística estiveram perdidos
por praticamente cem anos em instituições
de Moscou e Leningrado. Em 1875, Alfredo D Escragnolle,
o Visconde de Taunay, encontrou cópia do diário
que Florence deixara com a família, relatando
a parte da viagem do Rio até Cuiabá.
Ao contatar o autor, o visconde recebeu e traduziu
uma cópia que já estava pronta para
publicação havia 15 anos, incluindo
a segunda parte da viagem. A versão considerada
completa, com informações e comentários
acrescidos depois de 20 anos, teve tradução
publicada em 1977. Hércules Florence faleceu
em 27 de março de 1879, em Campinas, onde morou
por 49 anos.
Inventor no exílio
JACQUES
VIELLIARD (*)
A Zoophonia de
Hercule Florence, palavra bonita que se refere
aos sons emitidos por animais e cujo estudo
é conhecido hoje sob o neologismo Bioacústica,
na verdade nunca entrou em uso e nem foi criada
pelo autor de Memória sobre a possibilidade
de descrever os sons e as articulações
da voz dos animais, manuscrito escrito na volta
da famosa mas trágica Expedição
Langsdorf, e esquecido nos porões da
Academia de Ciências de São Petersburgo.
É este manuscrito que,
por uma coincidência incrível,
já que ambos nascemos na França
para nos fixar em Campinas e aqui contribuir
para o conhecimento dos sons da natureza, eu
tive a honra e o prazer de transcrever e traduzir
para o português. Nesta oportunidade,
verifiquei que Florence publicou, por conta
própria, uma versão mais elaborada
do manuscrito original em 1831, mas que o termo
Zoophonia somente apareceu na versão
em português de 1875, do Visconde de Taunay.
Ademais, o método de transcrição
musical de Florence não era eficiente
o bastante para se impor, deixando seu autor
frustrado.
A Bioacústica apareceu
como campo de pesquisa científica somente
a partir dos anos 1960, graças aos gravadores
de rolo portáteis, que possibilitaram
gravar as vozes dos animais na mata. Essa atividade
cresceu rapidamente e, em 1977, a Unicamp me
convidou para instalar o primeiro Laboratório
de Bioacústica do Brasil, junto com o
Arquivo Sonoro Neotropical, hoje o quinto maior
acervo de gravações do mundo.
Hercule Florence, que se sentia isolado e até
desprezado, não podia imaginar que a
vila que escolheu para viver e criar raízes,
Campinas, seria hoje o centro de estudos que
tanto o apaixonaram.
Na verdade, Hercule Florence
foi mal compreendido até hoje. Não
eram suas transcrições musicais,
intrinsecamente falhas, que representavam sua
contribuição ao conhecimento científico,
mas suas observações originais
e extremamente pertinentes, como os conceitos
de paisagem sonora e de especificidade da voz
dos animais. São estes dois dos principais
tópicos dos resultados anunciados no
último Congresso Internacional de Bioacústica,
realizado em agosto passado no Brasil, que estou
acabando de editar como volume especial dos
Anais da Academia Brasileira de Ciências.
É o reconhecimento acadêmico com
o qual Hercule Florence, auto-intitulado inventor
em exílio, sempre sonhou.
(*) Jacques Vielliard é
professor do Departamento de Zoologia
do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp
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