Tese revisita arquitetura
goiana do século 19
PAULO CÉSAR NASCIMENTO
Estudo realizado pela arquiteta Adriana Mara Vaz de Oliveira resgata período da história de Goiás e revela como viviam e moravam os habitantes rurais da cidade de Meia Ponte, hoje Pirenópolis, no século 19. Defendido como tese de doutorado em História no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, o trabalho “A Casa como Universo de Fronteira” aborda as principais características arquitetônicas da moradia rural goiana e se desdobra em um painel sobre as transformações sócio-culturais da época.
A semelhança com a obra seminal de Gilberto Freyre sobre a sociedade patriarcal brasileira a partir das relações e dos conflitos entre a casa-grande e a senzala, ou mesmo com os estudos sobre a casa paulista do professor Carlos Alberto Cerqueira Lemos, da Universidade de São Paulo (USP), não é mera coincidência (leia texto nesta página). Adriana, que é professora do curso de Arquitetura da Universidade Católica de Goiás, mirou-se nesses autores para compor não só a pesquisa do doutorado, como também a dissertação de mestrado que deu início às suas incursões pelo universo da moradia goiana.
“Por meio da moradia eu posso conhecer qualquer coisa, seja a história de alguém que viveu no passado ou a de quem vive no presente. A casa é um parâmetro de leitura não só de seu morador, mas da própria sociedade, e isso sempre me encantou”, justifica a autora.
Insularidade Adriana revela que há uma complementaridade indiscutível entre a casa urbana e a casa rural goiana, pois as duas estão ligadas ao processo de estruturação da atividade agropecuária no estado, no século 19, e que permanece até hoje como a principal característica econômica da região.
As atividades agrícolas, observa ela, começam ainda no século 18, quando da ocupação urbana e da exploração aurífera pelos bandeirantes, e são influenciadas, sobretudo, pela característica insular de Goiás na época, distante até três meses por estrada dos principais centros abastecedores no litoral brasileiro.
“A dificuldade no recebimento de mercadorias levou pessoas a se organizarem para fornecer víveres àqueles que estavam em busca do ouro. E assim se formou, concomitantemente, uma estrutura urbana junto com uma estrutura de assentamento agropecuário ao redor das cidades”, constatou a pesquisadora.
Ela concentrou seu estudo nas manifestações arquitetônicas de Pirenópolis, uma cidade fundada por garimpeiros em 1727 (recebeu esse nome em 1890 por estar na Serra dos Pireneus), a 120 km de Goiânia, cujo patrimônio histórico foi tombado, e que desempenhou papel estratégico na ocupação do estado.
“Pirenópolis era um ponto comercial muito importante para Goiás. Todos os caminhos que vinham da Bahia, de Minas Gerais, São Paulo e Cuiabá passavam pela cidade”, explica a docente.
Espaço multifuncional Segundo ela, um traço marcante das edificações interioranas, e que se acentua em Goiás, por causa de seu isolamento, é a sua multifuncionalidade. As casas rurais não eram apenas moradias, mas pequenas unidades produtivas, com anexos destinados à pecuária e suinocultura, ao cultivo de arroz e feijão, à torrefação de café, e à produção de farinha de milho e de mandioca, açúcar e rapadura, em que se processavam não só os alimentos para os moradores, mas os produtos agrícolas que eram comercializados na cidade.
A casa rural goiana, na concepção de Adriana, também se coloca na condição de fronteira por revelar a confluência de mundos diversos. Ela constata essa característica na arquitetura híbrida, composta por formas de construção importadas de outras regiões brasileiras, e manifestada, por exemplo, na edificação das paredes.
“É um tipo de construção que vem de Minas”, observa. “Você levanta a estrutura de madeira nos cantos, coloca a cobertura e depois vem fazendo a parede de pau-a-pique.”
A tipologia das moradias permite ainda identificar o que Adriana chama de vernaculidade dos habitantes, ou seja, aquilo que é próprio ou peculiar no jeito de construir e de morar da região. Nas casas de Pirenópolis é comum a existência de guirlandas nas janelas e de bandeirolas de madeira nas portas, estilos arquitetônicos que não são encontrados em outras cidades goianas.
Diários reveladores De acordo com Adriana, o estudo exigiu um extenso e minucioso trabalho de levantamento das fazendas, tarefa dificultada pela ausência de informações precisas sobre a localização dos imóveis. Mesmo assim, com a ajuda de moradores mais antigos e de informações obtidas em cartório e imobiliária, ela conseguiu elaborar o perfil de 33 propriedades rurais que julgou ainda possíveis de serem documentadas, pela representatividade e integridade, como a Fazenda Caiçara (leia texto nesta página).
Usou também relatos deixados por viajantes estrangeiros que passaram por Goiás no século 19, quase 200 inventários de pessoas que possuíam propriedades rurais e dois diários de mulheres que viveram na época. A documentação possibilitou a Adriana compor um painel riquíssimo de costumes e de hábitos dos moradores, revelando uma outra face do universo compreendido pela casa goiana: a de ser também um lugar de memória.
“Eu mostro como era o jeito característico do goiano ocupar a casa, de receber as visitas, de se movimentar pelos cômodos, de conviver com os membros da família, de trabalhar e até de realizar festas.”
Fontes de inspiração
Em Casa-Grande & Senzala, o escritor e sociólogo Gilberto Freyre imprimiu uma visão original da formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal a partir da moradia. “A casa-grande, completada pela senzala, representa todo um sistema econômico, social, político”, descreve o autor no prefácio do livro, lançado em 1933: “de produção (a monocultura latifundiária); de trabalho (a escravidão); de transporte (o carro de boi, o bangüê, a rede, o cavalo); de religião (o catolicismo de família, com capelão subordinado ao pater familias, culto dos mortos, etc.); de vida sexual e de família (o patriarcalismo polígamo)”, entre outros.
“Desse patriarcalismo absorvente dos tempos coloniais a casa-grande do engenho Noruega, em Pernambuco, cheia de salas, quartos, corredores, duas cozinhas de convento, despensa, capela, puxadas, parece-me expressão sincera e completa”, menciona ainda Freyre, que em sua vasta produção novamente enfocaria a casa como elemento representativo da sociedade patriarcal no Brasil em Sobrados e Mucambos.
Nesta obra, de 1936, ele aborda a decadência do patriarcado rural e o desenvolvimento do urbano a partir dos conflitos e conciliações entre o engenho e a praça, a casa e a rua, o pai e o filho, a mulher e o homem, o sobrado e o mucambo, e de outros aspectos das relações entre raça e classe.
Na fonte em que Adriana foi buscar inspiração para sua tese figura também o livro Casa Paulista: História das Moradias Anteriores ao Ecletismo Trazido pelo Café, de 1999. Nele, o arquiteto, artista plástico e professor do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Carlos Alberto Cerqueira Lemos, mostra como mudanças nas relações sociais foram alterando a organização das residências dos paulistas.