Convidado a falar sobre as atividades do grupo interdisciplinar, que há quase uma década se ocupa da análise de textura de tecidos celulares, Konradin Metze demonstra o didatismo e a euforia de quem ensina seu ofício aos filhos. “Somos anatomopatologistas. Trabalhamos o dia inteiro com microscópios, treinando o olhar para perceber nuances em tecidos e células. Analisamos imagens predominantemente histológicas, comparando-as com critérios consagrados na literatura para classificar a doença”, explica.
Mostrando na tela do computador o desenho que publicamos nesta página, o professor pergunta o que vemos. À primeira vista, trata-se do perfil de uma jovem delicada, com cabelos longos e uma gargantilha que lhe orna o pescoço. Focando o olhar nos cabelos, porém, vemos as rugas de uma velha senhora de nariz enorme e desdentada. “É uma brincadeira para demonstrar que a mesma imagem, vista por dois observadores, pode gerar opiniões diferentes. Por isso, experts nem sempre têm a mesma opinião sobre determinada imagem microscópica”, justifica o anatomopatologista.
Há estudos relatando que o chamado “índice de concordância” no diagnóstico, por vezes, aponta importantes variações entre os especialistas. Diante da necessidade de “objetivar” a análise da imagem microscópica, o Grupo de Patologia Analítica Celular, com a ajuda do computador, busca métodos que levem a resultados mais exatos, diminuindo a subjetividade na interpretação. “O computador nunca vai substituir o ser humano, a quem cabe a última palavra e a responsabilidade por erros de julgamento. Mas a máquina pode ajudar”, afirma Konradin Metze.
Pixels - Apontando para a câmera fotográfica acoplada ao microscópio, que captura a imagem do núcleo de célula fixado na lâmina, o professor explica: “O pixel é a menor unidade de uma imagem digitalizada. Quando decompomos esta pequena parte preta do núcleo, o nucléolo, chegamos a graus de cinza variando de zero a 255 pixels em cada pixel. Este nucléolo pode ser composto por uma infinidade de combinações de graus cinza. Com isso, quero dizer que o número de informações contidas na imagem é inesgotável”.
Metze ressalta que o pixel jamais é visto isoladamente, mas no contexto dos pixels vizinhos. Por exemplo: havendo um pixel com grau de cinza 5, seguido de outro com grau 4 e um terceiro com grau 3, o computador é capaz de apontar quantas vezes a esta transição 5-4-3 aparece na imagem. “Ganho um conjunto de números completamente abstrato, mas usando conceitos corriqueiros da física e engenharia, para combiná-los com dados biológicos dos pacientes ou animais de laboratório, chego a valores para diagnóstico ou prognóstico”, afirma.
O coordenador do grupo reforça a explicação com imagens microscópicas de núcleos de ratos de laboratório de diferentes idades: “Diante da limitação da nossa linguagem, posso afirmar apenas que parte da célula ‘é mais escura’, outra ‘mais homogênea’ e outra ‘parece finamente granulada’ etc. O programa que interpreta as imagens digitalizadas, porém, fornece descrições muito exatas e consegue, pela avaliação da textura, ‘adivinhar’ com grande precisão a idade dos animais. Seria impossível descrever em palavras tudo o que está dentro da imagem. Os métodos aqui desenvolvidos visam justamente detectar o imperceptível, descrever o indescritível”, sintetiza.
A ponte Com base nas imagens digitalizadas, professores, graduandos e pós-graduandos elaboram e testam novos softwares recorrendo a conceitos antes restritos às áreas de matemática, física e engenharias, tais como matriz de co-ocorrência, árvore de componentes transformada de Fourier, granulometria, entropia de informação e dimensão fractal. Cada tese ou trabalho científico envolve de 8 mil a 10 mil células, resultando num programa pesadíssimo que precisa de até cinco dias e noites para ser rodado. Para isso, o grupo conta com o apoio fundamental do professor Neucimar Jerônimo Leite, do Instituto de Computação (IC) da Unicamp.
Konradin Metze preparou vários programas demonstrativos para a entrevista, mas como ele mesmo diz, é impossível descrevê-los em palavras. De qualquer forma, mesmo que as imagens, a rigor, retratem a tragédia de uma doença, elas não deixam de ser belas, assim como não deixam de ser atraentes os efeitos gráficos produzidos pelos softwares. Justifica-se, por isso, o fato de Metze atribuir um aspecto lúdico ao trabalho do grupo, como se todos ali estivessem arquitetando uma ponte entre medicina e arte.
A paisagem Um dos gráficos exibidos remete à paisagem da cidade durante o crepúsculo, como que destacando prédios sombreados em fundo claro. “Usando um conceito da matemática, a topologia, é possível observar tudo pela base: percebe-se que existe um nó com suas ramificações, seguido de outro nó com ramificações e assim sucessivamente, até os pontos finais que seriam as folhas desta ‘árvore’. É a árvore de componentes. Na prática, estamos identificando e analisando linfócitos (os nós), a fim de saber quantos são normais e quantos são de leucemia”, explica Metze.
A propósito, o pesquisador cita um projeto piloto feito junto a seis pacientes com leucemia, em que o computador foi programado para identificar o paciente a partir de uma única célula. “A máquina apontou o nome correto do paciente em 80% das células”, assegura. Em outro caso, um professor da patologia, que estuda a ossificação de colágeno modificado para a substituição de defeitos ósseos, enviou imagens de diferentes amostras para saber qual delas apresentava textura mais próxima à do osso normal. “Usando a dimensão fractal, o programa foi capaz de identificar imediatamente qual osso neoformado era mais próximo ao osso normal”, recorda.
A música Joseph Fourier, gênio contemporâneo de Napoleão e cujas regras pautam todo estudante de engenharia no estudo da transmissão de sinais, inspirou a decomposição da imagem de células em ondas. “Avaliando direção, freqüência e amplitude das ‘ondas’ inerentes à imagem da cromatina, pudemos prever, a partir de peças cirúrgicas de tumores de pele, quais eram os pacientes que corriam maior risco de sofrer uma recorrência da neoplasia. É interessante ter essa bola de cristal”, comenta Metze. Dando vazão ao espírito lúdico, o professor também substituiu as ondas das imagens microscópicas por notas musicais, sonorizando assim as imagens. “É mais uma brincadeira, mas que ajuda a explicar o funcionamento dos nossos programas, além de oferecer um resultado esteticamente interessante”, finaliza.
O Grupo
O Grupo de Patologia Analítica Celular funciona sob registro no CNPq e vem contando com verbas da Fapesp para os equipamentos. Alguns dos programas de computação mencionados nesta reportagem já possuem registro no Inpi (Instituto Nacional de Propriedade Industrial) e os demais deverão ser aperfeiçoados e registrados no prazo de seis meses, segundo o professor Konradin Metze. Há mais dois projetos aprovados, um deles temático, com o objetivo de avaliar se as flutuações registradas na cromatina podem corresponder a alterações no genoma. O outro projeto, tipo Pronex, viabilizará a aquisição de equipamentos de maior resolução, o que deverá gerar várias teses ligando morfologia e genoma.
Do grupo coordenado por Metze participam o professor Neucimar Jerônimo Leite, do Instituto de Computação, e as professoras Irene Lorand-Metze, Maria Letícia Cintra e Patrícia Sabino de Matos, da Faculdade de Ciências Médicas; a patologista Rita Barbosa de Carvalho; os pós-graduandos Randall Luís Adam, Elisângela Ribeiro, Wanderley de Souza Filho, Valcinir Bedin, Maria Oxana Poloni Rybka e Maria Luiza Valladão; os alunos de graduação Patrícia Vanessa Villalobos Tapia Silva, Eliana Giorno, Tomas Bernardo Costa Moretti, Rosana Carvalho Silva e Rita Ferreira; e Ana Cláudia Sparapani Piaza.
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