Formada em psicologia pela PUC-Campinas e em piano erudito pela Unicamp, Fabiana Bonilha mostra-se incansável nos estudos, tanto que já está iniciando o curso de doutorado, também em música. “Até aqui, consegui vencer os desafios. Só a gente sabe a dimensão das barreiras e o valor daquilo que se conseguiu ao superá-las”, relembra. A pesquisadora relembra também a época em que o acesso ao material em braile era quase impossível, situação que melhorou bastante com o advento da internet e de programas de voz. Mesmo diante das dificuldades, a mãe, Vera Bonilha, fez questão de que Fabiana estudasse em classes convencionais, inserida no espaço daqueles que enxergam. Não permitiria que a deficiência visual da filha limitasse suas oportunidades de vida.
Durante o ensino fundamental e médio, Vera Bonilha conferia a bibliografia solicitada para a filha e passava dias inteiros transcrevendo os livros didáticos para o braile. “Às vezes começava a transcrição no final do ano e, no início das aulas, já tinha metade do material concluído”, recorda. Professora de português na mesma escola, a mãe sabia da importância desta leitura de apoio para o aprendizado. “Tudo que fizemos por nossa filha, não foi feito porque ela é portadora de uma deficiência, mas porque é tão capaz quanto os outros”, afirma Vera, destacando que o fato de Fabiana não ficar confinada em classes especiais significou um ganho para todos, alunos e professores.
“Muita gente se beneficiou com a convivência. Nos lugares por onde Fabiana passou, muitos vieram atrás”, orgulha-se o pai, Luciano Bonilha. Emocionado, ele diz que a filha sempre venceu as barreiras e, com isso, abriu portas para que outros portadores de necessidades especiais se sentissem desafiados. Foi assim com as aulas de piano, e também na PUC-Campinas e Unicamp, ao mostrar a viabilidade do acesso e de oportunidades para os seguintes da lista. Quando da implantação do Laboratório de Acessibilidade da Biblioteca Central da Unicamp, por exemplo, Fabiana foi uma das primeiras usuárias. Mesmo aqueles que enxergavam colheram vantagens no processo de inclusão, como nas aulas de geometria, ainda no ensino fundamental: a professora, precisando elaborar métodos mais adequados para ensinar a matéria a Fabiana, acabou facilitando o aprendizado de todos, que puderam entender melhor o conteúdo. Na opinião de Luciano Bonilha, quanto mais as diferenças se manifestarem, maiores os benefícios à escola.
O estímulo Fabiana mantém paixão pela música desde cedo. Incentivada pelos pais, começou a dedilhar as teclas aos 7 anos, mas o estímulo para que nunca mais abandonasse o piano veio com um desafio apresentado por Vera Bonilha à professora Lílian Monteiro Gazone. “Fabiana decorava as notas musicais, o que não era ideal. Era necessário que conseguisse ler as partituras”, conta a mãe. A professora de piano realizou, então, vasta pesquisa até descobrir que não existia material de apoio para cegos, o que os obrigava a tocar “de ouvido”. “A constatação me deixou muito preocupada, pois a leitura musical é essencial para a interpretação”, recorda Lílian Gazone.
Se a mãe de Fabiana foi capaz de transcrever livros didáticos em braile, a professora de piano mergulhou num esforço igual: decidiu desenhar notas musicais em cartolina, perfurando depois os contornos com agulha de costura para que a aluna fizesse a leitura com os dedos. Muita vontade de Fabiana de aprender, muita vontade da professora de ensinar. A musicografia em braile é totalmente diferente da convencional. Por isso, Fabiana precisou absorver todo o conteúdo de teoria musical em um ano, quando normalmente é transmitido em três anos. Além disso, devia ler a partitura com uma das mãos, enquanto tocava com a outra.
Depois do início árduo, vieram as conquistas cobertas de satisfação. Fabiana Bonilha participou de inúmeros recitais e concursos, sempre com boa performance. Na sala de sua casa, ao lado do piano que a acompanha desde os sete anos, a pianista acumula troféus e medalhas, sem contar as homenagens e o prazer de participar de um concerto da Orquestra Sinfônica de Campinas, regida na época pelo maestro Benito Juarez. “Eu esperava que Fabiana chegasse mesmo aonde chegou. Eu sabia e sempre acreditei nela”, declara Lílian Gazonema, que depois desta experiência viu-se estimulada a dar aulas como voluntária no Instituto Humberto de Campos e no Grupo Pró-Visão.
'Sem código Braille,
a gente não toca'
Conquistada a titulação de mestre, Fabiana Bonilha agora espera oferecer um panorama completo da musicografia em braile no âmbito nacional. “O código Braille não é uma simples opção, sem ele a gente não toca. Eu tinha a percepção de que o acesso a esse material era extremamente restrito, mas o problema é muito mais grave”, observa. Segundo ela, muitos aficcionados da arte portadores de deficiência visual ignoram que é possível ler música em braile.
Criado pelo próprio Louis Braille, o método possui 63 notais musicais no sentido horizontal. Como não são usados pentagramas e claves, sua leitura é difícil e o professor encontra dificuldades para ensiná-las. A única fonte de musicografia em braile no Estado de São Paulo é a Fundação Dorina Nowill, ainda assim escassa: das 32 sonatas para piano de Beethoven, por exemplo, a instituição possui apenas três em braile.
Fabiana Bonilha explica ainda que as informações já existentes sobre a metodologia em braile, bem como de outros recursos não estavam organizadas de maneira acessível. Por isso, além de levantar estas informações, ela colheu depoimentos de 15 professores de música e aprendizes.
Para a pesquisadora , o mais gratificante em seu trabalho foi a possibilidade de construir um cenário do ensino de música para os portadores de deficiência visual e identificar as possibilidades e alternativas para que eles vençam as barreiras. No curso de doutorado, ela pretende ir a campo e apresentar propostas para garantir acessibilidade a este material. “Quero seguir carreira acadêmica e, futuramente, formar um grupo de pesquisa e de produção de partituras em braile”, adianta a pianista, que já transcreveu coleções de Villa-Lobos e outros autores brasileiros para o acervo da Unicamp.