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Jornal da Unicamp -- Janeiro de 2001
Páginas 10/11
SOCIEDADE
Talento
abandonado
A
história de Flávio, garoto que vive num barraco, pinta
quadros para fugir de seu mundo e ama mitologia
grega
A luz da manhã de dezembro entra
pelas frestas da parede e dá um pouco mais de
luminosidade ao barraco 89. É mais um, em uma viela que
ironicamente se chama Recanto da Fortuna. São 10 horas.
Flávio, de 13 anos, está com os olhos grudados na
televisão. Ao lado do irmão Jadilson, três anos mais
velho, assiste a um desses desenhos modernos em que os
heróis são um misto de gente, robô e bicho. A favela
fica ao lado do Jardim São Marcos, um dos bairros mais
violentos da zona norte de Campinas.
Os dois garotos moram em um barraco simples, com o pai
Adauto Gonçalves. A cobertura da casa é de telhas de
amianto. O piso, de chão batido. É um cômodo único,
que não chega a 20 metros quadrados. O ambiente é
divido pelos móveis: num canto estão as camas, noutro
uma mesa e o guarda-roupas. Tudo muito simples, rústico.
Revela a pobreza material de um país que abandona sua
gente, seus talentos.
Flávio é um desses talentos abandonados. O garoto tem
uma habilidade nata para a pintura. Descobriu o dom há
quatro anos pelas mãos da professora Silvana. Tinha
acabado de se matricular na Direito de Ser, uma
Organização Não-Governamental (ONG) que dá
assistência às crianças e adolescentes da região do
São Marcos. Até então, passara desapercebido pelas
escolas públicas, era mais uma criança carente nas
estatísticas oficiais.
O curioso é que Flávio só foi para a Direito de Ser
porque sua mãe não o queria nas ruas. Dona Maria
Marques de Oliveira - que morreu em julho passado - sabia
o que estava fazendo. Ela viu seu primogênito, Antônio,
ser assassinado aos 19 anos. Era 96. Eles ainda moravam
no Jardim Ângela, a área mais violenta da Capital.
Estava envolvido com más companhias, diz o
pai, que não gosta de tocar no assunto. Ameaçada, a
família se mudou para Campinas. Seo Adauto conseguiu
vaga como auxiliar de limpeza na Ceasa, onde ficou até o
ano passado. Hoje, está aposentado por invalidez e
sustenta os dois meninos com uma pensão de R$ 180,00.
Aos 60 anos, tem a saúde frágil, já passou por duas
cirurgias e aguarda vaga para enfrentar mais uma. Faz o
que pode para manter os dois filhos longe das ruas.
Fala
mansa, mãos ágeis
Flávio é um garoto tímido, mas de um sorriso que
fascina já ao primeiro contato. Usa brincos na orelha
esquerda. São duas argolas. Tem o hábito de roer as
unhas ou mordiscar a roupa enquanto conversa, talvez para
esconder a timidez. Tem a voz mansa, um brilho nos olhos.
Gosta de novidades, de ouvir histórias, em especial
sobre mitologia grega e história da arte. Mostra, com
orgulho, alguns livros que ganhou de presente nas
últimas semanas. Garante que lê tudo e quer mais. Tem
sede de conhecimento. Desde março passado, conta com a
ajuda valiosa do filósofo Rogério Alessandro de Mello
Basali, 26 anos, aluno especial do mestrado de
Filosofia da Unicamp. Ele passou a dar aulas ao menino em
sua casa, em Barão Geraldo. Ensina noções básicas de
arte e introduz o garoto no mundo dos deuses gregos e
suas façanhas. Também foi o responsável pela
organização da primeira exposição de Flávio,
realizada em um condomínio de Sumaré.
Há uma razão para gostar de mitologia? A pergunta fica
no ar, Flávio pensa alguns segundos e explica:
Gostava muito do Hércules, por causa dos desenhos,
e o pessoal da Direito de Ser disse que era um herói
grego. Me contaram a história, fiquei fascinado. Daí,
passaram a me ensinar mais sobre o assunto. Mas
reconhece, sem jeito, pouco saber das lendas tupiniquins,
como Saci Pererê, Mula sem Cabeça ou Curupira. Logo
emenda: gosta de ler livros que o ensinem sobre pintura.
Diz reconhecer e gostar das obras de Van Gogh, Monet,
Picasso e Portinari.
Natureza
morta, solidão criativa -- Tenho muito a aprender, diz.
O garoto começou pintando paisagens e alguns animais,
como cavalos. Aos poucos, foi tomando gosto por outros
estilos, como natureza morta, sua paixão atual e para
qual canaliza suas energias. Flávio prefere pintar no
cair da tarde e à noite. É quando posso ficar
sozinho, pois muita gente passa em casa durante o dia.
Quando pinto, saio deste mundo, fico longe, conta
ele.
O ato de pintar ficou mais fácil no último mês.
Flávio juntou as economias e comprou seu primeiro
cavalete. Gastou R$ 24,00. Agora, pode se dedicar às
telas com maior conforto. Antes, pintava com as telas mal
ajeitadas em um mesa. Apesar da pequena melhoria, o
adolescente ainda trabalha sem as condições ideais para
quem precisa estar bem e criar, para transportar às
telas o que pulsa em seu coração.
A falta de um local ideal para desenvolver seu talento é
flagrante. O pequeno armário onde eram guardadas as
panelas de alumínio é usado agora para abrigar suas
telas, uma sobre a outra. Já as panelas ficam amontoadas
sobre uma pia desativada e passaram a ser lavadas em um
tanque improvisado em um dos cantos do barraco. Também
não há espaço nas paredes para deixar seu trabalho
exposto. No lugar, só imagens de Nossa Senhora, Santo
Expedito e São Jorge. Flávio é um garoto religioso e
freqüenta a Igreja Católica do São Marcos. Sua
devoção por santos pode ser notada ainda pelo pingente
de São José que carrega no peito. Aliás, usa parte do
tempo dos últimos dias para atender a um pedido de uma
pessoa da igreja: está pintando um quadro com a imagem
de Nossa Senhora. Faz com gosto.
15
minutos de fama e a realidade
O que o garoto Flávio Gonçalves quer no momento é
pintar, pintar, pintar. Sabe que precisa gastar muita
tinta e pincel para encontrar um estilo próprio, que o
caracterize, que o projete além fronteiras do Recanto da
Fortuna. Flávio já teve seus 15 minutos de fama, como
diria Andy Warhol. Foi um dos entrevistados de um
programa sobre crianças superdotadas exibido
recentemente pelo Globo Repórter, da Rede Globo.
Antes do programa de TV, Flávio também tinha sido
citado em uma reportagem do jornal Folha de São Paulo. O
título da matéria era O país desperdiça seus
gênios. Foi justamente aí que Rogério Basali,
mestrando em Filosofia da Unicamp, entrou na vida do
garoto. Fiquei impressionado e decidi procurá-lo.
Primeiro, passei por uma entrevista com os coordenadores
da Direito de Ser e, só depois, me apresentaram o
Flávio, conta Rogério.
E o filósofo tem sido a grande companhia de Flávio nos
últimos tempos. Além de ensinar o bê-a-bá sobre
mitologia, leva o garoto para visitar exposições e dá
dicas para a promissora carreira. Foi Rogério quem teve
a idéia de expor as telas de Flávio em Sumaré. Além
de mostrar o seu trabalho ao público, o garoto conseguiu
vender duas telas pequenas, a R$ 30,00 cada. Está
radiante! O dinheiro foi todo usado para comprar telas,
tinta e pincéis. Sim, este é mais um dos problemas
enfrentados pelo pequeno pintor: a falta de dinheiro para
a compra dos materiais básicos. Para não ficar parado,
muitas vezes conta com a ajuda de Rogério que, em
contato com amigos do mundo artístico, já socorreu
Flávio em vários momentos.
Quero ajudar porque o Flávio é um diamante bruto.
Ele precisa de apoio para desenvolver seu talento,
fala. Rogério pretende cada vez mais colocar Flávio nas
rodas artísticas de Campinas. Já articula uma grande
exposição em uma galeria do distrito de Barão Geraldo.
Alguns
rabiscos, só elogios
Flávio é um aluno aplicado na escola, tira boas notas e
não tem problemas de disciplina. Acaba de ser aprovado
para a 8ª série. A lembrança mais remota que tem dos
bancos escolares é desenhando e rabiscando em todo papel
branco que via pela frente. Sempre recebia elogios.
Meus amigos e professores diziam que desenhava bem.
Ficava orgulhoso, recorda. E só. O talento para a
pintura só viria a ser descoberto mesmo na Direito de
Ser. Foi lá que teve contato pela primeira vez com
tintas e pincéis. Tudo pelas mãos da professora
Silvana, de quem sente saudades, embora não se lembre do
seu sobrenome.
Ela casou e foi para o Rio de Janeiro. Nunca mais a
vi, diz. Acho que ela ficaria orgulhosa em me
ver agora, completa. Flávio lembra das primeiras
aulas: era uma turma de oito alunos, mas poucos
perseveraram. Tiveram noções sobre pintura durante dois
anos. Hoje, ele ainda freqüenta a entidade.
O talento e a dedicação de Flávio à pintura são um
diferencial, mas ele é um garoto como outro qualquer.
Gosta de futebol e de desenhos animados na TV, ouve rap e
paquera as meninas da escola. Tem uma paixão, que
prefere não dizer, mas fez questão de gravar as
iniciais em uma das madeiras do barraco. Está lá, ao
lado de uma colcha de retalhos pendurada na parede.
A paixão de escola ainda não inspirou Flávio a ponto
de imortalizar a amada em uma tela. Por enquanto, só a
natureza morta, mesmo. Está concluindo um quadro onde
aparecem algumas rosas vermelhas. Cores que parecem
iluminar o barraco onde o menino vai lapidando seu
talento. É assim que ele foge do mundo real, desse país
do desgoverno e da corrupção, onde sobra muito pouco
para investir em educação, diversão e arte.
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