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Jornal da Unicamp -- Janeiro de 2001
Página 15
COSTUMES
Corpolatria
O
professor de educação física deve tentar formar alunos
menos
suscetíveis à moda do culto ao corpo
PAULO CÉSAR NASCIMENTO
Desde que apareceu nua nas páginas
de recente edição de uma revista masculina, a
apresentadora de TV e ex-dançarina Carla Perez foi
transformada no mais novo (e cobiçado) ícone da febre
nacional do culto ao corpo. O alvoroço nem foi tanto
pela exibição de suas curvas, que empapuçaram os
leitores em três outras edições da publicação, mas
sim pelo novo design apresentado. Nariz, seios, barriga,
cintura e coxas não eram mais os mesmos de há três
anos. Sim, ali estava uma nova mulher, esculpida com
bisturi e próteses de silicone. A mídia, com o
estardalhaço que lhe é peculiar nessas ocasiões,
lançou seus holofotes sobre a moça recauchutada e até
cunhou um novo verbo, carlaperizar, ou seja,
ajeitar o corpo a seu gosto, tal como fez a esguia loira.
Em uma sociedade em que homens e mulheres passaram a ser
valorizados pelos centímetros a mais ou a menos
revelados pela fita métrica, o fenômeno Carla Perez é
apenas mais um exemplo da desmedida busca e exaltação
do corpo perfeito. Antes dela outras beldades, como a
apresentadora Xuxa Meneghel e a modelo Joana
Feiticeira Prado, estiveram em evidência por
terem seus atributos físicos aperfeiçoados em mesas
cirúrgicas. O sexo masculino também deixou-se seduzir
por esse encanto: os homens respondem por cerca de 30%
das quase 400 mil cirurgias plásticas realizadas no
país este ano, segundo a Sociedade Brasileira de
Cirurgiões Plásticos.
Convém lembrar que as clínicas de cirurgia plástica
são apenas um elo dessa extensa cadeia que é a
milionária indústria da beleza. Academias de
ginástica, clínicas para emagrecimento, laboratórios
que fabricam e vendem produtos para dietas alimentares
(de procedência e efeitos não raro duvidosos),
confecções e lojas de roupas (já reparou que a maioria
só tem aqueles modelos bem justos?), fabricantes de
cosméticos e de próteses de silicone prosperam em nome
da vaidade.
Psicólogos, sociólogos e médicos, entre outros
especialistas, debruçaram-se sobre o tema e não é de
hoje que advertem para os efeitos colaterais da volúpia
por corpos considerados perfeitos e saudáveis,
especialmente entre os jovens. São notórias,
particularmente nos bastidores de concursos de modelo, as
histórias de meninas que entraram em depressão e
arriscaram a vida com insanos regimes de emagrecimento
após constatar na balança insuportáveis
quilogramas a mais em seu peso.
Olhar
antropológico
Para o professor Jocimar Daolio, da Faculdade de
Educação Física (FEF) da Unicamp, os jovens devem
assumir postura mais crítica em relação à
corpolatria. E, tanto quanto os pais, são os
professores, especialmente os de educação física,
responsáveis por formar entre seus alunos cidadãos
menos suscetíveis à onda do culto ao corpo. Porém,
não é o que ocorre nas quadras poliesportivas das
escolas. Segundo ele, a educação física tem cometido o
equívoco de reforçar a padronização corporal ao
manter uma prática cujo referencial ainda é,
primordialmente, biológico.
A prática desta matéria curricular parece
apresentar dificuldades em lidar com as diferenças
apresentadas pelos alunos. Uma educação física escolar
que considere o princípio da alteridade saberá
reconhecer as diferenças não só físicas, mas também
culturais expressas pelos alunos, argumenta
Jocimar, que pesquisou, com um inovador olhar
antropológico, a atuação dos professores da
disciplina da rede pública. O estudo, originalmente
realizado para sua dissertação de mestrado,
transformou-se depois no livro Da Cultura do Corpo.
Recado aos
colegas
Graduado em educação física e psicologia pela
Universidade de São Paulo (USP), mestre e doutor em
educação física, Jocimar falava em auditório lotado
por professores da rede pública, durante os Seminários
de Atualização oferecidos pela Reitoria da Unicamp. Ele
defende uma revisão do papel de seus colegas de
educação física. Segundo ele, a prática pedagógica
dos professores, de maneira geral, ainda se caracteriza
pela busca de um tipo de treinamento ideal para todo um
grupo, pelo desejo de uma classe homogênea de alunos,
pelo destaque da melhoria da aptidão física como
objetivo de ensino.
Em outros palavras, os alunos devem correr o mesmo
número de voltas, fazer tantas repetições do mesmo
exercício, saltar a mesma metragem. Vemos professores
realizando testes físicos no início e ao final de um
período letivo para verificar o progresso dos alunos em
termos de força, velocidade, resistência e
flexibilidade corporais. O nível do grupo é, então,
determinado em virtude desses critérios de aptidão
física e as atividades propostas seguirão esses
parâmetros. Alguns professores chegam mesmo a defender a
formação de turmas em virtude do biotipo dos alunos,
independente da idade que eles tenham e da série que
estejam cursando.
A
técnica de plantar bananeira
Jocimar Daolio, docente da Unicamp, adverte que, sem
conseguir compreender as técnicas corporais como
integrantes de uma realidade sociocultural, os
professores de educação física possivelmente não
terão condições de entender os movimentos corporais
como símbolos sociais e sua prática correrá sérios
riscos de se desvincular do contexto de vida dos alunos.
Um exemplo dessa tendência ocorre quando o
professor, em uma escola da periferia, tenta ensinar a
parada de mãos e desconsidera que os alunos,
em sua grande maioria, sabem plantar
bananeira. São técnicas corporais parecidas. A
primeira faz parte de um conhecimento sistematizado de
uma modalidade esportiva e, a segunda, de um conhecimento
corporal popular, ilustra.
Daolio observa que a história da educação física no
Brasil oferece subsídios que ajudam a entender como os
professores atuais reproduzem, no seu cotidiano, ideais e
valores do final do século 19, período a partir do qual
a atividade desenvolveu-se no país e foi grandemente
influenciada pelas Forças Armadas, pela eugenia e pela
chamada Medicina Higienista. Somente a partir do início
da década de 1980, com a redemocratização do país, é
que a educação física começou a ser discutida de
forma mais contundente, levando ao reconhecimento de que
sua prática escolar é problemática e visando a uma
redefinição de seus objetivos, conteúdos e métodos de
trabalho.
De acordo com Jocimar, mesmo se o professor percebe que
os corpos diferem entre si, a explicação tende a ser em
virtude da natureza do corpo e não das especificidades
socioculturais que podem ter gerado diferenças
corporais. É como se, para o professor, existissem
corpos naturalmente melhores, mais fortes, mais capazes
e, em contraposição, corpos naturalmente piores, mais
fracos, menos capazes.
Para não se tornar vítima e reprodutor de modismos, o
professor de educação física, na opinião de Jocimar,
deve saber considerar as diferenças culturais existentes
entre seus alunos.
Segundo ele, é possível afirmar que um professor da
disciplina, atento ao alcance cultural de sua prática,
tem mais condições de realizar um trabalho competente,
por encontrar-se conectado com a realidade sociocultural
em que vive.
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