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Jornal da Unicamp -- Janeiro de 2001
Páginas 4/5
SAÚDE
A
espera pelo transplante: fila para a vida ou para a
morte?
A eterna
luta dos profissionais da captação de órgãos, o drama
de
quem aguarda e a felicidade de quem consegue
Ana Claudia Conti Camara
Fernanda Junqueira Juliano
Vivianne Lindsay Cardoso
"Sentia muita dor e cãibra nas
pernas e nos dedos. Minha barriga endurecia e entortava.
Um sofrimento danado. Era assim que Dalécio
Pastor, transplantado de fígado, se sentia sempre que
enfrentava as crises provocadas por uma doença sem cura:
a hepatite C. Atualmente vice-presidente da Associação
de Assistência aos Portadores de Hepatites, Candidatos a
Transplante e Transplantados Hepáticos do Interior do
Estado (APOHIE), com sede em Campinas, ele foi agraciado
com a única chance de vida que lhe restava, o
transplante, que ocorreu em 1994 no Hospital das
Clínicas (HC) da Unicamp.
O transplante é uma coisa maravilhosa, minha filha
é o espelho disso tudo, afirma Pastor, 56 anos,
que esperou oito meses por um fígado. Dois anos depois
ele viu nascer uma filha, Fernanda, loira de olhos azuis,
encantadora, prova concreta e singela das mudanças que
acontecem na vida de um transplantado.
Quando convivia com a perspectiva constante da morte,
Dalécio Pastor ficou privado de realizar qualquer tipo
de esforço físico e foi submetido a uma dieta rigorosa,
diminuindo o sal, a carne vermelha e abolindo de vez as
bebidas alcoólicas. Tantas dificuldades foram superadas
graças ao apoio da esposa, Rosângela. Internações às
pressas eram freqüentes. A última crise o deixou caído
no meio da sala de casa. E foi naquele momento, como por
milagre, que veio o telefonema da Unicamp.
Drama
distante A
grande maioria das pessoas acredita que a necessidade de
transplante é uma ameaça distante, que nunca a
atingirá ou a seus familiares. Como não afeta a alguém
mais próximo, o problema está fora de discussão, assim
como o processo de doação de órgãos. Esta é uma das
causas do baixo índice de doadores no Brasil. Outro
complicador é que a abordagem para se obter a
autorização de doação acontece sempre no momento da
morte encefálica de um ente querido. A primeira resposta
dos familiares, desinformados sobre o processo, é
negativa. Faz sentido, diante das circunstâncias
dramáticas, visto que a morte encefálica é provocada
por traumas, ou seja, acidentes. Mas é necessário o
pedido nesta condição constrangedora, porque após a
morte do encéfalo os demais órgãos continuam
funcionando por determinado tempo, possibilitando sua
retirada.
O urologista e coordenador da Organização de Procura de
Órgãos (OPO) da Unicamp, Adriano Fregonesi, afirma que
as filas de espera por transplantes nos hospitais levam a
uma incógnita. Os pacientes não têm como saber
se é uma fila para a vida ou para a morte,
lamenta. Segundo o médico, apenas no Estado de São
Paulo aproximadamente 8 mil pessoas esperam por um rim, 2
mil por um fígado e 500 aguardam um coração.
Esses números só não aumentam porque 30% dos
pacientes acabam morrendo na fila.
A secretária da OPO, Yvonne Caporalle Mayo, define em
uma frase a problemática da doação de órgãos:
O transplante tem duas vias. A probabilidade de
você ser um receptor é muito maior que a de ser um
doador, porque para ser um doador é necessária a morte
encefálica. Presidente da Associação Brasileira
de Transplante de Órgãos (ABTO), o nefrologista Henry
de Holanda Campos alerta que ninguém está livre de
sofrer uma insuficiência cardíaca, renal ou hepática:
Doar órgãos significa doar vida. Qualquer um de
nós pode necessitar de um transplante, alerta.
Campanha
permanente
O trabalho desenvolvido por Adriano
Fregonesi inclui a criação de campanhas publicitárias,
fundamentais para esclarecer potenciais doadores sobre os
procedimentos executados no transplante e na captação
de órgãos. Todos os hospitais de Campinas e
região mantêm à mão os telefones da Central de
Captação, que é imediatamente contatada quando da
existência de um potencial doador. A OPO da Unicamp
atende uma população de seis milhões de habitantes, em
127 cidades da região.
Em maio de 2000 foi lançada a Campanha Permanente de
Doação de Órgãos. Sob o lema Transplante de
Órgãos Essa via tem duas mãos,
distribuiu-se camisetas com a seguinte frase: Doe
seus órgãos. Você nunca sabe de que lado pode
estar.
De acordo com os médicos, foi nítido o aumento do
número de doações nos meses após o lançamento da
campanha. Também está claro que as doações diminuem
quando o assunto é esquecido. Por isso, a luta de
Fregonesi e seus colaboradores para manter latente na
consciência da população a discussão sobre o
transplante e o nobre ato de doar vida.
Sobre a
suspeita
de comércio de órgãos
e o diagnóstico de
morte encefálica
As notícias
veiculadas na mídia sobre tráfico de órgãos trazem
prejuízos irreparáveis ao trabalho de captação nas
centrais do país, uma vez que contribuem para levantar
dúvidas e deixar a população insegura quanto à
credibilidade do processo. Para o urologista Adriano
Fregonesi, muitas das notícias são improcedentes e
sensacionalistas, com o único interesse de vender jornal
ou conquistar audiência.
O coordenador da Organização de Procura de Órgãos
(OPO) da Unicamp ressalta que o transplante envolve um
grande número de profissionais, perto de 40 médicos
altamente especializados em cada cirurgia, sendo
impossível que todos eles pratiquem ato ilícito,
escondendo um suposto comércio. O atual Código de
Ética Médica, vigente desde 1988, proíbe a
comercialização de órgãos humanos no Brasil.
Em alguns países, como Índia e Filipinas, o comércio
é permitido sob consentimento do governo. Nesse caso,
trata-se de uma operação legal e não de um mercado
negro. Anunciam-se órgãos abertamente, lembrando o
regime de escravidão, com a diferença de que os
escravos eram vendidos inteiros e não fragmentados. Na
Índia pessoas pobres vendem seus rins para amenizar a
situação de miséria. O Brasil está muito longe desta
prática discutível, garante Fregonesi. A fila de espera
por órgãos é única, onde ricos e pobres recebem o
mesmo tratamento.
Procedimentos Constatada a morte
encefálica, inicia-se uma série de procedimentos para
que a doação de órgãos se efetive. Esta burocracia é
apontada como um dos principais empecilhos para o
tráfico de órgãos. O diagnóstico da morte encefálica
é firmado sob um protocolo assinado por dois médicos,
sendo um deles neurologista. São realizados dois exames
clínicos, com intervalo mínimo de seis horas, além de
um exame gráfico complementar (eletroencefalograma) para
confirmar a morte. Médicos da equipe de transplante não
podem participar do diagnóstico, que é baseado na
ausência de funções cerebrais.
Com o protocolo preenchido e assinado, os médicos devem
notificar a OPO da Unicamp sobre a existência de um
potencial doador, transmitindo às enfermeiras dados
específicos como idade, peso, sexo, altura, grupo
sanguíneo e exames laboratoriais. Se este possível
doador encontra-se em outro hospital, a enfermeira
providencia uma ambulância para a coleta do sangue, a
fim de se fazer os exames, entre eles as sorologias para
HIV e hepatites B e C.
Fila
única Em
seguida, o Sistema Estadual de Transplantes (SET),
através da Central de Notificação, Captação e
Distribuição de Órgãos (CNCDO 2), responsável pelo
serviço no interior de São Paulo (com sede em Ribeirão
Preto), é comunicado e transmite os nomes dos receptores
cadastrados na fila única para os departamentos
responsáveis pelo transplante. Assim, os primeiros das
filas para recepção de rim, fígado, coração e
córnea são chamados na Nefrologia, Gastroenterologia,
Cardiologia e Oftalmologia da Unicamp, respectivamente. O
próximo passo é comunicar as equipes transplantadoras
sobre os resultados dos exames do potencial doador, uma
vez que este não pode transmitir qualquer doença ao
receptor.
Somente com a autorização da família para a retirada
dos órgãos, e havendo receptores compatíveis, são
chamadas as equipes de cirurgiões, cada qual
especializada em um determinado órgão, seguindo a
seguinte ordem para a extração: coração, fígado, rim
e córnea. O coração suporta pouco tempo sem
circulação sangüínea, de quatro a seis horas; o
fígado, de 12 a 24 horas; e o rim, de 24 a 48 horas. A
córnea é o único caso em que a retirada pode ser
feita até seis horas após a constatação da morte
encefálica, por se tratar de um tecido avascular (que
não recebe fluxo sangüíneo).
Novela da
TV coloca tema em alta
Transplante e doação
de órgãos é um tema em alta no momento, em razão do
drama vivido pela personagem Camila, interpretada pela
atriz Carolina Dieckman na novela Laços de
Família, da Rede Globo. Ela tem leucemia e
necessita de um transplante de medula óssea. O roteiro
prometia esquentar porque a mãe Helena (Vera
Fischer) tentaria engravidar a fim de conseguir um doador
compatível para Camila, levantando a polêmica: é
correto produzir um filho apenas para salvar a vida de
outro?
O transplante de medula óssea difere daqueles envolvendo
outros órgãos do corpo humano porque ninguém precisa
morrer para ser doador. Ao contrário, somente pessoas
vivas estão capacitadas. O tecido sangüíneo do
interior dos ossos (local da medula) é extraído,
depositado em recipiente de aço inoxidável, filtrado e
colocado em uma bolsa de sangue para ser infundido na
veia subclávia do receptor, localizada na região do
tórax, entre o pescoço e o ombro, finalizando o
procedimento. Apesar do procedimento muito simples, a
recuperação do paciente exige muitos cuidados,
principalmente em relação à higiene, devendo-se evitar
o contato de pessoas que não convivem com o
transplantado.
Rim O Hospital das Clínicas
(HC) da Unicamp realiza, em média, 70 transplantes
renais por ano. De acordo com o urologista Adriano
Fregonesi, as estatísticas mostram que 85% dos rins
transplantados apresentam bom funcionamento depois do
primeiro ano e, após cinco anos, 70%. Com o passar do
tempo, alguns enxertos são perdidos, em razão da
chamada rejeição crônica. Nesse caso o rim precisa ser
retirado para implantação de outro, levando o paciente
de volta à hemodiálise e à fila por um novo
transplante.
O Ministério da Saúde registra que de janeiro a maio de
1999 foram feitos 840 transplantes de rim no país. No
ano de 2000, no mesmo período, ocorreram 921, um
crescimento de 9,64%. A Unicamp realiza transplantes de
rim (tanto de doador vivo como de morto), fígado,
coração, córnea e medula óssea. Em breve deve
começar a fazer transplante de pâncreas.
A tênue
linha entre
a vida e a morte
José Carlos dos Santos, de 47 anos, é o renal crônico
mais antigo de Campinas. Está há dezenove anos na fila
para um transplante de rim. Anda com dificuldades,
apresenta as marcas das dilatações nas veias e, apesar
do semblante tranqüilo, seu olhar é triste. Por dezenas
de vezes chegou a primeiro da lista, mas recusou todos os
chamados para a cirurgia temendo a rejeição. Há 13
anos viu a esposa, Maria da Luz, morrer por um erro
médico quando realizava exames para doar um rim ao
marido. Ela ficou dez dias em coma depois de
receber sangue infectado. Já superei tudo isso, não
guardo mágoas. Mas é difícil a lembrança,
afirma.
Atualmente José dos Santos procura estar o mais presente
possível na fiscalização de hospitais: Faço
parte da Câmara Municipal de Saúde de Campinas, da
Comissão Técnica de Nefrologia na área de Vigilância
Sanitária e sou diretor de saúde da Associação dos
Renais Crônicos da cidade. É uma forma de assegurar que
ninguém mais morra como minha esposa.
A psicóloga Ana Claudia Silvestre atendeu renais
crônicos durante três anos em Campinas. Ela explica que
a melhor maneira de o doente e a família lidarem com a
angústia por um transplante é aceitar a finitude da
vida. Para Ana Claudia, a tênue linha entre a vida e a
morte é o que mais aflige o paciente e, em muitos casos,
os próprios médicos não se dão conta disso ou
simplesmente ignoram. Mesmo assim, a psicóloga destaca
um aspecto que pode ajudar e muito os pacientes: A
fé, seja a pessoa de que crença que for, é uma arma
muito forte. Já constatei que aqueles que acreditam e
têm esperança, a partir de uma força divina, conseguem
lidar melhor com a situação e até se recuperam mais
rápido.
Aqueles
que vivem um dia de cada vez
Pedro Henrique Tinela, 23 anos, é um jovem paciente da
hemodiálise. Quando essa entrevista foi feita, ele
aguardava a segunda sessão no Hospital Irmãos Penteado,
em Campinas, lendo um gibi do Chico Bento, ignorando
inconscientemente o próprio estado de saúde. Tinha
conhecimento há um ano da doença, que estava sendo
controlada por meio da alimentação, até que o rim
parou de funcionar definitivamente. Notícias sobre um
transplante? Nenhuma. Estou vivendo um dia de cada
vez. Tento nem lembrar do rim, declarou o rapaz,
que não consegue imaginar quanto um novo rim
influenciaria em seu dia-a-dia. Hoje, o simples gesto de
beber água exige obediência a critérios médicos, pois
mesmo a ingestão do líquido presente em frutas, como
melancia ou laranja, é rigorosamente controlada.
As sessões de hemodiálise acontecem três vezes por
semana e cada uma dura quatro horas. Essa rotina
desgastante acaba fazendo com que a maioria dos renais
crônicos seja aposentada por invalidez; é complicado
trabalhar com horários fixos diante da inflexibilidade
da rotina da hemodiálise. Muitos que sofrem de
insuficiência renal exerciam atividades braçais e não
podem mais fazê-lo, pois nos braços se localiza a
fístula que liga a pessoa à máquina. Através da
fístula o sangue é filtrado, limpo. Além disso, a
rotina, a longo prazo, faz com que o paciente fique
debilitado. Há o enfraquecimento dos ossos e a
própria insuficiência renal causa anemia, explica
a enfermeira Maria Solange Alves da Silva, que trabalha
no Instituto de Nefrologia de Campinas.
Diálises Outra forma de tratamento
dos renais crônicos é a diálise peritonial, feita no
abdome por líquidos preparados com concentrações de
glicose. A diálise pode ser peritonial intermitente
(DPI), feita no hospital três vezes por semana,
obrigando a internação do paciente por 24 horas; outra
é a diálise peritonial ambulatorial contínua (CAPD),
em que o próprio paciente faz a troca das bolsas, que
pode ocorrer várias vezes ao dia, dependendo da
quantidade de líquido infundida; por último, a diálise
crônica (CCPD), que o paciente faz em casa, no período
da noite.
Apesar do sofrimento, a hemodiálise é a forte aliada
dos insuficientes renais, porque permite, em grande parte
dos casos, que eles aguardem por longo tempo a doação
de um rim. Para quem depende de outros órgãos, como
coração ou fígado, a esperança é bem menor e muitos
acabam morrendo na fila.
Livro
induz
leitor à reflexão
Ana Claudia Conti Camara, Fernanda Junqueira Juliano e
Vivianne Lindsay Cardoso, que assinam esta matéria sobre
doação de órgãos no Jornal da Unicamp, são autoras
do livro-reportagem Reciclagem de Vida O
Transplante, Fatos e Relatos, projeto experimental
de conclusão do curso de jornalismo da PUC de Campinas,
elaborado no final de 2000. O trabalho, orientado pelo
professor Marcel Cheida, obteve a nota máxima.
O livro mostra o limiar da vida e da morte por meio de
relatos de pessoas envolvidas com transplante e doação
de órgãos, um processo de extrema complexidade que
exige de todos fé, disciplina e amor à vida e ao
próximo. O objetivo é fornecer aos leitores
informações fundamentais sobre o tema, levando-os a uma
decisão consciente quanto a se tornar doadores ou não
de órgãos.
Os autores buscam patrocínio junto a laboratórios
farmacêuticos e a publicação do livro por uma editora
de Campinas.
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