P- Como o gás supriria a grande indústria?
R - Diretamente. No gasoduto se faz ramificações para as termelétricas. Se faria o mesmo para levar o gás às indústrias e residências. Nasci em Santos e, quando era pequeno, o fogão a gás de casa não tinha botijão. Outro exemplo é o chuveiro elétrico, um vilão, que atinge de 8% a 9% do consumo total no país. E é um consumo concentrado no horário mais nobre, da ponta, que exige mais investimentos. Caso houvesse uma curva de carga constante, bastariam investimentos para atender àquela demanda, com linha de transmissão, geração etc. Quando se tem uma curva com ponta muito acentuada, é necessário reprojetar o sistema para aquela hora. É necessário ter gerador, linha de transmissão, sistema de distribuição, tudo dimensionado para a ponta.

P - Qual seria esse horário de ponta?
R - Das 18 às 21 horas, mais ou menos. Esse horário concentra ainda alguma carga industrial respeitável, além da iluminação, chuveiro elétrico, as pessoas chegando em casa... E outro detalhe do chuveiro: está se usando mais uma vez energia nobre, de certa forma limpa no consumo final, para uma finalidade menor, que é a de aquecer água. O gás poderia ser uma alternativa importante nas residências. Ou a energia solar, ainda melhor que o gás, pois não gasta nada com combustível, apenas com equipamento.

P - Onde mais o gás poderia ser usado?
R - Na climatização de shoppings, por exemplo. Mas recomendo que se possa operar com os dois combustíveis, para não ficar dependendo da chuva. Não está chovendo? Então, coloque-se gás em todo lugar. Com isso, cai o consumo de eletricidade e os reservatórios ganham fôlego. Eles não esvaziam de repente, de um mês para o outro, mas de um ano para o outro. Numa seqüência de ano, quando se percebe que o reservatório está caindo, é na hora de pôr todas as opções térmicas em jogo.

P - E os índices fluviométricos das vazões das usinas?
R - No caso de Itaipu, as vazões foram acima da média nos últimos quatro anos. O sistema deveria ser suficientemente robusto para, mesmo no período crítico, agüentar o atendimento da demanda, caso se houvesse investido normalmente.

P - Culpar São Pedro é uma grande bobagem....
R - Temos uma demonstração líquida e certa de que, pelo menos no Sudeste, a culpa não foi de São Pedro. Derruba-se a tese. Pode ser que no Nordeste tenha havido uma conjunção com a questão da chuva, mas não possuo dados.

P - Itaipu é responsável por quanto do consumo?
R - Por pelo menos 25% do total no País. Na homepage do ONS, encontra-se a situação das usinas. No boletim de operação é registrada a energia armazenada no sistema da região Sudeste. Mostra que, em maio de 2000, quando os reservatórios tinham de estar cheios, eles operavam com 60% de sua capacidade.

P - O que isso significa?
R– O fato de o sistema não ter recuperado os níveis de armazenamento em maio é indicativo de que já está trabalhando sob uma situação de estresse. Seja por chuvas baixas, seja por expansão da geração aquém da demanda. No Sudeste, como as chuvas não foram baixas, o problema é falta de investimento. Em 1999, já havíamos feito um alerta sobre a falta de investimento e de gerenciamento mais criterioso nos reservatórios. Sentíamos que a coisa estava ficando crítica.

P - E se as chuvas superassem as expectativas?
R - Em abril de 99, se falassem que falta de investimento não seria problema, e se chovesse bem, o buraco passaria despercebido. Por isso, às vezes, os políticos declaram que o alerta é manobra de quem quer liberação de recursos para investimentos. Em 1986, aconteceu uma situação semelhante. Os técnicos, já naquela época, alertaram que algo de urgente precisava ser feito. O então ministro de Minas e Energia, Sigeaki Ueki, impediu que se colocasse as térmicas a plena carga, porque consumiriam US$ 1 milhão por dia de combustível. Ele falava: “Vamos esperar mais um pouquinho para ver se chove”. Este é o erro. Mas choveu, passou e ninguém soube desse risco de racionamento em 86. Em 1987, no Nordeste, a situação estourou, houve racionamento. O Sudeste escapou porque o Ueki “previu” as chuvas. Na realidade, ele teve muita sorte.

P - Hoje acontece a mesma coisa...
R - Sim. Quanto tempo vai durar esse racionamento? Se vier uma chuva abundante como a de 1982, em novembro estaremos saindo com vertimento, com todos os reservatórios cheios. Apesar do atraso nos investimentos, o sistema vai suportar mais um ou dois anos; irá caindo, mais que o normal, mas agüentará mais um tempo. Talvez, aí, acelerando as obras de geração, voltemos à normalidade um pouco mais à frente.

P - E do contrário?
R - Se vier uma crise como a de 1952 a 1956 – o que não vem acontecendo porque as vazões estão acima da média –, a coisa realmente vai ficar muito complicada. Teremos racionamento mais violento. Aliás, lembro outro erro: pelo nível de armazenamento dos reservatórios, e pelo desequilíbrio entre a geração e a demanda, já deveria ter sido iniciado um racionamento em 2000, de 5% a 10%. Não incomodaria ninguém, não aumentaria o desemprego, não haveria maior repercussão e surtiria o mesmo efeito que esses 20%. Na modelagem do problema, chamamos isso de racionamento preventivo. Os modelos do setor elétrico brasileiro colocam um custo de déficit muito alto.

P - Como assim?
R - No primeiro megawatt-hora que você corta, o custo é de US$ 300. O que acontece? Os modelos temem o déficit, que é muito caro, e vão usando o reservatório, pegando água onde existir, para evitar o racionamento.

P - É um modelo equivocado?
R - Está errado. O racionamento de 1% ou 2% da demanda não custa US$ 300 o megawatt-hora, não custa nada. Custa o preço de uma campanha na televisão para pedir que as pessoas economizem. O modelo provoca a situação na qual o reservatório vai esvaziando e ninguém fala em racionar. Até quanto ele agüenta, é um problema de modelagem. Quando chega no nível em que se encontra, estoura e vem o alerta: é preciso racionar 20%. O impacto econômico disso é muito grande.

P - Caso não houvesse racionamento, qual seria o cenário?
R - As usinas nunca trabalharam num nível tão baixo de armazenamento. Os próprios técnicos estão muito preocupados: não sabem o que acontece numa usina com o nível de 10%, qual a qualidade da água que passa pela turbina. Nunca se operou nessa faixa. O que se define como volume útil é justamente até onde você consegue operar, teoricamente. Os modelos acreditam que é possível operá-la. Mas, na prática, não se sabe.

P - Quais seriam os riscos dessa operação?
R– Ao construir uma usina e um reservatório, você pode fazer uma medição topológica bem clara do reservatório, calculando volume em função da cota. Mas, a partir do funcionamento, vem o assoreamento acumulado no rio durante anos. Não se sabe mais qual é a topologia lá embaixo. Quando o reservatório chega ao nível atual de armazenamento, surgem as preocupações: pode entrar alguma coisa na turbina e danificá-la, o equipamento pode não funcionar porque a água está muito suja, a gente não vai ter uma surpresa?... Não se sabe. Se não tivéssemos esse racionamento, já estaríamos batendo no nível mínimo dos reservatórios. Estaríamos, talvez, tendo surpresas desagradáveis.

P - Em que nível estão hoje?
R - Parou de descer, o racionamento já começou a fazer efeito. Estamos na ordem de 32% de energia armazenada no sistema Sul/Sudeste e alguma coisa próxima dos 35% no Nordeste. De novembro para frente, não há perigo, porque os reservatórios só enchem, as vazões são mais favoráveis. Janeiro, fevereiro e março são os três meses de ouro, quando chove quase 50% da vazão do ano. Por isso, não adianta muito torcer para chover agora. Essa chuva de inverno não tem impacto energético importante. O que pode alterar o quadro é uma chuva boa de novembro em diante. Contudo, se vier uma seca, o racionamento terá de se prolongar por 2002 e 2003.

P - O senhor adota alguma linha de pesquisa nessa área?
R - Sim. É justamente sobre como operar o sistema de forma a obter o maior rendimento possível. As usinas trabalham com uma vazão média. Em Ilha Solteira é de 5.224 metros cúbicos por segundo. Com essa turbinagem, a potência da usina é de 2.199 quilowatts, caso o reservatório encha 100%. Agora, em 16%, a potência despenca. A queda de água da usina é fundamental para a potência produzida; reduzida a queda, perde-se potência. A produtividade da usina, por sua vez, é medida em megawatts por metro cúbico por segundo. Ou seja, a produtividade de Ilha Solteira é de 0,3 megawattz (16%) – ou 311 quilowatts por metro cúbico por segundo. Elevando o reservatório, deixando-o cheio, a produção vai a 0,4 megawatts.

P - E o que acontece hoje, com os reservatórios vazios?
R - Estamos gastando mais água do que o normal para produzir a mesma eletricidade. Nossa equipe trabalha então em como operar o sistema, o que envolve o planejamento de longo prazo (alguns anos à frente), de médio prazo (o próximo ano) e, por fim, o de curto prazo, que pode ser a próxima semana ou até definir, hora a hora, quanto cada usina deve zerar. O objetivo é economizar o máximo de água para poder atender a demanda e tornar o sistema, inclusive, mais seguro para suportar situações de seca no futuro.

P - Vocês buscam a otimização da produção?
R - Justamente. É o gerenciamento dos reservatórios, da operação das usinas e das turbinas. O rendimento da turbina depende da queda; se ela cai, o rendimento também cai. Trabalhamos muito com essa parte de otimização física do sistema hidroelétrico.

P - Esses cálculos vêm sendo aplicados nas usinas?
R - A Duck nos contratou para otimizar o Paranapanema. São oitos usinas. Estamos fazendo a otimização e o gerenciamento dos reservatórios – três em oito usinas – e cuidando da produção de suas máquinas para obter o maior rendimento. Ficaram muito satisfeitos, porque usando nosso trabalho já conseguiram uma economia, no despacho das máquinas, da ordem de 3%. Com esta crise energética, o Comitê de Gestão da Crise criou uma série de forças-tarefa, uma delas para rever os procedimentos do despacho de máquina. Essa força-tarefa é constituída por todos os agentes: ONS, Aneel, ministérios e empresas. A Duck levou o nosso trabalho para lá.

P - E os procedimentos estão sendo adotados?
R - Sim. Eles procuram aumentar a eficiência do sistema, tirar o máximo proveito, o que é urgente dentro dessa crise. Estamos desenvolvendo softwares e aplicativos que fazem o gerenciamento dos reservatórios e a escolha da máquina e da turbina que devem ser operadas, para que a maior energia seja produzida com a menor quantidade de água.

P - Dá para ser otimista num cenário como esse?
R - Normalmente sou otimista. Vejo muitos aspectos positivos nessa crise. Primeiro: o Procel (Programa de Conservação de Energia Elétrica), instituído pelo Ministério de Minas e Energia em 1985, não fez em 15 anos o que nós vamos fazer, provavelmente, em 5 meses. Ou seja, a crise é muito rica por criar uma necessidade – que é a mãe das idéias e das iniciativas – de sairmos desse processo muito mais racionais e eficientes. Não só no consumo residencial, mas sobretudo no industrial. Aquilo que a curto prazo vai provocar um impacto negativo nas empresas – demissões, principalmente –, a médio e longo prazos vai trazer um diferencial positivo para a economia brasileira: mais eficiência do ponto de vista competitivo. O próprio setor elétrico ganhará um rumo em termos de novas fontes e do gerenciamento das que já dispõe. Sairemos fortalecidos e rediscutindo seriamente a questão da matriz energética nacional.

P - Em que sentido?
R - Precisamos colocar um pouco mais de gás na nossa matriz energética, mas não necessariamente nas termelétricas. Possivelmente é mais interessante colocá-lo diretamente no setor industrial, mantendo a opção da eletricidade. O sistema hidráulico é variável, como safra. Nesse caso específico, a notícia ruim é que, na forma de operação do sistema hoje, o desperdício é de 10% em relação ao que poderia ser aproveitado usando, por exemplo, o programa que a gente desenvolveu. A boa notícia é que podemos economizar 10% sem gastar um tostão.

 


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