| O
desmonte do projeto nacional Octavio
Ianni nos ilumina ao avaliar a crise energética dentro do contexto
histórico brasileiro P
O senhor poderia exemplificar? R
Não realizaram a reforma agrária, por exemplo. Mas houve
um projeto nacional que visava odesenvolvimento de uma economia brasileira na
qual os centros decisórios eram prioritariamente controlados por setores
governamentais e privados comprometidos com a economia, com as empresas, com o
mercado etc. Esse projeto tem problemas, mas se realizou de uma maneira notável.
E tinha um futuro importante se fosse continuado e, claro, se fosse desdobrado
em novas iniciativas.
P Quando exatamente essas iniciativas foram abortadas? R
O que aconteceu é que a ditadura militar, que é originária
da diplomacia da Guerra Fria orquestrada pelos norte-americanos, degolou as lideranças
e as organizações comprometidas com o projeto nacional. Eles não
só reprimiram grupos e organizações de esquerda, mas também
grupos que estavam comprometidos com o projeto nacional, que grosso modo se fala
populismo, nacionalismo etc. Mas, na verdade, o que estava por baixo disso tudo
era um conjunto de iniciativas que implicavam na constituição de
uma economia nacional relativamente forte e de um conjunto de alianças
e de associações, de compromissos em termos de setores sociais,
que permitiam uma razoável capacidade de decisão em âmbito
nacional. A ditadura enfraqueceu muitíssimo esse projeto. P
Como? R Aqueles que assumiram
o poder, militares e civis, maliciosamente ou não, passaram a desmontar
o projeto nacional. Evidentemente o Roberto Campos, o Bulhões, o Gudin,
que eram conselheiros, membros ativos da ditadura militar, trabalharam de modo
decisivo no sentido de favorecer interesses das corporações transnacionais.
Já no primeiro plano de ação de Roberto Campos, em 1964,
ele fala na privatização da Petrobrás. Quer dizer que o projeto
de desmonte já se desenvolve um pouco durante o regime militar. Não
vamos esquecer que, durante o governo Geisel, eles foram obrigados ou aceitaram
gostosamente o contrato de risco. Era uma primeira concessão importante
na área do petróleo, permitindo que as empresas estrangeiras trabalhassem
na área da prospecção e, eventualmente, em outros níveis
da atividade petrolífera. P
O que veio depois disso? R
Com os governos civis, ainda que de modo errático, não há
dúvida de que esse processo continuou. O que define e caracteriza o governo
de Fernando Henrique, tanto o primeiro como o segundo, é que esse governo
assumiu literalmente o compromisso de completar o processo de desmonte do projeto
nacional. Só que eles não falam em desmonte, é lógico. P
Quais seriam, então, esses artifícios? R
Eles falam em reforma do Estado, em descentralização, em
estado mínimo, em modernização, em organizar o país
para entrar no Primeiro Mundo. A linguagem é enganosa, encobre o que realmente
foi feito, um total desmonte do projeto nacional. Tanto desmonte que o governo
atual não é capaz de dizer para ninguém qual é o projeto
nacional que eles têm. Eles pedem que as oposições formulem
um projeto, já que na verdade eles não têm. O que eles fizeram,
na verdade, foi alugar ou vender; ceder ou entregar. P
Quais foram, na avaliação do senhor, os resultados dessa
política? R O que aconteceu
é que o setor de energia elétrica ficou gravemente sacrificado.
Como se sabe, há um grave hiato entre a produção de energia
elétrica e o consumo. Isso é o resultado da incapacidade que o governo
já enfrenta de definir objetivos nacionais, porque ele está prisioneiro
de compromissos com as transnacionais e com as organizações multilaterais.
P
Que análise o senhor faz desse quadro? R
Não estou dizendo nada que seja novo. Na verdade, dá para
dizer que a crise de energia é a pá de cal no desmonte do projeto
nacional. Mesmo porque as medidas que eles estão adotando agora, para enfrentar
essa crise, significam evidentemente uma abertura e uma entrega, e uma abertura
ainda mais ampla do setor de energia. P
Em que nível? R
O que temos é um conjunto de providências apressadas, mas que vão
favorecer a entrada de outras empresas transnacionais e corporações
na área da energia elétrica. Mais um setor, provavelmente o último
da economia, no qual ocorre a transnacionalização e uma total abdicação
dos governantes de decidir. Porque quando se transnacionaliza também a
produção de energia, a capacidade do governo de decidir sobre essa
esfera fundamental da economia fica limitada. O governo é obrigado a seguir
as injunções dos interesses das corporações. P
Alguns especialistas denunciam que o governo superdimensionou a crise para
justificar a entrega do setor elétrico para as empresas. O senhor acha
a versão fantasiosa? R
É difícil saber se houve uma ênfase exagerada, mas se as medidas
que estão sendo adotadas, entre elas a de cortar o fornecimento de energia,
de punir os consumidores, de reduzir o consumo de energia em diferentes setores
da sociedade... Primeiro: parece que o problema é muito real e muito sério.
Não há dúvida, porém, de que os interesses privados
inseridos na sociedade brasileira e inseridos no mercado mundial estão
usando a crise. P
De que maneira? R Para
criar o clima favorável à transnacionalização total
do setor. E, nesse sentido, a mídia ajuda muito. O que ela quer? Produzir
mercadoria, que são as suas publicações, suas edições.
P
Qual, a seu ver, tem sido o papel da mídia? R
Ela tem ajudado a criar um estado de pânico através do qual
as corporações e os interesses privados acabam entrando ainda mais.
A mídia trabalha em vários níveis, cada jornal tem uma orientação.
Ela é muito complexa, muito diversificada. Inclusive, dentro dela, há
jornalistas, há atores, há profissionais em todos os níveis
que têm um sério compromisso com os problemas sociais. Mas acontece
que as decisões fundamentais e, portanto, as diretrizes principais adotadas
na mídia são direta e rigorosamente controladas pelos donos, pelos
diretores, por aqueles que controlam as edições, a paginação. P
A hierarquização das matérias... R
O que há é um certo tipo de informação, há
um certo tipo de interpretação, há uma maneira de registrar
os fatos na página par, na página ímpar, na parte
de cima, na parte de baixo etc que tem um efeito muito sério na
formação da opinião pública. De repente, um assunto
da maior importância é jogado em uma coluna no pé
da página 17. O assunto passa a ter um impacto muito menor. P
A técnica fica a serviço da manipulação... R
A questão, obviamente, envolve as técnicas jornalísticas,
nas mídias impressa, televisiva e radiofônica. Os problemas são
fáceis de equacionar, mas a rigor a mídia tem um papel decisivo
na formação da opinião pública. A mídia discute
o apagão, discute a crise de energia, mas poucos são os meios de
comunicação que aprofundam a informação, que fazem
o trabalho de buscar quais são as raízes desse quadro. Ao contrário:
quando chega uma matéria numa redação que vai às raízes
do problema, dependendo do veículo, essa reportagem é simplesmente
jogada no lixo ou engavetada. Isso porque ela incomoda a política que cada
meio de comunicação tem. Não nos iludamos: cada meio de comunicação
tem uma política sobre o que é a opinião pública. P
O senhor acha que ela despolitiza o conteúdo da questão? R
A rigor, despolitizar entre aspas, porque certas informações
e certas avaliações são menosprezadas, esquecidas ou satanizadas
ao mesmo tempo que o meio de comunicação prioriza outras informações
ou outras análises. Você sabe que, quando se põe um título
numa matéria, já se está fazendo uma interpretação.
Quando é veiculada uma informação e sua fonte é omitida,
isso é algo muito grave em termos de democracia. É muito grave não
só porque a fonte está sendo omitida, mas porque não se está
revelando que essa matéria está sendo cozinhada, está
sendo reelaborada e pasteurizada pela redação. Então o processo
de despolitização, que ocorre no mundo inteiro, tem a ver com o
fato de a mídia ser amplamente monopolizada. Os interesses que predominam
na mídia correspondem aos interesses que predominam no mundo e aos das
grandes corporações. P
O que gera, de uma certa forma, a uniformização do discurso? R
Sim, daí ser realmente válido dizer que o mundo hoje está
vivendo um quadro aterrador, de pensamento único. Você pega os editoriais
de vários jornais, pega o posicionamento de vários locutores no
rádio e na televisão, e notará que alguns recados são
exatamente os mesmos. Isso desemboca evidentemente numa grave despolitização
que tem sérias implicações porque o leitor, ouvinte ou espectador
perde a perspectiva histórica do que está acontecendo. E acaba confundindo,
muitas vezes, os incidentes que ocorrem aqui ou ali como se fossem capítulo
de novela ou programa de auditório. P
As abordagens superficiais passam a ser predominantes. R
Sim. Falo isso baseado na leitura de jornais em várias línguas.
Você pega um New York Times e constata que é um jornal muito bem-informado,
apesar de não esconder que tem um compromisso com establishment norte-americano.
Mas, a despeito disso, é um jornal que informa muito bem o que está
acontecendo no mundo. O mesmo se pode dizer do Le Monde, do El Pais e, seguramente,
de muitos outros jornais. Como se explica que sejam jornais pertencentes a grandes
corporações e ainda assim mantêm uma capacidade informativa
excepcional, ao passo que a grande maioria informa precariamente, limitadamente?
Isso provoca um grave problema, que não é simplesmente a despolitização. P
Quais seriam os outros efeitos? R
As pessoas que acompanham certos meios de comunicação ficam
pessimamente situadas no mundo. É um problema muito grave, elas perdem
a capacidade de discernir. Pensam, por exemplo, que a crise de energia é
o resultado de um incidente meteorológico. Pensam que não há
energia porque não há chuva. Então elas falam: Coitado
do governo, o governo não tem culpa. São desdobramentos muito
freqüentes do noticiário, que implicam numa grave responsabilidade
ética dos meios de comunicação. P
O senhor falou da ditadura e dos governos FHC. E aqueles que o antecederam? R
Não tenho o que falar sobre eles. Não têm uma importância
maior, nem o governo Fernando Henrique tem uma importância maior. Ao contrário,
são burocratas da política. P
O senhor acha que Fernando Henrique Cardoso traiu seus ideais? R
Isso é um falso problema, não se iluda. O Fernando Henrique
está se comportando como um político, apenas isso. Não tem
nada a ver com sociologia. Como político ele está se comportando
na base de alianças, de conveniências, de avanços e recuos. P
Obedecendo à lógica que sempre predominou no meio? R
Segundo a cultura política que domina no Brasil. E qual é
a cultura política? Eminentemente conservadora e altamente reacionária
na maneira pela qual enfrenta os problemas sociais. P
O que o senhor acha que pode emergir dessa situação? R
Não vou falar sobre prognósticos eleitorais, porque esse
não é meu campo. O problema é o seguinte: nós estamos
enfrentando uma crise de energia que, a meu ver, é a expressão da
maneira pela qual o governo atual, mais do que os outros, está completando
o processo de desmonte do projeto nacional. Isso que é importante. Isso
que é decisivo. Isso que muda o caráter do país. Isso que
é um desafio fundamental, porque implica num total divórcio entre
Estado e sociedade. | |