| Racionar
luz para iluminar a consciência Laymert
Garcia dos Santos torce para que a povo brasileiro desperte de seu torpor ÁLVARO
KASSAB crise
energética veio para iluminar. A opinião é do sociólogo
Laymert Garcia dos Santos que, parafraseando Clarice Lispector, vê na desilusão
o mote para que a população desperte do torpor. Letargia, no caso,
alimentada pela confiança cega de que o país havia carimbado o passaporte
para a modernidade ao longo da década de 90. E o cidadão bem que
tateou o criado-mudo à procura do interruptor, mas o despertador estava
sob o toco de vela, na sombra do lampião. Um retorno incontinenti, compara
Laymert, aos primórdios da Revolução Industrial. É
aí que o paradoxal produz seu primeiro efeito: passada a perplexidade,
o brasileiro começa a pensar na lição a ser tirada. Mais:
o não-reconhecimento, por parte do governo, de sua responsabilidade na
implicação da crise, joga o cidadão sozinho no fosso cada
vez maior que o separa do Primeiro Mundo. Uma vala da qual podem emergir, além
da revolta e do amadurecimento, novas formas de desobediência civil. O
governo tinha de ter admitido que essa crise era anunciada; ter reconhecido que
faltaram investimentos, avalia Laymert, professor do Departamento de Sociologia
do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Não
só não o fez, como preencheu o vácuo da estratégia
política com o recheio edulcorante do marketing. No discurso oficial, a
crise ganha contornos picarescos, de fábula até. O ser pego
de surpresa e as comportas celestiais de São Pedro que o digam.
E, nessa regra perversa, os papéis foram invertidos. A solução
para encobrir essa irresponsabilidade é uma tentativa, o tempo inteiro,
de traduzir qualquer gesto da população em adesão,
analisa. O maniqueísmo, diz, atinge seu mais alto grau quando, além
de empurrar o problema para a população, o governo passa a ameaçar
os transgressores com toda a sorte de punições
de multas a sobretaxas e a jogar pesado na esfera do Judiciário. Imagem
é tudo Para o professor do IFCH, a cruzada cívica
contou com o auxílio sempre diligente da mídia, apoio
fomentador de uma atmosfera difusa e ilusória, como se o conjunto da sociedade
tivesse aderido ao racionamento. A mídia não é a opinião
pública. A razão pela qual as pessoas estão racionando está
muito longe de ser a mesma mostrada pelas imagens televisivas, pondera.
O professor acredita que dois aspectos precisam ser relevados: 1) é preciso
separar a obediência cega ao governo, da autoproteção surgida
na desconfiança generalizada em relação ao Estado, já
que ou o cidadão se organizava ou ficava condenado ao servilismo; 2) a
crise entrou pela porta da frente no cotidiano das pessoas, obrigando-as, nos
mínimos gestos, a refletir sobre a degradação a que foram
submetidas e, conseqüentemente, a economizar com os parcos meios que dispõem. Na
avaliação de Laymert, a crise cambial de janeiro de 1999 foi o primeiro
sinal do que estava por vir. Ela se inseria no downgrade que permeou a ausência
de política como política e o desmanche das instituições
registrados na década de 90, com a diferença de que o estouro do
real era abstrato, ao contrário da crise energética.
De certo modo, aquela conta gigantesca era remota, não aparecia no
dia-a-dia das pessoas. Para
o sociólogo, a situação de hoje deve ser vista como inédita
e, dessa maneira, não pode ser contornada pelos processos gerenciáveis
de marketing engendrados pelos tecnocratas da equipe de FHC . As implicações
da crise ultrapassam em muito a questão da imagem do governo ou do presidente.
Não dá para saber ainda as formas que essa revolta vai tomar. Ela
não significa bagunça nem rebelião; pode ser a compreensão
do processo. E a construção disso não se faz do dia para
a noite. ------------------------------------------ Trem
que não leva a lugar algum Na
análise feita por Laymert Garcia dos Santos, o apagão
traz à tona as discussões sobre a vocação moderna
do brasileiro, abordada por autores como Darci Ribeiro, Sérgio Buarque
de Hollanda, Gilberto Freire e Caio Prado, entre outros. Nesse sentido, havia
a expectativa de o brasileiro tornar-se um povo autônomo, e não apenas
para ser usado como mão-de-obra a ser explorada. Essa perspectiva de modernização,
de construção de futuro, avalia Laymert, teve na globalização
a sua última fase. Já na abertura Collor tentaram vender,
pelo menos para a população urbana da classe média, que essa
parcela poderia ingressar no Primeiro Mundo, ganhar a modernidade. À
medida que se estabelecem os critérios de seleção, como já
sabiam os arautos da globalização, constata-se que a massa de excluídos
seria imensa. Há o abandono de uma grande parcela da população
que não pode entrar no trem. E aqueles que entraram no trem de alta velocidade
descobrem, agora, que também estão sem futuro. Nesse cenário,
acrescenta, a situação fica bastante complicada por
deixar claros os limites dessa proposta. Laymert acredita que as cartas
estão sendo baixadas, e o fosso entre as nações desenvolvidas
e esses segmentos modernos do país vai crescer ainda mais daqui
para a frente. Eles continuam no seu ritmo de desenvolvimento, enquanto
nós estamos indo comprar lampião, compara. Nesse
cenário de desmonte das instituições, Laymert classifica
de patético o papel do governo FHC pelo fato de, a reboque
da globalização, ter abdicado da possibilidade de implementar uma
estratégia política ao submeter-se às regras ditadas pelas
doutrinas do mercado e ficar atrelado a outras instâncias, entre elas FMI
e Banco Mundial. Não houve investimento, como bem lembrou Francisco
de Oliveira, porque não estava nos planos do Estado e, embora ele soubesse
que precisava fazê-lo, optou em seguir a cartilha neoliberal. Laymert
lembra que, quando ficaram claros os efeitos da falta de investimento, constatou-se
que a ausência de uma política para o setor não deixava de
ser, também, uma política. O professor aponta o contraste entre
o discurso e a ação como emblemático dessa linha de ação.
De um lado, a retórica que pregava o ingresso no Primeiro Mundo; de outro,
o desmonte das instituições. É uma contradição
que, agora, ficou explicitada. O trem não vai mais a lugar algum.
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