| Nas
trevas do latão A
família que, na vida, acendeu uma lâmpada em casa por apenas três
meses JOAO
MAURICIO DA ROSA Quando,
há três anos, os postes chegaram trazendo luz para os sítios
de Malacacheta, no interior de Minas Gerais, Aurora e Vítor Moreira dos
Santos aposentaram o ferro aquecido a carvão acreditando que o utensílio
já poderia virar peça de museu ou canteiro de avencas, como os das
madames da cidade. Quase na virada do século, o companheiro de 20 anos
de escuridão deu lugar ao ferro elétrico. Mas o salto tecnológico
durou apenas o tempo de vida de uma brasa. Três
meses depois da primeira lâmpada acesa na roça, a família
de lavradores migrou de Malacacheta para Socorro, estância turística
localizada 110 quilômetros ao norte de Campinas, no badalado Circuito das
Águas. O Vale do Jequitinhonha, onde fica a cidade natal, foi trocado pelo
alto da Serra da Mantiqueira, 100 metros acima dos 745 de altitude média
dos municípios. Vítor
chama o novo logradouro de Cuba, mas o filho Valdinei, que tem a idade do ferro
aposentado, logo corrige: É Jacuba, pai. O povo é que tem
vergonha do nome. Cuba ou Jacuba é um povoado onde a distância
entre as casas é medida com a imprecisão das léguas-de-beiço
e o caminho até a cidade só é longo por causa das voltas
que dá para contornar os despenhadeiros. A
mudança da família foi provocada por uma proposta de rendosa parceria
em um cafezal castigado pelas oscilações da cotação
no mercado. E, já na terceira colheita, o sonho de altas rendas se diluiu
na volta ao breu e à roupa passada a carvão, pois a propriedade,
vizinha a uma hidroelétrica turística, não tem luz. A
vida inteira sem luz. Quando a força chegou em Malacacheta, a gente tocou
para cá, comenta Aurora, atiçando as brasas do fogão
à lenha que aquece o caldeirão dágua para banhar as
crianças. A gente usa lenha só para o feijão e a água.
A comida é no gás, explica. São seis filhos, quatro
dando força no cafezal, dois em idade escolar. A lida na roça compreende
três capinagens por ano em cerca de 7 mil pés de café cultivados
em morros quase perpendiculares. Depois tem a lavoura branca, de feijão
e milho, e uma pequena boiada que não está no contrato de parceria. A
lida é cercada por perigos representados por animais que a Bíblia
confinou nas trevas: cobras e morcegos vampiros. Descrita à luz da lamparina,
a boipeva, cobra lendária dos campos brasileiros, parece mais assustadora.
Quando ouve passo de gente ou de bicho, ela se achata que nem fita, se encolhe
e dá o salto, descreve Vítor. Tem também a urutu-cruzeiro,
que anda em dupla e, quando ouve os passos em seu rastro, arma uma tocaia para
o infeliz. Se não mata, aleija. Em
Malacacheta, sinônimo de mica mineral empregado em produtos eletrônicos
, Valdinei conseguiu chegar à quinta série escolar. Agora,
se quiser continuar os estudos, vai ter que caminhar quase uma hora escalando
montanhas e subindo em barranco para abrir passagem aos raros carros que avista
longe através da poeira vermelha. Diversão
em Jacuba (ou Cuba), só aos sábados, nas sinucas, e até um
pouco antes do pôr-do-sol. Aqui a gente dorme quando escurece e acorda
quando alumia, diz Valdinei Vítor, o pai, mostra os utensílios
que o acompanham pela vida, ainda presa ao universo do latão: o balde tracionado
do poço por uma roldana chorona; a lamparina, parecida com um funil de
boca tampada made in Belo Horizonte; o ferro a brasa, de marca Fama,
sacado do fundo do baú; um rádio-gravador portátil, que consome
quatro pilhas de tamanho médio por mês, e o rádio de bolso
que Valdinei deixa amanhecer ligado ao lado da cama. É de duas pilhas
pequenas e dura uma vida, explica. Eles
têm ainda um lampião a gás que, estrategicamente pendurado
em um caibro da sala, ilumina os quatro cômodos da casa, mas só o
tempo necessário para os afazeres mais essenciais. Gasta muito gás,
justifica Vítor. De vez em quando vêem uma televisão a bateria
na casa da filha casada, que visitam passando por uma picada entre a mata e o
cafezal. Quarto
de légua Vítor se esforça para entender a seqüência
de etapas que terá de aguardar para receber luz elétrica outra vez.
O técnico agropecuário Alcides Trainoti, da Casa da Agricultura
de Socorro, explica que os postes já começaram a subir a montanha
e estão a poucos quilômetros abaixo de Jacuba, agora sim no verdadeiro
bairro de Cuba. Um quarto de légua, calcula, lembrando que
uma légua corresponde a 6 quilômetros (a de beiço é
imprecisa, pois tem como estimativa o lábio inferior esticado, segundo
o dicionário do Aurélio). Brevemente
você receberá a visita de um funcionário da companhia, que
fará a medição da quantidade necessária de postes
e fios para puxar a eletricidade, avisa Alcides. Vão trazer
força e luz ?, pergunta Vítor, provavelmente influenciado
pelo nome da distribuidora encarregada. A
CPFL (Companhia Paulista de Força e Luz), que detém a concessão
daquela área para distribuição de energia, já cadastrou
cerca de 400 propriedades rurais sem eletricidade só ali nas vizinhanças
da Mantiqueira. Ao todo, a companhia tem planos para atender 10 mil propriedades
no Estado de São Paulo até 2003, seguindo as regras dos programas
governamentais Luz na Terra e Luz no Campo. Se
há entusiasmo pela luz anunciada, Vítor não demonstra. Afinal,
o crepúsculo aumentando a umidade da serra avisa que é hora de se
recolher. Amanhã bem cedo tem que subir de volta ao morro lidar com o café
e as boipevas. Melhor se enfurnar nas trevas do latão, em vez de acalentar
um sonho de luz que desdenhou em Malacacheta e agora ainda está a léguas-de-beiço
de Jacuba. | |