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Jornal da Unicamp 179 - Página 10
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a 7 de julho de 2002
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semanal
Os códigos invisíveis da convivência intramuros
Tese de doutorado analisa modo de vida de moradores de condomínios fechados
Manuel Alves Filho
A proliferação de condomínios horizontais fechados em cidades de médio porte não se deve somente à preocupação de seus moradores com a segurança. Embora esse argumento seja real, ele precisa ser relativizado. Um outro fator, a busca por status, também exerce forte influência na opção por esse tipo de moradia. A conclusão faz parte da tese de doutorado da socióloga Ana Mércia Silva Roberts, defendida recentemente no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Segundo a pesquisadora, que tomou para estudos núcleos habitacionais de São Carlos, no interior de São Paulo, "aos muros visíveis que separam esses grupos dos de fora, acrescentam-se os muros internos invisíveis, que se referem ao processo sempre mutável de apropriação de marcas de distinção e poder".
Para elaborar a sua tese, que contou com bolsa do CNPQ e foi orientada pela professora Maria Lygia Quartin de Moraes, Ana Mércia entrevistou moradores tanto de condomínios fechados quanto de bairros abertos. Também foram ouvidos promotores de Justiça e profissionais que atuam direta ou indiretamente junto aos núcleos segregados, como professores de ginástica e corretores de imóveis. Ao longo do trabalho, a pesquisadora constatou que o argumento segurança, embora citado por todos os que se mudaram para condomínios fechados, é insuficiente para explicar a decisão. "É preciso conhecer outras dimensões para entender esse tipo de escolha", afirma a socióloga. De acordo com ela, o processo tem início antes mesmo de uma família resolver trocar de moradia.
Ana Mércia lembra que o desenho urbano não ocorre casualmente. Ele é fruto de ações concertadas de parte de setores da população, que têm diferentes acessos ao poder. "Existem, nesse caso, muitos interesses políticos e empresariais em questão", afirma. Um exemplo desse "jogo de forças", lembra a socióloga, diz respeito à legislação. Não raro, as normas legais são obscurecidas para facilitar a instalação dos condomínios fechados, o que lhes confere uma aura de privilégio. "Quem decide viver nesses locais entende perfeitamente esse código e faz questão que ele seja interpretado tanto pelos seus pares quanto pelos que não compartilham o mesmo ambiente".
A autora de tese destaca que, na sociedade atual, as pessoas são diferenciadas pela sua capacidade de consumo. "O consumo, nesse caso, não deve ser entendido como a etapa final do modo de produção, mas enquanto dimensão que envolve projetos e estilo de vida", ressalta. Na entrevista que manteve com moradores de condomínios horizontais, a socióloga verificou que alguns deles venderam a maioria de seus bens anteriores para comprar a possibilidade de estar naquele espaço. Outros fizeram empréstimos vultosos somente para reformar as fachadas de suas casas - embora o interior das mesmas seja de uma simplicidade rústica -, de modo a deixa-las compatíveis ou ainda mais especiais que as de seus vizinhos.
Trata-se, conforme a pesquisadora, de um "aperfeiçoamento" das marcas de distinção, cujo objetivo não é outro senão o de colocar os proprietários numa posição mais alta na hierarquia de relações de poder dentro do condomínio. Um dado que chamou a atenção de Ana Mércia ao longo da pesquisa foi o fato de tanto os moradores de comunidades fechadas quanto o de bairros abertos afirmarem que o fator "educação das crianças" foi importante na escolha de suas atuais moradias. O primeiro grupo alegou que, num ambiente segregado, os filhos teriam maior liberdade, lazer e segurança. Já o segundo grupo argumentou justamente o contrário, afirmando que não fez a mesma opção devido à preocupação com o fato de os jovens serem educados num ambiente de consumo exagerado e em contanto apenas com pessoas iguais a eles.
Tal apreensão, segundo apurou Ana Mércia, é pertinente. Conforme declarações de alguns moradores de comunidades fechadas, diversos pais usariam os muros como elementos do que pode ou não ser feito, o que é traduzido por uma postura complacente em relação ao aprendizado de hábitos e necessidade de regras. "Uma mãe me contou que uma vizinha havia lhe dito, em certa ocasião, que não via o filho há três dias. A mulher, porém, estava tranqüila, pois sabia que o menino estava no interior do condomínio", espanta-se a socióloga.
Esse tipo de comportamento, esclarece Ana Mércia, favorece o surgimento de "legislações paralelas", válidas somente no interior dos núcleos segregados. Dentro de condomínios grandes, como revelou um promotor público de São Paulo, é comum menores de idade dirigirem automóveis. A socióloga colheu relato de um morador de uma comunidade fechada de São Carlos, segundo o qual também é usual o acobertamento de crimes, como roubos e furtos, somente porque foram praticados por alguém "de dentro dos muros". O mesmo procedimento, disseram os entrevistados, jamais seria tolerado em relação a um forasteiro. Diversas pessoas ouvidas pela pesquisadora questionaram a relação entre os moradores de comunidades fechadas e a sociedade. A principal indagação feita por eles é se o morador de um condomínio teria maior compromisso com o seu grupo local ou com a comunidade mais ampla, representada pela cidade.
Ainda em relação ao tema segurança, as obstruções representadas pelos condomínios horizontais, segundo os entrevistados, teriam o poder de transformar em inimigos reais de seus moradores os que antes eram indiferentes. Isso se deve à ausência de elementos que liguem esses núcleos a uma localidade específica ao seu redor. "Nenhum dos moradores de condomínio que entrevistei disse manter contato com vizinhos do lado de fora", afirma Ana Mércia.
Paradoxalmente, algumas pessoas ouvidas pela socióloga disseram que o refinamento das técnicas de segurança não oferece uma resposta adequada ao problema da criminalidade. Ao contrário, essa sofisticação pode levar a crimes mais qualificados e potencialmente mais violentos. Os muros e grades dos condomínios, destacaram os entrevistados, salientariam a especificidade de um determinado local, colocando implicitamente a questão de que algo especial existiria lá.
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