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Jornal da Unicamp 180 - Página 10
10 a 21 de julho de 2002
Agora
semanal
O intelectual e o homem
segundo Maria Amélia
Apontamentos da esposa marcam a rica trajetória
do autor de Raízes do Brasil
Sérgio Buarque de Holanda nasceu em 11 de julho de 1902, em São Paulo, na rua São Joaquim, bairro da Liberdade, em São Paulo. A primeira escola foi o jardim de infância do Colégio Progresso Brasileiro, no Largo dos Guaianazes, uma escola americana dirigida por Mrs. Bagby. As reminiscências tornaram-se meio confusas: um jardim espaçoso cheio de árvores, meninos e meninas brincando juntos, o carro grande puxado a cavalo que levava e trazia a criançada.
Os estudos primários foram feitos na Escola Modelo Caetano de Campos, na Praça da República. Professores e alunos dessa fase não deixaram grande marca. A maior parte do ginásio foi cursada no S. Bento, onde o clima era de camaradagem, de disciplina maleável. Entre os padres, recorda-se do simpático D. Pedro Egerath. Entre os mestres, especialmente de Afonso de Taunay, professor de História.
Paralelamente à vida escolar, a vida de menino nas ruas de Higienópolis, os calçamentos de paralelepípedos, o bonde 21, casas espaçosas com jardins e quintais. As férias eram geralmente passadas em Santos, onde residia um tio materno. Divertimento de menino? Matinês de cinema: o Central no Anhangabaú, o Royal na Sebastião Pereira, o High Life no Largo do Arouche. E caminhadas até as Perdizes, cruzando os brejos do vale do Pacaembu.
Juventude O Tiro 35 foi um divertimento, com o sargento Menezes filando chocolate quente em casa dos alunos. Aprendeu a dançar, como era moda, no curso de Yvone Daumérie. E disparou a dançar. No Paulistano, no Trianon, nas campinadas, maratonas de dança que varavam a noite, em dois clubes de Campinas ainda no tempo das andorinhas.
Nos últimos tempos de São Paulo, principiou a conviver com gente interessada nos mesmos assuntos culturais, principalmente literatura. Gente que permaneceu amiga e companheira pela vida afora: Guilherme de Almeida (por quem morria de admiração), Tácito de Almeida, Antonio Carlos Couto de Barros, Rubens Borba de Moraes. Aparições bissextas de Sérgio Milliet, começo de amizade com Mário de Andrade e Oswald. O grupo freqüentava a Confeitaria Fazzolli da Rua São Bento. Às vezes, o Pinoni ou a Vienense. Fora isso, tertúlias no escritório do Dr. Estevam de Almeida, pai do Guilherme e do Tácito, debaixo de um aviso onde se lia “Neste escritório só se trata de advocacia”.
Mudança para o Rio Em 1921, a família Buarque de Holanda transferiu-se definitivamente para o Rio, indo residir na Gávea. Sérgio conta que era uma casa simpática, antiga, com árvores de fruta e um riacho no fundo do quintal. Nesse mesmo ano 21, matriculou-se na Faculdade de Direito da Rua do Catete. Sérgio jamais foi um estudante assíduo, nem interessado. Rodrigo M. F. de Andrade comentava, divertido, sua total inabilidade no campo jurídico. Em compensação, foi na faculdade que nasceram duas grandes amizades: Prudente de Morais Neto e Afonso Arinos de Mello Franco.
Prudente era companheiro de conversa, entre as estantes da Livraria Garnier, onde ambos pesquisavam toda a literatura inspiradora do movimento modernista; companheiro de diálogos (ou monólogos alternados?) pela noite afora, nas mesas do Lamas; nas caminhadas pelos bairros da zona sul. Em 1924, Prudente sugeriu fundarem, juntos, uma 2ª revista do movimento. Encontrando Graça Aranha na Av. Rio Branco, falaram do plano.
Graça animou-se, sentaram-se os três numa mesinha da Casa Carvalho e, de lá, a revista saiu batizada (pelo Graça): Estética. Sua existência foi curta. Três números. Quase um ano de planos, entusiasmo, tenacidade, desistência. Essa tentativa em revista modernista não foi a primeira. Já em 1922, o grupo de São Paulo nomeara Sérgio representante da Klaxon no Rio.
Neto de presidente Nos primeiros anos de Rio, Sérgio encontrava-se sempre com Ribeiro Couto que, um dia, apresentou-lhe Manuel Bandeira, na esquina da avenida com São José. Ligaram-se logo e Sérgio escreveu sobre ele (ou sobre o Carnaval?) no Fon-Fon. Pouco tempo depois, apresentou-lhe Prudente. “Neto do Presidente!”, riu Manuel, e encaminharam-se os três para o Café Chave de Ouro. E para Sérgio e Prudente, Manuel virou logo o grande amigo.
A convivência com os amigos paulistas persistiu assídua, por algum tempo. Por volta de 1922, Guilherme casou-se, romanticamente, com Baby Barroso do Amaral, logo adotada e querida pela turma do marido. Residiram longa temporada no Rio e, em sua casa de Botafogo, reuniam gente, especialmente às 6ªs feiras. A toda hora lá apontavam os paulistas: Tácito, Couto de Barros, Rubens de Moraes, Mário de Andrade, Oswald. Do Rio, entre os freqüentadores habituais, lembra-se de Graça Aranha, Ronald de Carvalho, Renato de Almeida, Afonso Arinos, Di Cavalcanti e Manuel Bandeira, apaixonado pela Maria Henriqueta, irmã de Baby.
O grupo carioca, ainda mais numeroso, reunia-se às 4ªs feiras em casa do Ronald. Aí apareciam também Vila Lobos, Agripino Griecco, Peregrino Júnior, Paulo Silveira, Luís Aníbal Falcão. Era tempo do Brasil governado por Artur Bernardes. Falava-se de política, de arte moderna. E de literatura. As relações literárias não se restringiam à área modernista. Freqüentadores da Garnier eram igualmente Américo Facó, Jorge Jobim (pai de Tom Jobim) e Raul de Leoni.
Ribeiro Couto e Renato de Almeida trabalhavam na América Brasileira, revista financiada por Elysio de Carvalho, que costumava convidar para sua casa, na praia do Flamengo, os freqüentadores da redação. E havia a revista Mundo Literário, publicada pela livraria Leite Ribeiro, outro ponto de encontro, onde Sérgio conheceu Cecília Meireles.
Boemia e jornalismo Paralela à vida de estudante e jornalista, Sérgio levava uma movimentada vida de rua e de bares. À noite era o Lamas, no Largo do Machado. Foi lá que, por intermédio de Renato Palmeira, conheceu Cândido Portinari, estudante obscuro da Escola de Belas Artes. De tarde, havia o Bar Nacional e, às vezes, a Brahma.
Ao lado da boêmia, havia o ganha-pão. No caso, o jornalismo. Logo à chegada ao Rio, Sérgio entrou para o Rio-Jornal, onde redigia crônicas, fazia entrevistas. No O Jornal saíram dois artigos seus. Colaborou também na Idéia Ilustrada, revista dirigida por Cláudio Ganns e Américo Facó. Foi este amigo quem apresentou Sérgio na Agência Havas. Aí, aconteceu o pitoresco episódio de sua prisão no Palácio do Catete, em dias da Revolução de 1924, confundido com outro funcionário da Havas, anarquista mal-amado nas hostes do Bernardes. Na manhã seguinte, apareceu na Polícia, para soltá-lo, metade da turma do Bar Nacional.
Mais tarde, Sérgio passou para a United Press. Tornou-se, então, amigo de Múcio Leão e Austregésilo de Ataíde. Ao mesmo tempo, colaborava no O Jornal dirigido por Chateaubriand. Nessa época é que travou relações de amizade e interesse cultural com Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde da crítica literária. Sempre a serviço do O Jornal, esteve em Minas e daí nasceu a amizade com Pedro Nava, Carlos Drummond de Andrade, Emílio Moura e João Alphonsus.
Englobando toda a década de 20, surge na vida de Sérgio a pessoa de Rodrigo M. F. de Andrade. Sérgio não lembrava o dia exato em que o conheceu, mas foi nos seus primeiros tempos de Rio. De conhecidos a amigos, de amigos a amicíssimos, a evolução foi rápida e a duração longa. Quase 50 anos de amor. Rodrigo foi sempre o confidente, o assistente. Levado por aquele senso de responsabilidade, continha a própria soltura mental e constituía-se em elemento ponderador diante do que chamava a “insensatez de Sérgio”.
Deu a louca Um dia (em 1927?) deu a louca em Sérgio. Distribuiu os livros entre os amigos e aceitou a proposta para dirigir o jornal O Progresso em Cachoeiro do Itapemirim, Espírito Santo. Lá, era o escreve-tudo. Por causa de O Progresso, tornou-se conhecido como Dr. Progresso, e assim o chama Rubem Braga. Certo dia, procuravam um cidadão formado em direito para substituir o promotor, em júri na cidade de Muniz Freire. Descobriram Sérgio, que, além de aventurar-se numa acusação jurídica sem o respaldo de um só livro de direito, enfrentou caminhada de seis horas em lombo de burro. Claro que os dois assassinos foram absolvidos.
Voltando do Espírito Santo, Sérgio retomou o trabalho na United e no Jornal do Brasil (ou O Jornal). Recomeçou a comprar livros. Foi o princípio de sua biblioteca de hoje. Retomou logo os convívios interrompidos pela temporada capixaba. Foi por esse tempo que apareceu Gilberto Freyre e que a Revista do Brasil vivia então sua 2ª fase, com o título comprado de Lobato por Chateaubriand.
Em 1929, Chateaubriand propôs a Sérgio uma viagem à Alemanha, Polônia e Rússia, enviando reportagens para O Jornal. Embarcou em junho, no Cap Arcona. Na mesma viagem seguia Josias Leão. Juntos, desembarcaram em Hamburgo, rumaram para Berlim, cautelosos, com pouco dinheiro. Sérgio não conseguiu regularizar os papéis em tempo de alcançar a Rússia, mas, em setembro, foi até à Polônia. Com passe de trem gratuito, percorreu quase todo o país. Recorda sempre o frio terrível, causador de uma gripe notável.
Gente interessante Regressando a Berlim, a embaixada o indicou para trabalhar na revista Duco, redigida em alemão e português e especializada nas relações comerciais teuto-brasileiras. Depois, recomendado pelo consulado, traduziu scripts de vários filmes da Ufa, entre eles o Anjo Azul. A correspondência para O Jornal era meio esporádica, mas deu para entrar em contato com gente interessante: Thomas Mann, Willy Muzemberg (deputado comunista no Reichtag), Chattopandiaya (príncipe hindu relacionado com comunistas), Henri Guilbeaux (francês, pacifista, que fundou na Suíça a revista Demain, onde colaboraram Bertrand Russel, Stefan Zweig, Romain Roland).
Sem regularidade, assistiu às aulas de História e Ciências Sociais na Universidade de Berlim. Algumas aulas de Friedrich Meinnecke, professor de História. Familiarizando-se com o idioma da terra, pôs-se a ler os alemães: o dito Meinnecke, Max Weber, o crítico Gundolf e, na ficção, Kafka, Rilke, Hoffmanstahl, Stefan George. Em Berlim, Sérgio viveu uma época de grande euforia mundana e boêmia, com namoradas e amigos internacionais.
Ao mesmo tempo, presenciou a grande eclosão do Nazismo, com o partido arrancando para os primeiros lugares entre os mais votados. Com a revolução de 30, as possibilidades de trabalho escassearam. A revista Duco foi suspensa. A Ufa diminuiu a tradução de filmes. Sérgio teve de regressar ao Brasil, pelo Natal de 1930. Enquanto viajava, nasceu em Berlim Sérgio Georg Ernst, seu filho com Anne Margerithe Ernst.
Na volta da Alemanha, a consolidação da carreira
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