Imaterialidade do conhecimento
ganha forma no ciberespaço
ENTREVISTA: JAVIER BUSTAMANTE
ÁLVARO KASSAB
Imagens metafóricas e boas histórias são recorrentes na fala do professor espanhol Javier Bustamante Donas, da Universidade Complutense de Madri (UCM). Uma dessas histórias tangencia o objeto de estudo do intelectual, podendo servir de preâmbulo para aqueles que pretendem conhecer suas idéias. Conta Bustamante que, na sua juventude, ele e um grupo de amigos faziam observações do céu madrilenho, na condição de astrônomos amadores. Um homem sem posses, ao perceber que seu filho gostava de astronomia, pediu ao grupo que levasse a criança nas incursões noturnas pela periferia da capital espanhola, pois trabalhava de noite e não tinha dinheiro para lhe comprar um telescópio. O garoto era deixado pelo pai no começo da noite do sábado num posto de gasolina, onde se juntava ao grupo de Bustamante. Na manhã do dia seguinte, seu pai ia buscá-lo no mesmo local. O garoto, que cursa hoje pós-doutorado na Universidade de Princeton, é uma das promessas da astrofísica espanhola.
Bustamante, que como astrônomo amador foi co-descobridor em abril de 1994 da supernova SN1994I, na Galáxia do Rodamoinho (Messier 51), narra a história para mostrar a importância de se dedicar uma atenção especial aos estudantes que estão dando os primeiros passos na ciência.
“O papel do professor é fundamental, mas não somente dando aulas, como também fomentando o amor pelo conhecimento, pela aventura de aprender”. O conhecimento, de resto, está no centro do trabalho do professor, que vai dar aulas nos próximos quatro meses no Instituto de Geociências (IG) dentro do programa “Cátedra Ibero-Americana/Unicamp- Universidades Espanholas”, implantado pela Coordenadoria de Relações Institucionais e Internacionais (Cori) em parceria com o Banco Santander. Suas disciplinas são “Ciência, tecnologia e sociedade: estratégias de pesquisa”, e “Integração digital e novas formas de cidadania: direitos humanos na Internet”.
Como fica explícito na entrevista que segue, Bustamante avalia que a única possibilidade de se pôr fim ao paradigma neoliberal insustentável é mudar as bases da riqueza e do bem-estar. “A imaterialidade da informação e do conhecimento é a arma estratégica e fundamental”, prega.
Otimista, o docente acredita que a transparência informativa e a participação derivadas da Internet, às vezes sem o controle das corporações midiáticas, poderiam resultar num mundo mais justo. Nesse âmbito, avalia, o indivíduo tem a oportunidade de difundir a informação pessoal de impacto real, no mundo do conhecimento, por meio do ciberespaço. “A democracia, os direitos humanos e a defesa da liberdade de expressão tornaram-se, no ciberespaço, fatores fundamentais de cidadania”, ensina Bustamente. Na opinião do docente, o acesso a essas possibilidades de trabalho e ao desenvolvimento pessoal será um importante vetor de democratização. “No futuro, integração social será integração digital, e exclusão social será exclusão digital”. Acontece, acredita Bustamente, que o futuro está chegando antecipadamente.
A urgência
Ciência e tecnologia são elementos modernos, mas não clássicos do pensamento. São coisas que não identificam o ser humano nessa vida plena, que é, entre outras coisas, metafísica e religiosa. Às vezes, os próprios humanistas sobretudo os filósofos , deixam de refletir sobre as coisas que são urgentes, e nada é mais urgente hoje do que refletir sobre o papel da ciência e tecnologia em nossas vidas, e como isso muda qualquer área da atividade humana.
A outra ponte
Os cientistas foram educados principalmente para desenvolver teoria e inovação, mas nem sempre têm uma percepção ética da responsabilidade que implica uma mudança gigantesca da realidade humana. Falava-se antes que as idéias mudavam o mundo. Hoje, a forma de mudar o mundo é através da técnica e da tecnologia. Robert Moses, o arquiteto que deu à cidade de Nova York o desenho que tem atualmente, idealizou uma cidade para as classes mais ricas e favorecidas. Projetou então 300 pontes em Long Island para dar uma imagem especial da metrópole. Quando essas edificações foram analisadas, constatou-se que faziam uma discriminação importante, já que tinham uma altura livre de apenas três metros. Foram feitas apenas para carros, não para o transporte público quem não tinha carro, não entrava na área. Assim, muitas vezes, quando achamos que temos que reagir contra uma política de discriminação, percebemos que a tecnologia é um elemento neutro, uma coisa que não encarna opções religiosas, políticas, ideológicas etc. Por isso temos que prestar uma atenção especial aos projetos técnicos. Eles são tão políticos quanto as próprias leis.
A equação
A visão centralista dos países do primeiro mundo é quase sempre idílica, configurando-se numa equação pelo meio da qual a ciência e tecnologia vão gerar benefício social para a toda a humanidade. É a famosa teoria do derrame, na qual a tecnologia começa a criar objetos que vão ser usados pelas classes mais altas, mas, depois, com os custos caindo, acabam se espalhando para outros segmentos da sociedade, inclusive para aqueles que, no começo, pouco se beneficiavam dela. A visão dos países periféricos não é a mesma. Os problemas da tecnologia nos países ricos são de excesso de tecnologia. A questão central é: as relações entre a ciência, a tecnologia e a sociedade não são tão claras e nem tão firmes como comumente se pensava.
Informação de C&T
É preciso apostar numa consciência social que possa avaliar os riscos e benefícios dos processos de C&T. Os cidadãos precisam ter uma cultura tecnológica que lhes permita colocá-los como atores responsáveis pelos processos de tomadas de decisões, nos quais são definidos muitos dos mecanismos de mudança social. Isso quer dizer que precisamos que os cidadãos tenham conhecimento de C&T, porque é a partir daí que vai se transformando a vida social. Não basta, portanto, ter conhecimento da política e da cidadania, mas também ter uma informação científica e tecnológica. Por isso, a divulgação desses problemas é importante. Os cientistas precisam também ser conscientizados. Eles têm que saber que são responsáveis também pela utilização que vai ser feita das coisas que desenvolvem. É preciso entender como uma mudança no desenho de uma tecnologia X pode beneficiar a sociedade, e não apenas aqueles que a promovem. Existe uma diferença entre o padrão de qualidade científico-tecnológica e o padrão de qualidade social, o que poderíamos chamar de relevância.
A nova ética
A questão ética vai ter múltiplas dimensões no futuro. Uma delas é a criação do ciberespaço e do mundo virtual. Até agora, os intercâmbios entre as pessoas eram feitos face a face. Mas no mundo virtual você não encontra a pessoa com a qual está se relacionando. Trata-se de um mundo anônimo, de identidades ocultas. Como criar a confiança necessária quando você não encontra a pessoa com a qual você mantém contato? Isso cria uma dificuldade importante. No teletrabalho, por sua vez, você está desempenhando funções para uma empresa que fica distante. Nesse sentido, as relações trabalhistas passam a ser totalmente diferentes. As coisas que você faz na Internet espalham-se pelo mundo interiro, e cada país tem normas jurídica e ética diferentes, mas a informação que você está disseminando tem um âmbito globalizado. Como harmonizar as características éticas de cada país com fenômenos que se vêem em tudo quanto é canto? É muito difícil. Vamos ter de gerar uma ética comum baseada na dignidade humana e em conceitos que vão fazer a diferença real.
O arquipélago
Até agora, o medo do novo e da diferença é uma característica própria dos povos de muitos países. É o medo ao estrangeiro, a tudo aquilo que é diferente de nós. No futuro, a humanidade vai se constituir através da metáfora do arquipélago. São ilhas independentes unidas pelo mar que as separa, por isso formam uma comunidade. Isso já está delineado hoje: temos diferentes disciplinas, umas humanísticas, outras técnicas ou científicas; diferentes línguas, diferentes aproximações para entender o sentido da vida. Teremos que harmonizar tudo isso, aceitando o valor da diferença, sem tentar uma uniformização que possa eliminar as especificidades de cada uma das sociedades.
Ética da informação
A ética da informação vai ter que respeitar essa diferença e fazer dela uma vantagem. Essa ética não era indispensável havia muito tempo. O homem não tinha capacidade técnica para transformar o mundo. Mas, agora, temos essa capacidade. A tecnologia multiplicou o âmbito, a potência e o alcance das ações humanas. Isso quer dizer que a nossa responsabilidade é muito maior agora. O problema é que a técnica multiplicou o poder do ser humano, mas a ética ainda não conseguiu multiplicar o sentido da responsabilidade que é fundamental nesses dias. No lugar de adaptarmos a tecnologia para uma vida mais humana, fizemos o caminho inverso. Sem perceber, assumimos formas de agir e de viver mais próprias da tecnologia, causando a perda do elemento humano e social.
Internet anárquica
Sou um defensor da estrutura anárquica da Internet. Uma vantagem fundamental é que nas mídias tradicionais as pessoas são consumidoras de informações, mas não produtoras de informação. Na Internet, existe a figura do “prosumidor”, um híbrido de produtor e consumidor. Por isso é especialmente importante defender a liberdade de expressão através da Internet porque nela todos temos a possibilidade de comunicar nossas idéias. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1949) defende o direito à livre expressão das idéias, mas se você não tiver os meios para fazer isso, você nunca poderá. Para ter acesso à mídia é preciso muita grana ou “QI” quem indica. Porém, na Internet, é totalmente diferente. Existe essa possibilidade de produzir informação de uma forma superbarata e ampliar o leque de possibilidades humanas.
Solidariedade real
A Internet tem uma estrutura que cria uma ética da solidariedade real. O fato de ter aparecido o fenômeno das comunidades virtuais ou comunidades de intercâmbio, nas quais as pessoas baixam arquivos de músicas, de livros e de qualquer coisa que possa ser digitalizada, onde a grana não tem entrada, é uma coisa absolutamente nova que quebra as regras dos negócios fundamentais, além de dar um novo sentido à economia. Até agora, as coisas que tinham valor eram aquelas possuídas por poucos. Um selo é valioso quando você tem um único exemplar muito raro. Quando surgem outros exemplares, nem vale tanto. Na sociedade da informação, e no âmbito específico da Internet, as coisas acontecem do avesso. Se você for a única pessoa que tem um correio eletrônico ou um fax, não vale nada, já que você não tem com quem se comunicar. Começa a valer quando outras pessoas têm; vale muito quando todo mundo tem. Criam-se então serviços para todo essa comunidade virtual. Quer dizer que nesse caso você é rico quando seus parceiros também são ricos em termos de informação. Ela pode ser copiada indefinidamente por muitas pessoas ao mesmo tempo, fazendo-as todas mais ricas. Temos a semente de uma nova ética da solidariedade.
O bazar e a catedral
Há dez anos ninguém poderia imaginar que uma comunidade libertária como a Linux poderia produzir um sistema operacional tão estável e tão bem feito, assim como outras peças de software que são realmente impressionantes. Quebra-se o modelo da catedral com seus especialistas e sua linguagem esotérica, que é substituído pela metáfora do bazar. Você arma sua barraca, há um sistema de trocas. Ninguém possui o produto, ele não é de código fechado. Vai se ampliando e se aperfeiçoando através das contribuições e de muitos fatores diferentes. Isso quer dizer que o bazar pode ser o novo modelo do desenvolvimento da ciência. Você compartilha as coisas, não é detentor do código. Simplesmente não deixa que aquilo que já foi desenvolvido tenha de sê-lo novamente.
A ética dos hackers
Quero diferenciar os crackers, que gostam de prejudicar os outros, e os hackers, que são as pessoas que brincam no computador de forma criativa mas não lêem o manual de instruções, por não aceitarem simplesmente uma teoria neoliberal no uso do equipamento. O hacker não quer ficar mais rico, não busca a ascensão social.
Os perigos da cibercultura
Não seria capaz de fazer um catálogo de riscos sobre as mídias tradicionais, por uma razão: a definição de oportunidade tem a ver com sua própria percepção. Isso quer dizer que as mídias tradicionais podem desaparecer perfeitamente engolidas pela hipermídia se não tivermos a capacidade de trocar a polaridade de uma situação de desafio que pode ser de ameaça por uma situação de nova oportunidade. As novas edições eletrônicas, por exemplo, estão virando uma parte importante do negócio, conseguindo inclusive atrair anunciantes. Nesse caso, os jornalistas têm que reagir quase em tempo real, mas ficam com uma postura mais independente, escrevem com um certo distanciamento. A própria evolução do papel eletrônico vai ser também um elemento que pode ser perfeitamente aproveitado por uma mídia tradicional. É verdade que o papel tem os dias contados, o consumidor vai andar pelas ruas com várias folhas de papel eletrônico. Ele existe, é caro ainda, mas já está sendo bastante consumido nos EUA. Mais: está ficando cada vez mais barato e mais fininho. Daqui a alguns anos, teremos a possibilidade de usar uma combinação de papel eletrônico com chips, que permitirá um contato com as redes públicas de informação que você vai poder carregar nas suas páginas de papel, com uma vantagem essencial: não haverá a despesa com celulose do jornal tradicional. Então, existiriam formas de mudar para novas modalidades de imprensa que vão permitir a subsistência dos jornais. Mas seus proprietários vão ter que perceber isso como uma oportunidade e não como uma ameaça. Do contrário, vai dar problema. A edição eletrônica, por exemplo, tem um valor agregado, que é a atualização bem mais rápida do que a feita na edição impressa. A edição impressa vai passar a ser uma parte do negócio, mas não a parte do leão.
O calhamaço
Há pouco mais de uma década, Bill Gates queria que a Enciclopédia Britânica fosse distribuída pela Microsoft pelo sistema Windows. Os donos da Britânica rejeitaram a proposta alegando que o negócio deles era papel. A Microsoft passou então a distribuir seu próprio produto. O que aconteceu? Há dois anos, a Britânica demitiu todos os seus vendedores porque praticamente não se vende mais em papel. Eles não perceberam que a enciclopédia em DVD era a versão evoluída desse monstro de papel que tínhamos nas casas.
O livro
O livro vai ser uma das culturas, mas não a única possível. Estamos passando da galáxia de Gutenberg a uma galáxia da Internet com a interação de mídias tradicionais com novas características.
Incógnita
Estamos vivendo um momento de transição absoluta. Ninguém sabe como vai ser o futuro, porque ele está sendo construído pelos nossos próprios fatos. Uma das características atuais é que parece que o futuro está chegando antecipadamente. Não há tempo para reagir. A expressão “novas tecnologias” virou uma piada. Elas ficam obsoletas num prazo de dois, três anos. Ninguém sabe qual será o resultado final. Por isso acho importante essa interação de elementos técnicos, históricos e humanos. E necessário compreender esse processo a partir de uma reflexão holística e global. É preciso dedicar um tempo para desenvolver nossas próprias capacidades, e também um tempo para poder manter esse capital intelectual, que é a única coisa importante que o trabalhador tem. É fundamental a reciclagem, a atualização constante de seus conhecimentos. Uma característica do mundo do trabalho é que no ano de 1935 foi feita uma pesquisa que mostrava que o aprendido numa escola de engenharia era suficiente para toda uma vida profissional. Atualmente, o chamado ciclo de vida dos conhecimentos está em três anos e meio. E vai ser reduzido aos poucos.
A universidade
O papel da universidade não pode ser simplesmente o de formação de pessoas com conhecimento técnico para a sociedade. A universidade tem um papel de criadora de valores, e tem também um papel de garantir o poder transformador da educação. A universidade deve fornecer um conjunto de padrões que nos permitam transformar a sociedade. Ou seja, não é simplesmente a reprodução dos modelos de ensino e de fazer as coisas. Ela precisa fornecer uma estrutura para que as coisas possam ser feitas de uma forma diferente. Um dos problemas da universidade é a articulação com o mundo da inovação e com um mundo da indústria e suas relações com o Estado. Por um lado tem que manter uma funcionalidade como motor do desenvolvimento social técnico e científico, sobretudo , mas também tem que manter uma posição de autonomia ou de independência como criadora de valores e modelos. A universidade não pode se apoiar simplesmente na criação de especialistas. Por definição, o especialista é a pessoa que sabe mais e mais de cada vez menos, e assim o especialista perfeito é a pessoa que sabe absolutamente tudo e absolutamente nada. Precisamos de pessoas que tenham uma compreensão mais global de fenômenos de quaisquer tipos. Muitos dos últimos prêmios Nobel nas áreas de Física e Química atuam na área de divisa entre disciplinas. Os grandes problemas que enfrenta a humanidade atualmente só podem ser resolvidos por equipes que podem agrupar capacidades, conhecimentos, valores, dinâmicas de produção etc. A universidade é responsável pela criação e promoção de um perfil de técnico e de cientista que deve agir como um tradutor. O técnico e o cientista são tradutores que transformam uma demanda social, uma necessidade de conhecimento. Não podemos perder de vista sempre essa percepção da atividade científica e técnica como uma atividade puramente humana e social. Temos que pensar que somos a sociedade mais bem-informada da história, mas informação não se transforma automaticamente em conhecimento. Conhecimento, da mesma forma, não vira sabedoria. Nós temos um conhecimento e informação muito horizontal. A universidade precisa verticalizar esse conhecimento.
Reflexão
O poeta Antonio Machado escreveu há muito tempo: “conheci um homem que aprendeu tantas coisas na vida que não teve tempo para pensar nessas coisas”. Somos um pouco isso. Desenvolvemos coisas muito interessantes, mas às vezes perdemos a perspectiva de refletir com calma sobre as conseqüências que vão ter na nossa vida. Uma bomba de última geração é uma vitória da técnica humana, mas é também uma reposta brilhante para um problema estúpido. Em lugar disso, precisamos encontrar novas formas de questionar a realidade, novas formas de interpretar os problemas. Muitas vezes a melhor forma de resolvê-los é redefinindo-os. Se tivéssemos um conceito de justiça social que fosse único, eliminaríamos possivelmente o terrorismo e necessidade de ter que fabricar uma bomba termobárica, que é uma vitória da técnica e uma derrota do conhecimento humano.
A horizontalidade
A Internet está criando novas formas de participação social horizontal como nunca se viu. No caso da Guerra do Iraque, muitas pessoas perceberam que o governo estava controlando a imprensa. Aumentou enormemente o número de consultas de internautas norte-americanos às mídias eletrônicas européias ou a outras fontes alternativas. Michael Moore é a maior prova disso. Os atentados de 11 de março último em Madri também foram emblemáticos. Tínhamos eleições gerais no parlamento da Espanha quatro dias mais tarde. O governo sustentou que o ETA havia provocado a tragédia. Sabia que, se o povo conhecesse a hipótese de um atentado islâmico relacionado à participação espanhola na guerra do Iraque, o povo reagiria. Nesses dias a doutrina oficial e o movimento do governo eliminaram qualquer referência a uma hipótese islâmica. De repente, através da Internet começou a ser espalhada a informação de que um grupo islâmico havia provocado a tragédia. Nesse intervalo de apenas quatro dias, a opinião pública mudou totalmente na Espanha. O pessoal começou a se organizar através de torpedos eletrônicos de telefonia celular. Pela Internet, foram convocadas várias manifestações simultâneas na sede do Partido Popular na região central de Madri. O povo começou a se organizar por meio de outros tipos de mecanismos horizontais que ultrapassam totalmente a capacidade de censura dos governos. Isto é uma coisa difícil de acreditar. O ETA, por exemplo, tinha página na Internet que trazia informações totalmente ilegais, como por exemplo fabricar coquetel molotov, como fazer atentados etc. Esse site era abrigado dentro de um provedor belga. Isso porque a Bélgica tem uma legislação mais aberta de proteção ao direito de expressão. Quando o governo espanhol protestou, os belgas responderam que essa demanda deveria ser encaminhada através da via judicial. Eles, como poder executivo, não poderiam fechar a página. Muitos internautas passaram então a bombardear com e-mails o provedor. Aconteceu que as linhas de saída do provedor belga ficaram tão entupidas que o próprio provedor encerrou o contrato com o ETA. Isso quer dizer que, quando existe um número de pessoas suficientes, qualquer site que pregar a violência, o racismo e outras formas de opressão pode ser fechado automaticamente através das ações dos próprios internautas. É um anarquismo criativo dentro da Internet. É compreensível que os governos estejam apavorados, mas para o cidadão é uma possibilidade totalmente nova.
A medida
Até agora, a tecnologia favorecia o poder, o status quo, mas não potencializava as áreas mais individuais da sociedade, não dava um novo poder ao cidadão. A informática pessoal está saindo dos esquemas tradicionais de desenvolvimento de tecnologia que favoreciam grandes interesses. Sempre aconteceu isso, as coisas estão mudando muito, por isso que é tão importante democratizar a tecnologia. O Brasil é pioneiro nessa área. Há experiências como a do Rodrigo Baggio, chamada Comitê para Democratização da Informática, na qual computadores que ficam obsoletos acabam sendo usados para ensinar informática às pessoas das favelas. São criadas escolas de informática e de cidadania, onde é concebida uma infra-estrutura de libertação. Você passa a ser dono do seu destino, passa a ter uma informação que é indispensável hoje para encontrar um posto de trabalho digno. Não precisamos muitas vezes da tecnologia mais avançada, mas sim daquela apropriada, que tenha a medida do próprio ser humano. Isso é muito mais importante do que a velocidade dos processadores. A informação pode ser compartilhada sem você perder nada do que tem.
Soberania
Temos que pensar agora qual é o valor agregado do Estado. A soberania nacional está baseada em várias coisas como a defesa, com os impostos sobre as coisas que têm valor, a imigração. Mas o que acontece quando o conhecimento e a informação, que são os fatores básicos da riqueza atualmente, podem ultrapassar as fronteiras como os fantasmas atravessam os muros dos castelos na Escócia? Qual o valor agregado do Estado quando a defesa depende de organismos como a Otan? O conceito de soberania nacional está sendo transformado radicalmente, ao mesmo tempo, está sendo criado um conceito de cidadania global que ultrapassa o conceito de soberania nacional. É benéfico mas cria tensões de signos opostos. De um lado, estamos criando instituições supranacionais Mercosul, União Européia blocos que vão além do conceito do Estado nacional. Por outro lado, existem tensões regionais no mundo inteiro. Isso quer dizer que teremos que nos acostumar a ter uma identidade nacional e outra, supranacional. Essa diferença cultural é a nossa riqueza, ela não pode ser eliminada. Não podemos considerar inimigo o estrangeiro que tem uma outra língua, uma outra cor de pele. As novas formas de interação social têm a ver com o acesso à informação e ao conhecimento. Essa vai ser a divisa da interação ou da exclusão social no futuro. Vai ser uma interação digital ou exclusão digital. Vamos ter que aprender a dar conta de fenômenos que são por essência supranacionais. A informação está em todos os lugares.
O gap
A informação pode ser compartilhada sem você perder nada do que tem, mas isso não acontece automaticamente. Em muitos países observa-se que esse abismo que existe entre os que possuem e os que não possuem informação, que é uma nova forma de riqueza, está aumentando. Não está sendo eliminando esse gap, o que quer dizer que não estamos fazendo nossa tarefa de acordo. A tecnologia é importante, mas precisa ficar a serviço da humanidade e de interesses claramente definidos. Por isso, como falei, não é suficiente uma avaliação da qualidade científica de um empreendimento; tem quer também uma avaliação da qualidade social, da relevância, em como isso vai refletir em forma de benefícios para a sociedade.
A banca de jornal universal
A Internet é um espelho da sociedade, você encontrará nela tudo que tem numa banca de jornal. O que é preciso é ter critério de seleção, da mesma forma que numa banca ou numa biblioteca. Temos que educar a população no critério e não no limite de liberdade. A liberdade de expressão e de configuração da Internet promove a democracia, a solidariedade e os direitos humanos. A Internet, como disse, não só fornece informação, mas também cria informação. É uma janela para o mundo nos regimes ditatoriais, é uma forma de renúncia, de obter informação quando ela não chega por outros meios. A livre circulação de idéias é a essência da Internet. Toda a tentativa de suprimir a liberdade de idéias em nome da boa ordem da sociedade é um ataque frontal à ética da solidariedade. E o mais interessante é que essas tentativas provavelmente sejam tecnicamente inúteis. O conceito de rede em que está baseada a Internet é a única estrutura topológica que pode crescer regularmente sem comprometer a própria estrutura. Uma árvore, por exemplo, tem que ter uma raiz em proporção à sua copa, mas o conceito de rede pode crescer sem um modelo padrão. O controle da Internet deve ser igual aos demais se você cometer um delito, é punido, mas não que deve existir uma censura própria falando que a Internet deve ser controlado porque ameaça o futuro do mundo. Provavelmente vai ser praticamente impossível controlar tecnicamente o que os usuários fazem na Internet. Trata-se de uma boa notícia.
Integração
É preciso integrar a técnica com as humanidades. O perfil mais revolucionário funde o cientista que tem conhecimento de várias técnicas ao humanista que vê técnica como elemento fundamental, e não como elemento de segunda ordem. O ideal é que ocorra a aproximação entre as duas abordagens, quebrando essa dicotomia entre o cientista e o humanista