Paraplégicos submetidos a tratamento
com estímulos elétricos começam a readquirir movimentos voluntários
O resgate dos lesados
medulares, passo a passo
LUIZ SUGIMOTO
É intenso o vai-e-vem de cadeiras de rodas no terceiro piso do Hospital das Clínicas (HC) da Unicamp, que concentra o atendimento de ortopedia e traumatologia. No final do extenso corredor fica o ambulatório de reabilitação sensorial e motora para pacientes com lesão medular, onde paraplégicos e tetraplégicos se submetem a uma longa rotina de exercícios. Ali, Valéria de Souza alegrou-se por sentir dor. Doeu a perna direita, insensível havia 11 anos, desde o acidente de automóvel num carnaval que terminou literalmente em cinzas. Depois da dor vieram os movimentos involuntários provocados por impulsos elétricos. Hoje, ela própria controla as articulações do joelho e tornozelo. Sua esperança é grande porque o mesmo processo está se verificando na perna esquerda.
Foi no mesmo ambulatório que a publicitária Júlia D’Amico de Almeida Serra, vítima de infarto medular durante uma cirurgia, voltou a pedalar uma bicicleta para frente e para trás. Sua primeira vitória tinha sido a de mexer os dedos do pé esquerdo e um músculo da coxa. E foi ali que o cirurgião vascular Marcos Figueira, com lesão medular provocada também por acidente de trânsito, conseguiu ficar de pé sobre uma perna, iniciando agora o trabalho com o outro membro inferior. Como Valéria, ambos são pacientes que no começo eram movidos a impulsos elétricos e agora executam movimentos voluntariamente. Justa recompensa pela determinação dessas pessoas, que ainda têm muitas batalhas pela frente.
“Por favor, evite qualquer tom sensacionalista”, pede ao repórter o bioengenheiro Alberto Cliquet Junior, que possui a carreira dedicada ao desenvolvimento de equipamentos e próteses para paraplégicos e tetraplégicos, além de outros dispositivos para pesquisas de ponta na área médica. Professor titular do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) e coordenador deste programa de reabilitação financiado pela Fapesp, Cliquet Jr. enumera as razões para se acautelar e não despertar no leitor a ilusão de que já possuímos a cura para a fatalidade. “O tratamento pode estar beneficiando os três pacientes, mas não aos demais. Ainda não compreendemos o mecanismo que permitiu a recuperação de movimentos voluntários por parte desses paraplégicos. Sendo incompreensível porque isso acontece e porque acontece com uns e não com os outros , estamos longe de poder afirmar que descobrimos a cura. Além disso, não temos condições de atender mais do que as 60 pessoas já em tratamento”, justifica.
A estimulação elétrica neuromuscular, que visa a restauração de movimentos e da sensibilidade em membros lesionados, artificialmente, é uma técnica estudada desde os anos 1980. Grosso modo, o que se faz é ligar eletrodos controlados por computador em músculos dos membros paralisados, transmitindo pequenos choques que provocam uma contração muscular. As pernas, por exemplo, que antes permaneciam dobradas e imóveis, enrijecem e oferecem ao paciente firmeza para que se levante e dê alguns passos com o amparo do andador. Sensores instalados nos pés possibilitam que o toque no solo seja percebido numa parte saudável do corpo, acima do nível da lesão medular, como os braços no caso dos paraplégicos. Com a repetição dos exercícios, há pessoas que voltam a caminhar quase que normalmente com o auxílio de estímulos elétricos.
Terapêutica Em meados dos anos 1990, percebeu-se que pacientes tratados com a estimulação elétrica neuromuscular estavam readquirindo movimento e sensibilidade nos membros afetados, voluntariamente, mesmo que de maneira parcial. “Quando se dá o diagnóstico de paraplegia ou tetraplegia completas, não significa que um milhão de neurônios foram seccionados. Trata-se de uma definição funcional, indicando que abaixo do nível de lesão o paciente não apresenta qualquer movimento ou sensação. Talvez o mal não seja tão completo e o indivíduo tenha preservado um potencial clínico que exploramos através da estimulação”, pondera o pesquisador da Unicamp.
A medula espinhal é um feixe de nervos que vai da base do cérebro até a cintura. Lesões sérias na medula interrompem o envio de impulsos do cérebro para todas as partes do organismo abaixo da área danificada, e vice-versa. A paraplegia ocorre quando há uma secção nas vértebras toráxicas, lombares ou sacrais, imobilizando as pernas e comprometendo parcialmente o tronco. Na tetraplegia, a secção acontece nas vértebras cervicais, paralisando os quatro membros e o tronco. No exame chamado de potencial evocado, aplica-se um leve choque no membro paralisado e um aparelho indica se o estímulo atravessa a medula e chega ao cérebro. Quase sempre o estímulo pára na altura da espinha onde se deu a lesão, uma vez que os neurônios mortos não se regeneram.
Saber porque esse estímulo, às vezes, encontra um caminho alternativo pela medula e atinge o cérebro, restabelecendo a conexão entre as duas pontas do sistema nervoso central, é a dúvida que ainda impede os pesquisadores de hastear a bandeira da esperança para os lesados medulares. Há dois anos, quando a revista Pesquisa Fapesp publicou ampla reportagem sobre o trabalho coordenado por Alberto Cliquet Jr. na Unicamp, essa conexão era ainda precária. Festejava-se, por exemplo, que Marcos Figueira, com o decorrer dos meses de tratamento, passasse a exigir apenas quatro ao invés de oito eletrodos nas pernas para ficar de pé e dar alguns passos. Agora que ele, Valéria e Júlia já conseguem “caminhar” por sua própria cabeça, as conjecturas aumentam. “São resultados interessantes e comprovados, mas devemos deixar claro que eles acontecem com um paciente e com outros, não”, insiste o bioengenheiro.
Tetraplégicos Outro avanço importante contempla os tetraplégicos, antes impedidos de realizar o treinamento de marcha por causa da paralisia dos membros superiores. A fisioterapeuta Daniela Cristina Leite de Carvalho, que possui mestrado em bioengenharia na USP de São Carlos e faz doutorado na Unicamp, assiste esses pacientes durante os exercícios cada um deles participa de duas sessões por semana, inicialmente por seis meses. Ela explica o funcionamento de uma esteira ergométrica equipada com suspensão dinâmica, onde alças sustentam o peso do corpo e permitem ao tetraplégico dar seus passos por meio da estimulação elétrica, sem forçar tronco e braços. “O objetivo dos exercícios é aumentar a massa corpórea desses pacientes, que geralmente ficam condenados ao sedentarismo. Depois de dezesseis meses da lesão medular, sua massa óssea se reduz para dois terços da original, tornando-os muito suscetíveis a fraturas. O treinamento melhora o condicionamento físico e, conseqüentemente, a habilidade nas atividades do dia-a-dia”, afirma.
Segundo Cliquet Jr., a reversão da osteoporose pode parecer pouco importante para quem provavelmente permanecerá em cadeira de rodas, mas lembra que a simples transferência do paciente para uma maca ou para a esteira pode levar a fraturas. “O aparelho também evita o risco decorrente da siringomielia pós-traumática, patologia que afeta 1 em 4 tetraplégicos, em que o líquido raquidiano ocupa o espaço do neurônio morto na medula. Se o indivíduo fizer um esforço muito grande para ficar em pé ou usando os braços num andador, esse líquido pode subir por pressão hidrostática e matar neurônios acima da lesão”, esclarece.
O pulo do gato
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Pesquisadores como Alberto Cliquet Jr., da Unicamp, trabalham com a hipótese de que a medula talvez mantenha um grau de independência em relação ao cérebro maior do que se pensa, apresentando uma capacidade ainda não compreendida de se adaptar diante de agressões. O mestrando Enio Walker Azevedo Cacho, fisioterapeuta que faz parte do grupo coordenado pelo professor, exibe no computador figuras de um gato e seu sistema de locomoção. Explica que esse felino, quando sofre uma lesão séria na medula, consegue reaprender a andar quase que normalmente. “O homem, em sua história evolutiva, perdeu essa capacidade de automação dos sistemas inferiores, possivelmente pela necessidade da postura bípede”, observa.
Sobre isso, Cliquet Jr. lembra que o cérebro do homem quadruplicou de tamanho um milhão de anos depois que ele se tornou bípede, demonstrando que seu controle primitivo de movimentos está na medula. “É esse movimento que estimulamos artificialmente aqui no ambulatório. Com a geração do padrão repetitivo, o movimento passa a ser aprendido pelo sistema nervoso do lesado medular. Nossos pacientes apresentam movimentos involuntários e depois, de alguma forma, é feita a conexão com o cérebro”, explica. Ênio Cacho acrescenta que cada tarefa motora exige um imput sensorial específico conforme o peso e a pressão, por exemplo , além da prática repetitiva para a modulação do sistema.
Segundo Alberto Cliquet Jr., no século 21, a outra vertente da medicina voltada à lesão medular está nas células-tronco, o que significa extrair células da medula óssea do paciente, trabalhá-las em cultura para que cresçam e se diferenciem em células nervosas, reimplantando-as no organismo. “Pesquisadores da USP vêm trabalhando com essa técnica, mas ainda assim nos enviam pacientes para que estes andem por meio do sistema artificial. Acreditam que nosso treinamento propicia uma melhor comunicação para que as células-tronco se diferenciem e se alojem exatamente no local da lesão”, finaliza.
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