O professor começou a se interessar pelo assunto em 1983, ano em que conheceu o livro “Candomblé”, de autoria do fotógrafo José Medeiros. A obra, publicada em 1957 pela editora O Cruzeiro, trazia 62 fotografias de um ritual de iniciação. Na ocasião, o antropólogo Micênio Carlos dos Santos, um adepto dos cultos afro-brasileiros, forneceu as primeiras pistas, adiantando a Tacca que as imagens eram recorrentes no imaginário do candomblé baiano. O docente, um estudioso da antropologia visual, ficou impressionado com o apuro técnico das fotografias e com o fato de as imagens serem ambientadas num cenário onde o acesso era permitido apenas a iniciados.
Em 1988, Tacca teve a oportunidade de entrevistar José Medeiros. O fotógrafo revelou que parte das fotos reunidas no seu livro havia sido usada na reportagem “As noivas dos deuses sanguinários”, publicada pela O Cruzeiro em setembro de 1951. Segundo Medeiros, a reportagem feita em Salvador em parceria com o repórter Arlindo Silva sobre o ritual de iniciação no candomblé (epilação), teve uma repercussão muito grande, a tal ponto que a mãe-de-santo fora assassinada e que as filhas-de-santo acabaram não sendo legitimadas e reconhecidas pelos adeptos da religião. Pela versão do fotógrafo, diz Tacca, a matéria foi feita para que os estrangeiros conhecessem o “verdadeiro candomblé”. Medeiros não fez, porém, nenhuma menção à matéria da Paris Match, publicada quatro meses antes.
Tacca foi saber, em meados de 2003, da existência da reportagem publicada pelos franceses, quando esteve em Salvador durante 40 dias já na condição de pesquisador bolsista. Antes de chegar à capital baiana, porém, o professor da Unicamp havia incumbido um assistente de pesquisar jornais da época. Por meio do material coletado, o docente descobriu que a matéria de O Cruzeiro havia feito um barulho muito maior do que imaginara.
O pesquisador constatou, por exemplo, que o matutino Diário de Notícias, dos Diários Associados, incendiou a cena religiosa local publicando chamadas sobre a reportagem de O Cruzeiro, nos cinco dias que antecederam a chegada da revista a Salvador. O título da chamada já dizia tudo: “O Deus tem sede de sangue”.
Além de um excerto do texto da reportagem escrita por Arlindo Silva, o jornal publicou uma das fotos produzidas por Medeiros para a matéria. “A foto publicada mostrava o sacrifício de um animal na cabeça de uma filha-de-santo (iaô). Tratava-se de uma imagem muito forte para um leigo”, pondera Tacca, lembrando que outros dois jornais baianos, A Tarde e O Estado da Bahia, adotaram o mesmo procedimento, sendo que este último reproduziu a chamada veiculada pelo Diário de Notícias. A direção de O Cruzeiro, prevendo o sucesso da edição, aumentou a tiragem em 10%. A revista estourou a banca.
O elo Um anúncio publicado pelo jornal A Tarde na edição de 22/11/1951, passados dois meses portanto da reportagem de O Cruzeiro, encontrado por Tacca em suas pesquisas na capital baiana, levou o pesquisador aos motivos que fizeram a publicação brasileira investir no assunto. O comunicado, bancado pela Federação Baiana de Cultos Afro-Brasileiros, “convidava todos os terreiros, os simpatizantes do culto, a imprensa e o povo em geral, para assistirem à assembléia geral extraordinária, a fim de especialmente julgar conveniente as publicações que foram feitas na revista Paris Match e O Cruzeiro, a respeito do culto africano na Bahia”.
De posse da informação, Tacca foi atrás da reportagem publicada pela Paris Match. Não precisou rodar muito. O pesquisador descobriu, por meio do site da publicação, que a revista, ainda em circulação, tinha em estoque um exemplar de 15/05/51, data em que circulou a matéria “As possuídas da Bahia”. A reportagem estava escrita na terceira pessoa. As fotos eram de autoria de Clouzot.
A passagem do cineasta francês pelo Brasil foi objeto de um minucioso levantamento. Clouzot desembarcou no país em maio de 1950. Veio com a mulher, Vera Amado filha do escritor Gilberto Amado , trazendo na bagagem 3,5 toneladas de equipamentos e 70 milhões de francos para fazer um filme. Pretendia rodá-lo em um ano. Conhecido internacionalmente, Clouzot foi recebido com festa pela intelectualidade nativa, que promoveu encontros em sua homenagem.
O filme, por razões que permanecem desconhecidas, não foi realizado. Na verdade, especula o docente da Unicamp, talvez nem o próprio Clouzot tinha convicção do que pretendia produzir. Soube-se apenas que o filme se chamaria “Le Brésil”, não tinha um roteiro definido e exibiria algo próximo de um diário de viagens. De concreto, conforme apurou Tacca, o cineasta flanou por algumas regiões do país, sem deixar de emitir opiniões boa parte nada lisonjeiras sobre o que presenciara.
Por outro lado, havia sua mulher, Vera, não por acaso escalada como protagonista do filme.
O certo é que entrou água no projeto. O equipamento e os técnicos voltaram no mesmo navio que havia deixado a França rumo ao Brasil. Algumas vozes se levantaram em defesa do cineasta, entre as quais a do jornalista Paulo Duarte. Em artigo publicado na revista Anhembi, de sua propriedade, Duarte, polemista de carteirinha, não deixou por menos viu fantasmas no Catete e “em nossas incredibilíssimas câmaras federais, estaduais e municipais”.
Para o intelectual paulistano, tudo conspirou contra Clouzot, a começar da dificuldade em se obter a liberação alfandegária dos equipamentos, passando pela impossibilidade de se importar película virgem, até chegar em “advertências veladas da censura”.
Nenhuma das ilações feitas por Duarte se confirmou, mas Clouzot não se deu por vencido, revela Tacca. Malogrado seu projeto, decidiu trocar as telas pelas rotativas da Paris Match. Os protagonistas e a ambientação mencionados por Duarte, porém, foram mantidos. Clouzot e sua mulher brasileira afinaram os ouvidos para os sons dos tambores que ecoavam nos arrabaldes de Salvador, uma cidade que contava à época “com 400 mil habitantes, 96 igrejas e 453 templos fetichistas”, segundo a contabilidade do próprio cineasta.
Tamanha oferta de sincretismo logo levaria Clouzot e Vera ao intento. O cineasta chegou a contratar uma doméstica filha-de-santo que “passava por longos estados de embrutecimento”. Uma outra, que a substituiu, “se exprimia por grunhidos, por gestos, por onamatopéias”. Três meses e milhares de francos de propinas depois, o cineasta e sua mulher conseguem chegar a um terreiro, levados por um certo “sacerdote Nestor”, pai-de-santo jamais identificado.
A incursão rendeu a matéria “Les Possédées de Bahia” (As possuídas da Bahia), alardeada em seu subtítulo pela Paris Match como “um extraordinário documento etnográfico”. A abertura da matéria, vendida como uma amostra exclusiva de um livro que Clouzot lançaria posteriormente sobre o tema, “Le Cheval de Dieux” [“O Cavalo dos Deuses”], dizia ainda que pela primeira vez um branco entrara “num santuário de deuses negros”.
Se Clouzot queria um trabalho “impressionista” sobre o Brasil, como declarara em entrevista, conseguiu seu objetivo com sobras. Adjetivado sem parcimônia, o texto traz descrições detalhadas das “possuídas” sendo banhadas com sangue de animais bode, galinhas e pombos vertido sobre as cabeças (perfuradas) e os corpos das filhas-de-santo iniciadas no candomblé. Em matéria de sensacionalismo, o capítulo imagético não ficou devendo ao escrito. O cineasta francês, que diz ter sido obrigado a sorver o sangue de um pombo recém-sacrificado, foi impiedoso em suas considerações sobre o ritual. Disse tratar-se de um caso patológico.
A reação à matéria, que ficou de início circunscrita a determinadas rodas de intelectuais com acesso à publicação francesa, ganhou corpo depois de sua reprodução na íntegra, pelo jornal baiano A Tarde, passados dois meses de sua chegada às bancas (edições de 10,11 e 12 de julho de 1951). Tacca e seu assistente na Bahia, Cláudio David da Cruz, não precisaram recorrer aos arquivos jornalísticos. Deliberadamente, o docente da Unicamp dedicou em seu trabalho um capítulo [O contracampo de Pierre Verger] sobre o fotógrafo e etnólogo francês Pierre Verger “como contraponto ao trabalho sensacionalista realizado por Clouzot e José Medeiros”.
E foi justamente na Fundação que leva o nome de Verger, em Salvador, onde Tacca encontrou os documentos sobre a polêmica. Explica-se: o fotógrafo francês manteve-se distante da refrega midiática. Distante, porém atento. Verger recortava e catalogava todos os lances da polêmica. Os guardados de Verger, para Tacca “um ícone das relações da imagem fotográfica com o mundo religioso do candomblé e da cultura afro-brasileira”, foram preciosos.
Está tudo lá. A começar da primeira das manifestações de protesto do sociólogo francês Roger Bastide, professor da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo. O intelectual, teoria à parte, sabia onde estava pisando. Havia sido, por exemplo, o autor de matéria sobre iniciação no candomblé, feita coincidentemente em parceria com Pierre Verger, de quem era amigo. A reportagem foi publicada na revista A Cigarra em 1949.
Em reportagem veiculada no dia 7 de julho de 1951 pelo jornal A Tarde, Bastide, “em viagem pela Bahia mais de passeio do que de estudos”, acusa Clouzot de sensacionalismo, de ignorar fundamentos científicos elementares, questiona a veracidade das imagens e vê na postura do cineasta traços de uma visão colonialista. A mesma matéria foi reproduzida no jornal O Globo, em 18 de julho de 1951, com os seguintes título e subtítulo: “Caluniada em Paris a cidade de Salvador A Reportagem de Clouzot agita a sociedade baiana O sociólogo Roger Bastide contradiz seu patrício”.
Além de Bastide, quatro soteropolitanos expressaram, nos diários locais, sua indignação com a matéria de Clouzot o médico Estácio de Lima, o historiador Gustavo Barroso e os professores José Valladares e Edison Carneiro. Este último, um especialista em cultos afro-brasileiros, chegou a recomendar Clouzot a amigos e a representantes de terreiros famosos da Bahia. Mais: em seu livro “Le Cheval de Dieux”, Clouzot admite que não sabia da existência do candomblé até conhecer Carneiro. O estudioso não deixou por menos. Acusou o francês de reproduzir, sem citar a fonte, trechos inteiros de seu livro Candomblés na Bahia. Não foi menos impiedoso acerca da reportagem gestada pelo cineasta: “Sensacionalismo, nada mais. Clouzot fez cinema com as letras”.
Tacca localizaria, na Unicamp, outros três artigos emblemáticos sobre a polêmica. Por indicação de Flávia Carneiro Leão, coordenadora do Centro de Documentação Alexandre Eulálio (Cedae), do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), encontrou na mesma Anhembi em que Paulo Duarte sai em defesa de Clouzot, dois artigos de Bastide e um outro de Alberto Cavalcanti, cineasta que assumira o posto de produtor geral da Companhia Vera Cruz depois de transitar pela vanguarda européia.
Anhembi reproduz uma carta distribuída por Cavalcanti nas redações. O documento teria sido, segundo Tacca, a primeira manifestação pública contrária à reportagem da Paris Match. O documento havia sido publicado pela Folha da Noite (SP) e pelo Diário de Notícias (BA), entre outros jornais, em julho de 51. Em setembro, Anhembi a reproduziu. “Foi uma espécie de redenção, já que a revista havia exaltado a presença de Clouzot no Brasil”, relembra o docente da Unicamp.
Intitulado “Procuremos esquecer o senhor Clouzot”, o artigo de Cavalcanti contextualiza o conjunto da obra do francês para depois atacar sua reportagem. “Mostrar os nossos negros domésticos lambuzados de sangue...como a única coisa vista por ele no Brasil digna de ser mostrada é uma atitude um tanto esquisita. Por isso venho à presença da ‘Match’ para botar os pingos nos ii”, escreve o cineasta brasileiro. Na mesma revista, na edição de agosto, Roger Bastide desbanca o conterrâneo sem meias-palavras no artigo intitulado “A etnologia e o sensacionalismo ignorante”. Enumera uma série de erros cometidos pelo cineasta, apontando “um desejo sensacionalista duplamente injurioso para os meus amigos de cor e para os meus amigos brancos da Bahia, em detrimento da verdade. E o que não se pode tolerar”.
Tacca avalia a postura de Bastide. “Do alto de sua legitimidade acadêmica, o sociólogo francês disseca a reportagem da Paris Match como nenhum outro intelectual havia feito, colocando Clouzot no plano de sua total ignorância e arrogância colonizadora”. Na edição seguinte de Anhembi, Bastide atenuaria o tom de suas críticas para elogiar o livro de Clouzot, “Le cheval de dieux”, segundo as palavras do sociólogo francês “infinitamente superior à reportagem sensacionalista que dele tiraram para fazer para fazer publicidade”.
Bastide, de resto, foi a única voz a se levantar contra a reportagem feita pela O Cruzeiro. Suas críticas foram disparadas no artigo “Uma Reportagem Infeliz”, publicada na edição de novembro de Anhembi. No texto, o intelectual francês menciona o silêncio sepulcral que se seguiu à matéria dos brasileiros. “Fiquei à espera do protesto dos que se haviam voltado contra Clouzot, a saber os Cavalcanti, os Edison Carneiro e outros. Porém, passam-se os dias e este prolongado silêncio me assusta”. Desconfia-se, avalia Tacca, que a sombra de Assis Chateuabriand, o todo-poderoso dono dos Diários Associados, grupo publicador de O Cruzeiro, tenha pairado acima do bem e do mal.
O texto da revista O Cruzeiro não ressoou entre a intelectualidade, mas caiu como uma bomba nos meios religiosos baianos, cujos representantes abominaram a idéia de os segredos do candomblé serem revelados. A corda arrebentou no lado mais fraco. No caso, sobrou para a cidadã Risolina Eleonita da Silva, mãe-de-santo mais conhecida como Mãe Riso da Plataforma, protagonista da reportagem. O regaste de sua história e das três filhas-de-santo reportadas na matéria consumiu boa parte da pesquisa de Tacca, que começou seu levantamento no bairro da Plataforma, em Salvador.
Embora hostilizada por seus pares, Risolina não foi assassinada e tampouco teve de sair corrida de Salvador, como rezava a lenda. Estabeleceu-se na cidade fluminense de Nilópolis, no final da década de 1950, onde exerceu intensamente suas atividades de mãe-de-santo até morrer, em 1995. “Descobri que seu terreiro em Salvador foi demolido para a construção de uma avenida. Ela foi inclusive indenizada. Mesmo saindo de Salvador, constatei que Mãe Riso manteve um intercâmbio intenso com o candomblé baiano”, revela Tacca.
Outra das descobertas foi o destino dado às imagens pelas adeptas do candomblé. Janíldece Barroso da Silva, a Jane, filha de Waldemira Oliveira Barroso, a Perrucha, uma das iaôs retratadas na matéria, mostrou ao docente um álbum confeccionado pela mãe com as fotos da epilação publicadas na revista. “O mais incrível é que essas imagens foram ressignificadas no âmbito doméstico”, constata o pesquisador. Mãe Riso, por sua vez, guardava consigo um exemplar do livro “Candomblé”, de José Medeiros. A mãe-de-santo sempre teve alvará. E memória.